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História clínica ou história do sujeito? o diagnóstico aprofundado

PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

1.4 Clínica ampliada e gestão compartilhada

1.4.4 História clínica ou história do sujeito? o diagnóstico aprofundado

Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana.

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De Itabira trouxe prendas que ora te ofereço: este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas.

Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!

Carlos Drummond de Andrade

Na proposta de clínica ampliada e, sobretudo, para a construção de um PTS, é importante repensar a forma como tradicionalmente são construídos os diagnósticos. Balint (1988) foi um dos autores que tentaram aproximar os saberes da psicanálise e os da clínica médica, para auxiliar na abordagem dos aspectos subjetivos. Ele enfatizou a importância de ampliar e aprofundar o nível de diagnóstico baseado no paradigma biomédico, para conseguir uma visão geral da condição física e emocional do paciente, sua relação consigo mesmo e com os outros, inclusive com o médico11, e para formular planos de tratamento mais adequados.

Segundo Balint (idem, ibidem), como são formados no contexto hospitalar, os médicos tendem a atribuir mais valor ao diagnóstico físico e usar os rótulos aprendidos com os especialistas. O que não é presumível ou demonstrável por alterações anatômicas ou fisiológicas, ficaria de fora. O conceito de filtro teórico apresentado no trabalho de Cunha (2005) é útil para identificar esse movimento. Os “filtros” seriam produzidos em função da ontologia das doenças e da centralidade dos protocolos na prática clínica tradicional. Diante de determinada queixa, sintoma ou suspeita clínica, o protocolo indica um roteiro de perguntas e exames que devem ser seguidos e que conduzem à abordagem diagnóstica (ou

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A produção de Balint resulta de um trabalho de supervisão com médicos especificamente, como se verá no próximo capítulo. Mas consideramos que suas formulações valem para os outros profissionais de uma equipe de saúde.

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como nomeou Balint: “eliminação pelos exames físicos apropriados”). Isso seria de tal forma incorporado que, com o tempo e a experiência, o profissional passaria a escutar e perguntar somente o que está contido nos roteiros, e tudo que não está “nos caminhos” do diagnóstico produz insegurança. Segundo Cunha (idem, ibidem), a incorporação desses filtros não é ruim em si e pode ser bastante eficaz, mas também pode produzir um “diálogo de surdos”, se ocorrer sem reflexão ou como único parâmetro da relação clínica.

A Atenção Básica é um contexto que evidencia bastante como o diagnóstico físico, embora importante, não é suficiente para construir uma compreensão geral dos problemas de saúde. Nesse contexto, a assistência é menos intensiva e lida com uma variedade ampla de problemas (individuais e coletivos), que geralmente são mais comuns e menos específicos, requerendo atuação imbricada nos múltiplos planos de determinação do processo saúde-doença (Starfield, 2002). É bastante comum a Atenção Básica receber pacientes que, embora tenham sintomas relatados no corpo e acreditem sofrer uma doença orgânica, não se encaixam em diagnósticos e nem têm exames alterados, pelo menos ao ponto de explicar as sintomatologias (Cunha, 2005). Quando os profissionais trabalham exclusivamente com classificações diagnósticas advindas da biomedicina, dificilmente conseguem compreender e avaliar adequadamente o que se passa com a pessoa doente. Para esses pacientes, os profissionais costumam utilizar outros rótulos, como “poli-queixosos”, “refratários”, “rebeldes”, “pacientes-problema”. Isso acaba por comprometer a relação terapêutica, já que o profissional não reconhece a dor ou o sofrimento como legítimos e o paciente não encontra no profissional o amparo apropriado para lidar com sua situação.

Se partimos de uma concepção ampliada de clínica fica claro que o diagnóstico, para cumprir sua função de orientar as propostas terapêuticas, deve incluir uma

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compreensão mais abrangente do sujeito, seu contexto de vida, sofrimentos e conflitos. Essa tarefa não é simples e, muitas vezes, irá requer mais de um encontro, para que a compreensão possa ir sendo ampliada com o fortalecimento do vínculo. Aliás, trata-se de compor um diagnóstico menos estático que o tradicional, que possa ir se moldando de acordo com as mudanças alcançadas, como já apontamos com relação ao PTS.

Assim, a construção da história clínica deveria buscar alguns traços da história do sujeito e sua inserção social, que possam se relacionar com sua situação atual. Deveria buscar um pouco da história e dinâmica familiar, bem como das origens culturais da pessoa. Entender como se dá sua inserção no território, considerando-o como algo mais que um espaço geográfico, mas como o marco das referências socioculturais, o lugar no qual acontecem as inter-relações entre os sujeitos e entre eles e o mundo (Santos, 2002). Em princípio, esta é a própria essência do que chamamos de história clínica, a qual, no entanto, foi sendo reduzida à história dos sintomas. Trata-se, nesse sentido, de resgatar a história clínica como história do sujeito. Isso ajuda a entender os significados, os costumes e crenças que estão presentes no modo como a pessoa lida com a saúde, e propicia contextualizar as prescrições àquilo que é possível ou faz mais sentido ao paciente, como, por exemplo, orientar uma dieta ou a adoção de hábitos alimentares mais saudáveis, considerando a cultura alimentar e os rituais envolvidos no ato de comer.

Cunha (2005) sugere mais alguns caminhos:

- Compreender o sentido do adoecimento para o paciente e como ele se sente com relação à doença: Por que ele acha que ficou doente? Como isso afeta sua vida? Aqui o diagnóstico se abre para a descrição da experiência de estar doente, o que permite entender a que ele atribui as causalidades, como isso afeta a evolução e o tratamento, qual o impacto

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da doença em seu cotidiano e, ao mesmo tempo, propicia apoiá-lo a inventar outras formas de lidar com essas questões;

- Investigar características como temperamento, medos e manias. Conhecer os projetos e desejos: O que ele sonha para si? O que o mobiliza? Conhecer também o que dá prazer (presença ou ausência de atividades prazerosas, no presente ou passado) e o que incomoda ou causa transtornos. Essas questões apontam caminhos para a composição do PTS e fortalecem o vínculo e a compreensão do sujeito;

- Avaliar se há negação da doença ou ganhos secundários. Buscar entender possíveis relações dos sintomas ao estado emocional. Isso propicia trazer à tona a dimensão inconsciente e compreender as possíveis resistências do sujeito.

Como observa Onocko Campos et al (2008), considerar o ser humano como movido inconscientemente por pulsão de vida mas também por pulsão de morte, isto é, por uma tendência ao inerte,

(…) ayuda a los profesionales a no transformarse en jueces de sus pacientes, a desistir de los abordajes meramente informativos. No es porque las personas no saben que no dejan de fumar o no usan preservativos. No es necesario interpretar. A veces vale una pregunta (...) puede abrir el camino para que el sujeto se implique de nuevo con la propia vida (Op. Cit.: p.182).

Uma história clínica que contemple essas questões da história e da dinâmica pessoal tem uma função terapêutica em si mesma na medida em que contextualiza os sintomas e dá ao sujeito a possibilidade de falar, o que implica em algum grau de análise sobre a própria situação (Cunha, 2005). Quando o sujeito é estimulado a qualificar e situar seus sintomas e queixas em relação aos sentimentos e outros aspectos da vida, ele pode ter maior consciência sobre sua doença, evitando a dissociação entre corpo, mente e vida. “Quando a doença ou os seus determinantes estão ‘fora’ do paciente, a cura também está fora” (Op.

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Cit.: p.178), mas se ele puder elaborar minimamente os sentidos de estar doente, pode se implicar mais no tratamento e se responsabilizar pelas próprias escolhas e modos de levar a vida.