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PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

2.4 O Apoio Paidéia: notas metodológicas para o trajeto

2.4.2 Discussão de casos: uma releitura de Balint

Propõe-se que os profissionais combinem os temas ou núcleos de análise com a apresentação de casos com os quais estão envolvidos, para que sejam discutidos pelo grupo. Com a discussão de casos pretende-se estimular que os sujeitos falem sobre sua prática concreta, o que possibilita que se ponha em análise o real e palpável, isto é, aquilo que é co- produzido na instituição e o que se passa na trama da relação entre profissional, equipe e usuário. Entretanto, procura-se trabalhar com o sentido que o “caso” adquire na psicanálise, que é diferente do sentido atribuído pela medicina. Conforme aponta Na sio (2001), o caso em medicina remete ao sujeito anônimo que é representativo de uma doença: diz-se, por exemplo, "um caso de tuberculose". Para a psicanálise, ao contrário, o caso exprime a própria singularidade do ser que sofre e da fala que ele nos dirige, ou seja, trata-se de “o caso”, “o meu caso”, “o nosso caso”, implicando também a escuta dos diferentes profissionais que se relacionam com o sujeito do caso e a relação intersubjetiva construída na situação clínica.

Nasio (2001) observa que a expressão “caso” designa o interesse muito particular que um analista dedica a um de seus pacientes. Desse modo, o relato de um encontro clínico nunca é o reflexo fiel de um fato concreto ou um acontecimento puro, mas trata -se de uma reconstituição, uma história reformulada a partir da escuta e da subjetividade do profissional. Portanto, ao solicitar que os profissionais apresentem um caso para discussão em grupo, o Apoio Paidéia pretende focalizar a relação clínica, os afetos e conflitos que aí

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se estabelecem. Além dos aspectos técnicos envolvidos na condução do caso, interessa a reflexão sobre os motivos da escolha de determinado caso em detrimento de outros, o modo como os profissionais lidam com os valores e sentimentos que comparecem na situação clínica, o modo como a equipe se organiza para resolver os impasses e dificuldades.

Essa estratégia de formação centrada na discussão de casos foi desenvolvida por Balint (1988) na década de 50, no contexto da experiência com grupos de supervisão de casos trazidos por clínicos gerais vinculados ao Sistema Nacional de Saúde da Inglaterra. Nesses grupos, Balint propunha a análise do que se passava na relação entre médicos e pacientes e dos aspectos inconscientes que influenciavam a evolução da doença e do tratamento25. No Apoio Paidéia, a estratégia de discussão de casos foi ampliada em três sentidos principais:

Primeiro, ampliou-se o entendimento sobre o que se configura como um “caso”. Balint preconizava o debate sobre casos clínicos e enfatizava a clínica individual (e nela, a relação dual, já que o trabalho médico na Inglaterra não se dava sistematicamente num contexto de equipe). No Apoio Paidéia inclui-se também casos de saúde coletiva e outros de ordem institucional, isto é, problemas comunitários ou intersetoriais de saúde, atendimentos clínicos grupais ou grupos de promoção à saúde e também situações de ordem gerencial e de organização da atenção. Além disso, os casos podem ser apresentados por um único profissional ou por uma equipe que trabalha em conjunto, embora o tema do trabalho em equipe seja central em todas as situações discutidas.

O segundo sentido de ampliação dos grupos-Balint refere-se ao que já foi apontado anteriormente sobre o papel ativo do apoiador ao trazer ofertas. Balint trabalhava

25 A experiência dos “grupos-Balint”, como ficaram conhecidos, e sua articulação com a metodologia de Apoio Paidéia

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essencialmente com o que era trazido no relato dos casos, no que se referia às implicações psicológicas da relação clínica. No Apoio Paidéia, o apoiador oferta tanto outros núcleos de análise não abordados pelo grupo na discussão dos casos, como também temas teóricos sobre atenção em saúde, trabalho em equipe e organização do sistema de saúde, além de outras questões, como experiências, diretrizes, políticas, demandas de outras instâncias.

Uma terceira ampliação, também já mencionada, refere-se ao aspecto construtivista e a ênfase na prática concreta. Cada caso é apresentado ao grupo para ser discutido e analisado, buscando-se uma compreensão coletiva sobre a situação singular e também sobre os núcleos temáticos que emergem do caso e que podem ser generalizados em outras situações. Porém, na seqüência, deve ser elaborado pelo grupo um conjunto de ações e propostas de intervenção para orientar a resolução dos principais pontos levantados como dificuldades, impasses e conflitos. Essas propostas de ação devem ser organizadas na forma de Projeto Terapêutico (para os casos clínicos) ou de Projeto de Intervenção (para os casos institucionais ou de saúde coletiva). Com isto, o caso, mais que um exercício de reflexão, se transforma em um desafio que o profissional e sua equipe deverão levar à prática, avaliando, ao longo do processo de Apoio, os avanços e dificuldades.

Poderíamos exemplificar com uma situação, bastante comum na Atenção Básica, de uma pessoa com hipertensão e diabetes que tem dificuldades para seguir o tratamento. A discussão do grupo se centraria na singularidade desse caso específico, a dinâmica familiar, as intervenções já realizadas, os avanços e dificuldades da equipe, suas impressões e expectativas. Mas além da singularidade, emerge como tema geral de análise o acompanhamento de pacientes com doenças crônicas, o tipo de abordagem necessária nesse contexto, os recursos medicamentosos e as opções de tratamento complementares, a

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organização do trabalho em equipe, a articulação da rede de serviços, o ponto de vista epidemiológico, entre outras possibilidades. O grupo deve, então, construir uma compreensão coletiva, que incorpore o contraditório, podendo agregar informações documentais (epidemiológicas, normativas, administrativas), referências teóricas, além das informações advindas da observação do contexto em análise e da escuta dos sujeitos envolvidos. Com isso, é possível construir uma espécie de diagnóstico da situação, objetivando apoiar a tomada de decisões. Define-se, então, um conjunto de metas com base no diagnóstico, nos objetivos e nas diretrizes gerais de atenção, listando um conjunto de tarefas e responsáveis, que configurará um Projeto Terapêutico.

Esse Projeto Terapêutico, pactuado com a equipe e com o próprio usuário, deverá ser operacionalizado e trazido posteriormente para nova discussão no grupo de Apoio. Inicia-se então a análise da execução das tarefas, seus limites e potências. A partir da avaliação do processo e de novas informações com ele obtidas, é possível produzir novas reflexões sobre o caso singular, redefinindo o diagnóstico, recolocando objetivos e expectativas, e considerando outras possíveis configurações de Projeto, e também analisar sob outras perspectivas o tema geral de análise.

Em todos esses momentos, o apoiador deverá trabalhar com o que emerge como demanda interna do grupo, mas ao mesmo tempo trazer ofertas de teorias, modelos e experiências que ajudem o grupo a avançar em seu processo de compreensão, interpretação e intervenção no contexto. É um processo construtivo de conhecimento e intervenção na realidade, já que grupo será estimulado a articular, de maneira simultânea, a busca por informações, a composição de diagnósticos e interpretações e a construção de intervenções, ou seja, em cada encontro o grupo deve fazer uma síntese de todas as etapas: buscar

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informações, interpretar, tomar decisões e avaliar, predominando esta ou aquela etapa sobre as outras conforme a fase e os problemas enfrentados pelo grupo.

Assim como na técnica dos grupos operativos de Pichon-Rivière (1985), no Apoio Paidéia o saber (momento de análise) aproxima-se do fazer (compromissos com tarefas), possibilitando que do agir os sujeitos busquem teorias, conceitos, modelos explicativos para analisar e modificar, com certo distanciamento, a si mesmos e suas formas de ação. O movimento de retomada da análise e do diagnóstico a partir da realização das intervenções permite criar uma diversidade de interpretações e assim modificar os sentidos já cristalizados pelos profissionais e afirmar as possibilidades de reconstrução social da realidade.