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PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

2.3 Formação como prática, prática como formação: o Apoio Paidéia, suas

2.3.1 Raízes dialéticas

A partir do que expusemos acima, é possível notar que a concepção Paidéia de formação filia-se à tradição das escolas filosóficas dialéticas, que afirmam a existência de

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interpenetrabilidade entre abstrato e concreto, objetivo e subjetivo, individual e coletivo. Para elucidar a base teórico-filosófica que sustenta o Método Paidéia e o caráter de intervenção que assume a proposta de formação aqui defendida, faremos breves notas sobre algumas idéias que convergem para o tema da práxis e da inseparabilidade entre pensamento e ação.

No campo da filosofia, sociologia e política

De Gramsci (1978) e sua filosofia da práxis inspirada no marxismo, ressaltamos a relação de permanente interação entre a “vontade humana” e a “objetividade do mundo exterior”, daí decorrente a valorização da idéia de “devenir”: Para ele, “(...) o homem ‘devém’, transforma-se continuamente com as transformações das relações sociais” (p.43). A co-produção, conceitos-chave do Método Paidéia, tem suas raízes nessa visão de mundo. As construções humanas serão sempre fruto da confluência de vetores internos e externos, de forças advindas dos sujeitos em conformação com as forças advindas da realidade externa, social.

De Lefebvre (1995), tomamos a noção de que o ser humano é ao mesmo tempo um estado e um vir-a-ser. Por um lado, é um estado, uma identidade, um aglutinado de características que nos permite dizer que o ser humano “é”. E, por outro lado, o ser humano é devir, mudança, processo, está em constante esforço para constituir-se, para transformar- se. Portanto, o pensamento é sempre movimento e, por isso, sempre incompleto. Não há pensamento que englobe toda a verdade, mas sempre porta alguma verdade. A contradição é inerente ao ser humano e, dessa forma, é preciso reconhecer e lidar com as polaridades: o ser e o mundo, realidade social e realidade subjetiva, essência e aparência, são instâncias

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sob mútua influência, e é preciso tentar ligá-las, e não optar por apenas uma delas. Somos ao mesmo tempo bons e maus, amáveis e invejosos, sábios e ignorantes. Também essa noção tem forte influência na concepção Paidéia, na medida em que reconhece o caráter contraditório e inacabado do sujeito, tenta lidar com suas múltiplas determinações e procura não negar o conflito, mas colocá-lo em análise para a construção de pactos e contratos.

De Sartre (1963), filósofo do existencialismo, ressaltamos a articulação entre as estruturas de determinação dos sujeitos e sua própria capacidade de intervenção sobre esses determinantes. Entretanto, ao contrário da concepção sartreana de que a liberdade de agir e de fazer escolhas é principalmente dependente de determinações internas ao sujeito, o Método Paidéia enfatiza a necessidade de considerar a existência de determinações externas do contexto, portanto, a liberdade de agir seria sempre parcial e relativa aos constrangimentos da realidade externa. Como já dissemos, a autonomia, no Método Paidéia, é concebida como a capacidade do sujeito para compreender e agir sobre si mesmo e sobre o contexto, lidando com sua rede de dependências. Define-se, portanto, de forma relativa à contra-face da regulação social, e por isso dá-se sempre em graus ou coeficientes (Onocko Campos & Campos, 2006).

Na psicanálise e no campo “psi”

Resgatamos quatro autores que, inscritos na tradição dialética, inspiraram vários dos conceitos e categorias operativas com os quais trabalhamos no Apoio Paidéia: Freud, Winnicott, Pichón-Rivière e Vygotsky.

No campo da psicanálise, a perspectiva dialética de Freud (1975 [1932]) evidencia- se em toda a sua rede conceitual, da qual destacamos:

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- a relação dinâmica entre consciente e inconsciente, os quais coexistem numa relação de diferença e são mutuamente dependentes, cada um definindo, negando e preservando o outro. A noção de que o sujeito não corresponde à dimensão consciente, falante, comportamental, não implica que o inconsciente detenha posição privilegiada: é a própria dialética consciente-inconsciente que cria e sustenta o sujeito (Ogden, 1996). No Apoio Paidéia, trabalhamos com essas duas dimensões: o inconsciente, configurando desejos, afetos e formação de compromissos, e o consciente, os interesses que movem os sujeitos e sua capacidade de construir contratos com o outro;

- o conflito irremediável entre princípio do prazer e princípio da realidade, que marca a constituição social do ser humano. Diz Freud (1975 [1931]) que sujeito e civilização se constroem no inter-jogo da renúncia do sujeito à satisfação imediata de seu desejo, atendendo às restrições impostas pelo social. É o princípio da realidade em seu confronto com o princípio do prazer, que estruturará o desenvolvimento do ser humano em sua relação com o mundo, e que o obrigará a considerar uma série de elementos antagônicos: ele e os outros, a vida individual e a vida coletiva, o prazer e o trabalho, a escassez e a saciedade, a espontaneidade e as regras sociais (o que nos remete novamente ao conceito de co-produção);

- a noção de escuta e de relação transferencial, fundamentos da técnica psicanalítica, também presentes no Método Paidéia: a escuta como possibilidade de acesso às diferentes formas de subjetividade e o entendimento de que na relação se produzem e reproduzem continuamente os efeitos da história dos sujeitos, o que abre espaço para a emergência da singularidade (Macedo & Falcão, 2005).

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Ainda no campo psicanalítico, apontamos a afinidade com o pensamento de Winnicott (1975), para quem a constituição do sujeito ocorre no espaço de relação entre mãe e bebê. É a partir dessa relação, que o bebê transitará da fase de “dependência absoluta” para a “dependência relativa”, na qual a transicionalidade permite que o bebê oscile entre estados de integração e não integração, formando conceitos de eu e não-eu, mundo externo e interno, podendo assim seguir em seu amadurecimento. Como já discutimos, Winnicott entende essa zona intermediária – transição entre realidade interna e a vida compartilhada – como uma zona de experiência. Um lugar onde se pode experimentar fazer e, mesmo sem se saber ou entender tudo, é possível ir fazendo, errando e aprendendo, buscando saber e entender mais. E é isso que particularmente nos interessa: um grupo de pessoas que, num processo de formação em que repensam sua prática, podem compartilhar a experiência de fazer de outras maneiras. E como se verá mais à frente, o Apoio Paidéia pretende atuar de modo similar à noção de transicionalidade, se colocando no “entre”, fazendo a mediação entre o interno do grupo, com seus movimentos singulares, e as exigências do mundo externo, as contingências sociais e institucionais.

Ainda gostaríamos de apontar mais dois autores no campo “psi”, cujas teorias se fundam na concepção de sujeito intersubjetivo. Da psicologia social de Pichon-Rivière (1985), destacamos o conceito de vínculo, como instância que abriga o pensar, o sentir e o fazer com o outro, base para a construção da subjetividade, e que aparece fortemente no modelo de atenção e gestão defendido no Método Paidéia. Além disso, outra influência é a ênfase dada por Pichon na ação, ao propor a técnica denominada de Grupos Operativos para apoiar seu trabalho com grupos terapêuticos e educativos. Os processos de mudança dos sujeitos, para Pichon, devem centralizar-se numa tarefa, entendida como ações por

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meio das quais um grupo conseguiria descobrir e superar posturas estereotipadas que impedem seu desenvolvimento, e então adquirir mobilidade para tomar decisões e lidar com as ansiedades inerentes à mudança. Integração, para a mudança, entre o sentir, o pensar e o agir.

Outra corrente que interessa-nos assinalar pela sua ênfase na ação é o construtivismo sócio-histórico de Vygotsky (1988), que originou desenvolvimentos no campo da psico-pedagogia. Para este autor, o pensamento, a capacidade de conhecer o mundo e de nele atuar é uma construção social que emerge da atividade humana. A partir da atividade externa, interpessoal, social, o sujeito realiza um processo de internalização, de reconstrução interna de significados, transformando assim os conteúdos externos em conteúdos de consciência. Ou seja, o desenvolvimento intelectual se dá de fora para dentro e depende da mediação social, e a aprendizagem, enquanto instância de mediação entre o sujeito e o mundo, impulsiona o processo de desenvolvimento mental. Para explicar as possibilidades de a aprendizagem influenciar o desenvolvimento, Vygostky formulou o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), definida como a distância entre o nível de desenvolvimento real (determinado pela capacidade de pensar e realizar ações de forma independente), e o nível de desenvolvimento potencial (capacidade de realizar ações com ajuda de outras pessoas). Dessa forma, o trabalho de ensino-aprendizagem deve voltar- se especialmente para a zona em que se encontram as capacidades e habilidades potenciais dos alunos, estimulando processos e funções ainda não desenvolvidos na Zona de Desenvolvimento Proximal (Cavalcanti, 2005; Jófili, 2002).

Para Vygotsky, além de criar um ambiente protegido que favoreça a reflexão e facilite a construção do conhecimento pelo aluno, o professor deve participar ativamente e

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ajudar os alunos a superar os impasses nas discussões, dando contra-exemplos que estimulem o pensamento e trazendo outros conceitos, situações e contextos que não estejam sendo considerados pelo grupo. Ele deve propiciar que os alunos avaliem seus conhecimentos prévios e os coloquem em relação ao conhecimento cientificamente aceito e ao contexto de aplicação, de modo a perceberem as incongruências e vazios no seu entendimento, e assim reestruturarem suas idéias (Jófili, 2002).

A perspectiva de Vygotsky tem implicações didático-pedagógicas importantes no que se refere ao papel do professor ou, no caso da proposta de formação aqui defendida, do apoiador. A noção de oferta utilizada pelo Método Paidéia apóia-se em Vygotsky, isto é, a idéia de que o apoiador dever contribuir para a discussão com temas, análises e sugestões, sempre estimulando o grupo a tomá-los como oferta, ou seja, algo passível de crítica e de alteração. Sendo assim, nos deteremos brevemente aqui para caracterizarmos essa função que adquire nuances peculiares na concepção Paidéia.