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Modelos explicativos do processo saúde-doença-atenção

PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

1.1 Modelos explicativos do processo saúde-doença-atenção

Ao longo da história da humanidade emergiram diferentes olhares sobre a doença, que transitaram do mágico/ religioso ao empírico, à consolidação do olhar científico e do olhar social (Scliar, 2002). Sem a pretensão de detalhá-los, traremos uma visão geral sobre como os diferentes modelos endossam a interação das dimensões biológicas, subjetivas e sociais, e como a categoria subjetividade entra em cena no campo da Saúde Coletiva.

No século XVIII, quando as condições de moradia, água e esgoto nas cidades européias eram muito precárias, acreditava-se que as doenças eram causadas pelos fedores que contaminavam os humores do corpo. Com o início do processo de industrialização e organização do Estado, aparece a necessidade de um conhecimento sistematizado sobre a população, a fim de controlar a vida econômica e social. Vários países começaram a implantar medidas de saúde pública vinculadas ao saneamento e a higiene, promovendo verdadeiras revoluções urbanas em prol da prevenção das epidemias. Isso assinala as primeiras relações entre os fatores sociais, as condições de vida e a doença, e desencadeia ações de caráter coletivo e, a partir do que se chamou de polícia médica, coercitivo (Rosen, 1979; Nunes, 2000). A saúde pública nasce, portanto, sem grande relação com a medicina, e voltada às intervenções urbanísticas. Essa separação da medicina, bem como o caráter controlador e coercitivo, são tensões constitutivas do campo da saúde pública e até hoje não estão resolvidas.

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Já no século XIX, grandes descobertas marcam a institucionalização do movimento científico: o advento da bacteriologia e parasitologia deu impulso à teoria dos germes (um germe – uma doença) e permitiu a descoberta de agentes etiológicos e de meios para evitar a contaminação (vacinas, eliminação de vetores, bloqueios de focos). Sob predomínio do pensamento positivista, ganham ênfase os determinantes biológicos, alavancando um modelo unicausal como paradigma explicativo da doença (Nunes, 2000). A saúde pública se vincula à medicina preventiva e as ações se voltam para a clínica, concentrando-se nos aspectos individuais e curativos, paradigma este que se tornou hegemônico e ainda se imprime fortemente no modelo médico atual.

A idéia de multicausalidade se desenvolveu em meados do século XX, como um enfoque alternativo para a impossibilidade do modelo anterior de abarcar as complexas e precárias condições de saúde e de vida da população. Leavell & Clarke (1976) apontaram, com o Modelo da História Natural da Doença, que haveria vários determinantes em interação: agente (elementos nutritivos, físicos, químicos ou biológicos), hospedeiro (o ser humano e suas características, como idade, sexo, hábitos) e meio-ambiente (condições externas que afetam a vida). A doença passou a ser vista como processo, da pré-patogênese à patogênese, e a requerer diversos tipos de intervenção (promoção, prevenção, diagnóstico precoce, limitação dos danos, reparação/cura e reabilitação). No entanto, apesar de possibilitar uma análise mais abrangente, o foco da tríade ecológica centrava-se nos aspectos biológicos individuais e nas condições físicas e ambientais, mantendo à margem a contextualização social, econômica e cultural como inerentes aos fenômenos de saúde e doença. O termo “social” aparece mais como o envoltório de vida das pessoas do que como mecanismo explicativo (Arouca, 1975; Figueiredo & Furlan, 2008).

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Nos países latino-americanos, entre as décadas de 60 e 70, a Medicina Social inaugurou a abordagem do processo saúde-doença como processo social. Sob o marco do materialismo histórico, centrou suas análises na desigualdade do sistema social vigente, apontando a estrutura das forças de produção como principal determinante da doença. Assim, estudos, interesses e preocupações se voltaram para elementos como classe social, renda, etnia, educação, migração e ambiente de trabalho, bem como o acesso à saúde e as formas que assumem as políticas públicas. Contudo, na tentativa de superar o modelo exclusivamente biologicista, pouco se pensou sobre a clínica, a não ser para criticar seu caráter individual e seus fundamentos biomédicos. Ao privilegiar a relação entre saúde e estrutura social, operava-se nova redução, perdendo as referências à especificidade biológica ou subjetiva dos processos de adoecimento. Se por um lado o referencial estrutural-marxista ajudou na formulação de critérios como a universalidade, eqüidade e no conceito ampliado de saúde, contribuiu de modo insuficiente para o entendimento do emaranhado de relações e da complexidade de categorias presentes no processo de saúde- doença-atenção (Onocko Campos, 2006).

A Saúde Coletiva brasileira nasce nos anos 70 sob esse panorama e insere o debate sobre a saúde no plano das políticas públicas sociais. Criticava tanto o modelo biomédico como o da saúde pública tradicional, marcada pela postura higienista/ autoritária e por ações que visavam o estabelecimento da ordem econômica e social. O desafio primordial, nessa época, era o movimento político para a construção de um sistema público de saúde e sua institucionalização jurídico-legal, a fim de garantir o direito e o acesso à saúde. A categoria sujeito, nesse momento, esteve mais ligada ao processo coletivo de transformação social e de ação política para formulação da Reforma Sanitária e do SUS (Neto et al, 2011),

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e desse modo, o pensamento da Saúde Coletiva tendeu a subestimar a importância dos sujeitos na produção de saúde-doença e na construção do cotidiano e da vida institucional (Campos, 2000b).

Após avanços na implantação do SUS, tornou-se possível – e necessário – voltar atenção às práticas de saúde, ao cotidiano da assistência e ao contexto das relações micro- políticas (Campos, 1992). Assim, o referencial estruturalista foi dando lugar a estudos sobre temas como representação social e cotidiano (Burlandy & Bodstein, 1998) do ponto de vista antropológico e simbólico, abordando percepções, valores, atitudes e crenças, e tentando compreender o adoecimento a partir do que é vivenciado pelos sujeitos (Nunes, 2000). Paralelamente, foi se construindo uma conexão entre práticas assistenciais (clínica) e práticas de gestão (política), entre a produção de saúde e a produção de sujeitos, e se realçaram categorias como interdisciplinaridade, vínculo, ampliação da clínica, gestão compartilhada. Já não bastava ampliar a cobertura e o acesso à saúde, mas colocava -se o desafio de qualificar a assistência e transformar as práticas para, efetivamente, mudar o prognóstico e a qualidade de vida das pessoas. Era preciso retomar a clínica como objeto de análise da Saúde Coletiva, mas para reformulá-la e ampliá-la. E era preciso também recolocar a categoria sujeito para pensar a inter-relação entre as equipes de saúde e os usuários, e resgatar sua capacidade de lidar com a teia de elementos que atuam no processo de produção da saúde (Campos, 1992).

Assim, foi apenas perto da transição para o século XXI que temáticas relativas à subjetividade no processo saúde-doença-atenção e à dimensão relacional e dialógica das práticas de saúde se realçam e entram na pauta da Saúde Coletiva, como exemplificam algumas produções recentes de autores emblemáticos da área (Campos, 1997; 2000a;

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Merhy, 1997; Ayres, 2001; Onocko Campos, 2003a; 2005a). Essas condições históricas e institucionais do campo da saúde demandaram contribuições das ciências humanas para compreender as práticas clínicas e de gestão como práticas inter-relacionais, como encontro de subjetividades, e para operar com as dimensões do afeto e do poder que disso decorrem. Dessa forma, ampliou-se o diálogo interdisciplinar no campo da saúde, com destaque para a filosofia e a psicanálise que, em suas diferentes linhas teóricas, têm muito a contribuir para pensar as relações institucionais e as produções subjetivas.

Entretanto, esses referenciais continuam incipientes na formação e nas práticas profissionais. Ainda hoje, no cotidiano do trabalho em saúde, permanece o desafio da apropriação desse arcabouço teórico-prático para a compreensão dos afetos, valores e da maneira como os sujeitos se inserem no mundo, e para o apoio à construção de outras formas de lidar com a saúde, diferentes das já estabelecidas, para que os sujeitos possam buscar novas bases para pensar, sentir e agir sobre a própria vida.