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PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

1.4 Clínica ampliada e gestão compartilhada

1.4.3 O Projeto Terapêutico Singular

A organização das equipes por meio da definição de clientela, do acompanhamento longitudinal dos usuários e da co-responsabilização, é requisito importante para conhecer na singularidade os pacientes, suas demandas e, no caso da Atenção Básica, as potencialidades e fragilidades de seu território. A partir desse reconhecimento e trabalhando com dados epidemiológicos e outras informações, as equipes podem planejar seu trabalho e definir um cardápio de recursos para atuar em determinado momento com sua clientela. Note-se, é claro, que esse cardápio não pode ser rígido e nem imutável, mas deve acompanhar as mudanças das pessoas, dos coletivos e de suas demandas e necessidades, e por isso requer avaliação e redefinição constantes. Contudo, existem casos que comportam maior complexidade e exigem diferentes tipos de articulação dos profissionais e uma diversidade maior de recursos terapêuticos. E aí o vínculo e a co-responsabilização são

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fundamentais, tanto para identificar esses casos, como para interrogar quais as intervenções mais apropriadas para cada situação.

O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é um instrumento que foi pensado e desenvolvido no âmbito da saúde mental e da Reforma Psiquiátrica, com a intenção de romper com modos de relação manicomiais, propiciar uma atuação integrada da equipe e valorizar outros aspectos no tratamento além do diagnóstico psiquiátrico e da medicação. Trata-se de uma variação da discussão de caso clínico, que se desdobra num conjunto de propostas terapêuticas articuladas para a atenção a um sujeito, uma família, um grupo ou um coletivo, propostas estas construídas por uma equipe interdisciplinar, a partir da análise do caso (Cunha, 2009).

Assim, a construção de um PTS implica num dado modo institucional de operar, pois ele deve ser resultado de uma discussão coletiva de uma equipe que se coloca como responsável por um conjunto de pessoas ou, como já dissemos, uma Equipe de Referência. Essa discussão coletiva é composta por todos os olhares e saberes sobre o sujeito ou coletivo; cada membro da equipe, a partir da intensidade e da qualidade do vínculo que construiu com o usuário e a família, trará para essa discussão aspectos diferentes para elucidar as demandas e necessidades, e definir as propostas de ação (idem, ibidem).

Miranda (2005), partindo da análise sobre as palavras que compõem o termo Projeto Terapêutico, faz uma interessante reflexão:

A terapêutica não pode ser um conjunto de ações que proponham um resultado específico, mas sim uma imprevisível e nunca antes experimentada forma de relação com alguém com quem teremos que construir algo, ao sabor do desconhecido. (...) não podemos prever como será nosso percurso relacional, já que estamos genuinamente supondo que aquela pessoa que a nós se apresenta é única, distinguível dos demais do grupo e de nós mesmos.

(...) ao tomar alguém em tratamento, estamos nos propondo a haver-nos com esse alguém, a nos ocupar dele, com toda a agudez da alteridade que

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necessariamente ele carrega consigo. Conseqüentemente, o projeto terapêutico acaba resumindo-se como uma proposta de relação humana, de relação verdadeiramente humana, em que todos os sinais de humanidade, inclusive os mais estranhos, são aceitos, mesmo com todo o sofrimento que isso implica.

(...) não se trata de um plano de metas a serem atingidos, com métodos e objetivos claros e pré-estabelecidos. O projeto de que aqui falamos é um desejo, um desejo de relação e, por isso, um desejo cujo percurso de realização carrega muitos mistérios. (...) Não há um modelo de projeto, justamente porque ele será feito por seres inseridos na diversidade do mundo humano. É necessário que fique bastante claro que o projeto não é um protocolo, pois será construído e movido pela alteridade (Op. Cit.: p.3-4, grifos nossos).

Portanto, o PTS deve ser entendido como um dispositivo de tratamento, pensado para um sujeito ou para um grupo que se distingue de todos os outros e que, portanto, exige um profundo respeito pela singularidade e mesmo uma cuidadosa investigação desta, quando ela não aparece facilmente. Tomar o PTS como dispositivo significa entender que não se trata de um protocolo ou uma ficha a ser preenchida, mas de um projeto, uma perspectiva de mudança que aponta para o futuro, e que vai se compor de forma flexível às transformações que as demandas dos pacientes e os imprevistos inerentes à vida impõem. Isso implica em compromisso da equipe para avaliar o andamento das propostas, discutir seus alcances e propor mudanças. Além disso, o PTS pressupõe a participação do sujeito na formulação e andamento do tratamento, afinal não se muda algo para alguém, senão com esse alguém. É esse alguém que vamos acompanhar em seus modos de andar na vida. Então é preciso refletir junto com o próprio sujeito: Para onde queremos ir? Que mudanças (trajetos) queremos produzir? Como faremos isso?

Cunha (2009) define quatro movimentos na construção de um PTS:

1. Definição de hipóteses diagnósticas ou problemas: deverá partir de algum consenso sobre os problemas relevantes tanto para a equipe, quanto para o(s) usuário(s). Neste momento, é preciso avaliar o aspecto orgânico, psicológico e social, tentando captar

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como o sujeito se produz diante de forças internas, como as doenças, os desejos e os interesses, e forças externas, como trabalho, cultura, família. Busca-se também identificar os riscos e vulnerabilidades do usuário;

2. Definição de metas: propostas de curto, médio e longo prazo que serão negociadas com o(s) usuário(s) e os membros da equipe envolvidos;

3. Divisão de responsabilidades: definir as tarefas de cada um com clareza. Os membros da equipe que possuem vínculo mais estreito com o(s) usuário(s) se tornam referência na coordenação do PTS. São a eles que o usuário ou a família primeiro recorrem e com os quais vão negociar as propostas terapêuticas;

4. Reavaliação: discutir a evolução e fazer as correções dos rumos tomados.

Vale lembrar que esses passos para a confecção do PTS não são estanques. Como é um processo relacional e complexo, algumas informações essenciais somente surgem durante o desenvolvimento das intervenções. A compreensão da história do sujeito e do que ele vê como dificuldades e problemas, em geral, vai se construindo aos poucos e depende do fortalecimento do vínculo e da confiança.