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PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

2.3 Formação como prática, prática como formação: o Apoio Paidéia, suas

2.3.2 A função apoiador: suporte e impulso

O Método Paidéia compartilha da concepção vygotskyana de que o professor é mais que um facilitador, ele deve apoiar ativamente o grupo em processo de formação. Ao professor (ou ao adulto, ou a alguém mais experiente) cabe não somente deixar as crianças brincarem, mas, fundamentalmente ajudá-las a brincar, brincar com as crianças e até mesmo ensiná-las a brincar. Transportando isso ao contexto de formação do qual aqui tratamos, isso significa que o apoiador deve conhecer e saber identificar as habilidades, o saber e o jeito de fazer do grupo e as características singulares de seus membros para, a

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partir delas, oferecer novos recursos que permitam desenvolver suas potencialidades, atentando para os pontos mais frágeis que necessitarão de maior apoio.

O termo apoiador pretende enfatizar a noção de suporte, amparo, auxílio, mas também a noção de impulso para o movimento. Onocko Campos (2003b) salienta o duplo papel do apoiador: oferecer suporte à constituição do grupo e do espaço coletivo, valorizando os recursos e a potência dos sujeitos, ao mesmo tempo em que deve empurrar o grupo para atingir seus objetivos, trazendo as demandas externas e ofertando outros recursos.

Retomando novamente Winnicott (1975), podemos dizer que quando um grupo de profissionais está envolvido conjuntamente na análise crítica de sua prática cotidiana e se propõe a fazer isso com vistas a transformá-la e a transformar-se nesse processo, eles estão a compartilhar um projeto comum. Estão desafiando mudar algo que está instituído, e para isso precisarão de certo grau de ilusão, algo que permita um “querer-fazer”, e nesse processo estarão – diria Winnicott – numa região intermediária e de experiência conjunta, fazendo e aprendendo nesse percurso. Aqui, a função do apoiador é fundamental em sua dupla via: oferecer suporte e empurrar o grupo.

Ao pensar sobre o apoiador, Onocko Campos (2003b) se remete às reflexões de Winnicott sobre o analista, aproximando algumas de suas funções às exercidas pela mãe junto a seu bebê. Uma delas é o que Winnicott chama de holding, suporte, maternagem: suportar os outros no seu processo de constituição como grupo subjetivo, quando o que está em jogo são processos de identificação, angústia de dissolução, etc. Então é necessário desenvolver certa continência às angústias do grupo frente à experimentação do novo e a vivência do processo de mudança. A outra função é o manejo, handing: é preciso saber o

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que fazer, ter alguma coisa para ofertar, caminhos para mostrar. Seria como ajudar as crianças a brincarem de outra forma oferecendo um modelo, outros brinquedos, inventando outras falas, outros personagens.

Assim, a dupla tarefa do apoiador deve ser a de facilitar a interação do grupo e apoiar suas análises, permitindo que as pessoas possam se expressar e refletir sobre os temas em questão, sobre o que o tema desperta no grupo, sobre como lidam com o problema no cotidiano. Mas, ao mesmo tempo, introduzir novos conceitos, categorias e recursos que subsidiem o grupo na formulação de ações para intervir junto ao problema analisado, assim como produzir mudanças práticas no projeto que estão compartilhando, que de alguma forma deve conduzir às finalidades da instituição na qual o grupo está inserido, seu objeto de trabalho, os objetivos e resultados esperados.

É preciso assinalar que o papel de um apoiador, dentro do referencial Paidéia, é um papel que perpassa as dimensões analíticas, técnicas e políticas. Um apoiador trabalha para ajudar o grupo a analisar seus nós críticos, seus dilemas e impasses, com um compromisso de passar da análise e da crítica para a intervenção nessas questões e transformação da realidade. Sem se conformar num campo terapêutico, em alguma medida espera -se que o processo de apoio e formação seja também produtor de outras formas de subjetivação. Junto disso, o apoiador atua no campo técnico e político, e traz consigo seus posicionamentos a respeito do ideal de conformação de um sistema de saúde, dos modelos assistenciais, dos modelos de gestão, do que seria desejável como formas de relação nas instituições, etc.

E isso, ou já está explícito desde antes do contato entre o apoiador e o grupo, pela própria história político-institucional do apoiador, ou será logo revelado nas intervenções

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durante o processo. Então, ao mesmo tempo em que é alguém externo ao grupo, o apoiador está implicado com certo projeto (em nosso caso, com a consolidação dos princípios do SUS, com certo modelo de atenção, etc) e implica-se com a produção do grupo, devendo assim considerar as diretrizes institucionais e clínicas, os resultados da atividade prática e dos processos de trabalho. Ele se autoriza a trazer olhares distintos que provoquem contraste, que permitam abalar as verdades instituídas dos sujeitos e contribuir para produzir mudanças nos modos de pensar e agir. Porém, ao invés de impor essas questões autoritariamente, coloca-as em debate para que o grupo possa exercer sua capacidade de co- gestão. O próprio exercitar a construção de autonomia, de capacidade de co-gestão, de relações pessoais e institucionais mais democráticas.

O apoiador, portanto, exerce uma função de mediação, facilitando a abertura de linhas de comunicação, mas com certo grau de controle, pois introduz questões que o grupo deveria considerar e lidar, como racionalidades e demandas externas ao grupo, mas essenciais em seu contexto. Neste sentido, destaca-se como uma característica fundamental do Apoio Paidéia a combinação da demanda do próprio grupo com as ofertas trazidas pelo apoiador, tanto na eleição dos temas a serem analisados, como nos próprios elementos a considerar na análise e a na definição das propostas de transformação das práticas.

O Apoio Paidéia se afilia e se assemelha, em muitos aspectos, ao método desenvolvido pelo movimento da Análise Institucional23 e compartilha diversos de seus conceitos, tais como o de instituição enquanto rede simbólica que configura práticas sociais, de implicação enquanto negação da neutralidade do analista (ou do apoiador), além

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Movimento amplo e com importantes diferenças entre suas vertentes, iniciado da década de 1940 na França e intensificado nas décadas de 1960 e 70, cujos principais membros foram Lapassade, Lourau, Oury, Guattari, Tosquelles, entre outros. Em linhas gerais, pensa as instituições em seu aspecto funcional e simbólico, e articula um instrumental de análise e intervenção com o objetivo de potencializar grupos para processos de mudança.

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da ênfase nos processos micro-políticos e do pressuposto de colocar em análise, concomitantemente, sujeito e instituição, teoria e prática. No entanto, podemos apontar algumas diferentes nuances, sem pretender ir a fundo nessa discussão.

Uma primeira questão que nos parece interessante ressaltar é que na tradição da Análise Institucional, a intervenção – em princípio – visa deflagrar processos de auto- análise e auto-gestão (Baremblitt, 1996), ou seja, construir relações horizontalizadas, de modo que os conhecimentos e decisões sejam compartilhados e o coletivo possa se organizar para gerenciar sua existência. O Apoio Paidéia, por sua vez, procura desenvolver maior capacidade de análise e intervenção dos sujeitos para construírem relações mais democráticas, porém considerando que inevitavelmente haverá diferenças de poder, de interesses e de distintos fatores externos com os quais o grupo deverá lidar. Portanto, uma intervenção Paidéia pretende que os sujeitos possam negociar, construir contratos, fazer co- gestão, tendo em vista as finalidades da instituição. Aqui é preciso destacar que, embora a auto-análise e a auto-gestão estejam fortemente presentes na origem da Análise Institucional, diversos autores contemporâneos (Moura et al, 2003; L’Abbate, 2003; Rodrigues et al, 2000; Monceau, 1996) vêm fazendo releituras dessas noções, pensando-as mais como algo do plano de um ideal a ser buscado do que do efetivamente exeqüível, e considerando que fazer gestão é também lidar com a incidência do externo e com as diferenças presentes nos grupos e nas instituições.

Outro aspecto que poderia distinguir as duas abordagens diz respeito ao uso das categorias demanda e oferta. Um processo de Análise Institucional se dá, fundamentalmente, por meio do desvelamento do que nos grupos estaria inscrito de modo inconsciente, latente, ou sob a forma de resistência ou desejo. Para isso, parte-se da análise

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da demanda, ou seja, da busca do significado do pedido de intervenção que o grupo faz ao analista24. Esse material, composto tanto por conteúdos manifestos, como inconscientes e não-ditos, se constitui como importante via de acesso para a compreensão da dinâmica institucional. Além disso, a análise da demanda se articula com a análise da produção dessa demanda (ou análise da oferta), pois se considera que não existiria demanda se não existisse uma oferta prévia, ou seja, o próprio campo da Análise Institucional é gerador e modulador da demanda que lhe é formulada, portanto deve-se colocar como objeto de análise (Baremblitt, 1992). Entretanto, trata-se da análise da oferta, que implica também numa análise da implicação do analista, e não propriamente de um oferecimento deliberado de diretrizes, de conceitos, de modelos ou modos de fazer.

O Apoio Paidéia também valoriza e trabalha com a demanda do grupo, considerando seus movimentos inconscientes (sem focar neles) e enfatizando a forma com que as pessoas entendem as questões colocadas, como se posicionam, o que pretendem construir no contexto grupal. Mas ressalta a noção de oferta como possibilidade de apoiar o grupo a confrontar-se com o externo, com o diferente e, a partir disso, exercitar sua capacidade de negociação e co-gestão. Assim, o Apoio Paidéia trabalha tanto a partir de temas diretamente relacionados aos desejos e interesses construídos pelo grupo, como com temas decorrentes do contexto social trazidos como ofertas pelo apoiador, que podem ser informações, protocolos, diretrizes, relatos de caso, perspectivas distintas do grupo, categorias de conhecimento e, especialmente, a própria rede operativa de conceitos que

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Há aqui uma distinção entre os conceitos de encomenda e demanda. A encomenda (também chamada de demanda latente, pedido, encargo) remete aos “sentidos não explícitos, não manifestos, dissimulados, ignorados ou reprimidos, e

que comporta uma demanda de bens ou serviços”, ou seja, trata-se de um termo que alude a uma “exigência de soluções imaginarias ou de ações destinadas a restaurar a ordem constituída quando a mesma está ameaçada” (Baremblitt, 1996:

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configura o Método Paidéia e o modelo de atenção e gestão em saúde nele proposto. A valorização da oferta tem o intuito de produzir situações que obriguem o grupo a se pronunciar sobre metas e objetivos da instituição, assim como representações oriundas de outras instâncias, de modo a permitir a abertura de “janelas” por onde o grupo possa recompor desejos, interesses e projetos.

Vale observar que, assim como na Análise Institucional, o apoiador também deve constantemente analisar sua própria implicação no que se refere, sobretudo, ao que oferta ao grupo apoiado. Uma oferta pode, em dadas circunstâncias, ser profundamente danosa. O apoiador também possui interesses de classe, políticos, ideológicos, narcísicos, e no limite, pode-se ofertar de tudo, até mesmo favorecendo interesses perversos do apoiador. O analista institucional também está sujeito a isso e pode-se dizer, inclusive, que ele faça ofertas sem explicitá-las, mas a apresentação deliberada de ofertas por parte do apoiador coloca a questão em evidência. Essa reflexão remete à importância do caráter relacional, já que o apoiador (ou o analista) está submetido a interdições e constrangimentos construídos na sua relação com o grupo apoiado, no seu envolvimento com a formação, com as diretrizes do SUS, etc.

Com esses apontamentos, tentamos mapear alguns referenciais conceituais que fundamentam o Apoio Paidéia e a proposta de uma formação com caráter de intervenção. Para operacionalizá-la, propõe-se partir tanto de problemas concretos em busca de recursos teóricos para ação, quanto de marcos conceituais, diretrizes e modelos teóricos para "descobrir" problemas ainda não identificados na prática. Apresentaremos, a seguir, algumas considerações operativas para orientar sua realização.

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