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Disponibilidade e competência para estar em relação (ou no entre)

PARTE I: ITINERÁRIO

1. Sujeito, subjetividade e clínica

1.4 Clínica ampliada e gestão compartilhada

1.4.5 Disponibilidade e competência para estar em relação (ou no entre)

Estar o mais próximo não é tocar: a maior proximidade é assumir o longínquo do outro.

Jean Oury De acordo com Oury (1991), trabalhar nessa encruzilhada de múltiplas pertinências, que é a relação terapêutica com um sujeito ou coletivo singular, demanda certa competência técnica, uma competência para estar com o outro, respeitar o outro aí onde ele está. E mesmo nas ações mais direcionadas ao biológico: “aplicar uma injeção, prescrever medicamentos, não são senão modalidades do ato de encontro com o outro em seu estado de sofrimento” (Op. Cit.: p.8).

Isso exige alguma sensibilidade para acessar aquilo que está oculto, ser sensível à emergência do pequeno detalhe, daquilo que tem pathos. Pois o que chega como mensagem ao ouvido do profissional é uma versão parcial, que muitas vezes mascara os elementos realmente problemáticos. Seria preciso extrair desse campo onde tudo está misturado, as coisas mais essenciais, que não aparecem em sua polidimensionalidade. Essa sensibilidade para abordar o outro, essa maneira de estar com o outro, capacita o profissional a estar atento às nuances da ambiência e à complexidade multifatorial que desencadeia num diagnóstico clínico.

Um contexto de convivência e respeito, base elementar da dimensão ética da clínica, permitiria ao sujeito se expressar e mostrar ao profissional a sintaxe sutil dos seus

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problemas. Contudo esse respeito pelo outro não significa se colocar numa atitude passiva, mas exige uma espécie de atenção trabalhada, que a torna sensível à polifonia dos discursos, à emergência de sinais e mensagens gestuais. Para Oury (idem, ibidem), essa atenção trabalhada se adquire pelo exercício de uma tekné e necessita de ferramentas conceituais que ajudem o profissional a “estar advertido” para decifrar, naquilo que se apresenta, o que é importante acolher e como acolher12. Trata-se, portanto, de uma “espera ativa”, uma “espera instrumentalizada”, que permite ao outro se manifestar.

É preciso dizer que o estabelecimento desse tipo de encontro e contato com o outro traz dificuldades e, às vezes, armadilhas para os profissionais: o risco de se deixarem envolver em demasiado e borrar os limites entre o si-mesmo e o outro. Assim, é indispensável haver um espaço de equipe que seja continente para que se possa falar disso e para que essa qualidade relacional possa ser trabalhada. Quando não se pode “dar conta” dessas questões, o trabalho se torna estereotipado, “sem grande interesse e, sobretudo, sem “paixão” eficaz. Uma espécie de tédio se instala e uma monotonia improdutiva se infiltra” (Oury, 1991: p.9). E é notável o quão freqüente são as queixas das equipes de saúde porque não “dão conta” de entrar em relação com o outro, em suas diferenças e sofrimentos. “Dar(- se) conta” é, como já dissemos, o que deve por em movimento os espaços coletivos de gestão e formação nos serviços. É através desse trabalho de elucidação que se pode estabelecer uma dialética entre o próximo e o distante: “uma maior proximidade frente ao

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Para ilustrar a aprendizagem dessa atenção trabalhada, Oury se remete à aprendizagem da escuta dos barulhos do coração: “(...) se não estamos preparados, não adianta escutá-los com o estetoscópio, pois não ouvimos senão ruídos

confusos. Basta que nos digam que é preciso ouvir ‘tum-tá’ para que rapidamente, ao redor desse esquema, possamos distinguir os ruídos, os sopros, os ritmos... Podemos dizer que o ‘tum-tá’ é uma espécie de ferramenta conceitual (...)”

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outro em sofrimento, (...) garantindo uma distância que não seja nem um afastamento, nem um evitamento, nem uma mistura confusa ou comunhão com o outro” (Op. Cit. p.9)13.

Algumas palavras sobre a escuta

Na situação clínica circulam demandas nem sempre lógicas ou fáceis de decifrar, mas que comunicam o desejo e a necessidade de serem escutadas. Escutar não é somente abrir espaço para o outro falar, “estar à escuta é estar sensível à manifestação do ‘aparecer’” (Oury, 1991: p.8).

É preciso não simplificar a escuta, reduzindo-a a coletar dados a partir de respostas previamente direcionadas pelas próprias perguntas. Heckert (2007) fala de um tipo de “escuta surda”, aquela que ouve sem escutar. Ao invés de captar as singularidades, a variabilidade e a imprevisibilidade do humano, a escuta surda se reduz a um ato protocolar, a uma técnica de coleta de evidências e de sinais, que toma os desvios, as variações e o que difere, como erros e perturbações a serem corrigidos e controlados. Trata-se, assim, de uma escuta moralizante, prescritiva e julgadora de práticas e modos de vida, que se deixa conduzir por valores próprios ao ouvinte. Como efeito, tende a produzir tutela e culpabilização do sujeito, uma vez que fala por, fala de, em nome de, ao invés de falar com ele (Kupermann, 2004).

Uma escuta que de fato se abra à alteridade demanda que o profissional afine sua sensibilidade para a experiência de afetação mútua que caracteriza a clínica. É necessário

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Essa dialética está na origem da própria palavra “clínica”: o movimento de inclinar-se sobre o leito do doente (do grego

klinikos: “que concerne ao leito”, de kline: “leito, repouso” e de klíno: “inclinar, dobrar”). A imagem dessa posição

inclinada do médico, nem deitado ao lado ou misturado com o doente, e nem ereto, frio e impassível em seu saber, também remete ao que Campos (2000a) denomina de “função apoio”, caracterizando a capacidade do profissional para ser continente às necessidades e demandas do outro e, ao mesmo tempo, fazer ofertas de outras lógicas, empurrando os sujeitos a moverem-se na direção de seus objetivos. Veremos isso no capítulo 2.

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desenvolver certa empatia para perceber o sentimento alheio, perceber o marco de referência interno do outro e os significados próprios desse outro. Isso não implica nem em benevolência nem em comunhão, mas na possibilidade de afetar-se pelo que o outro comunica e, regatando o poder polissêmico e evocativo da palavra, ser capaz de acolher o outro em sua diferença (Kupermann, 2004). Esse tipo de escuta ajuda o profissional a se conectar com os saberes das pessoas, e faz com que ele possa se lembrar dos nomes, rostos e histórias, da cor dos olhos e da pele, dos cheiros, de suas rugas, cicatrizes e outras marcas do vivido (Heckert, 2007).

Abrir-se à alteridade envolve uma disponibilidade subjetiva para colocar em análise os próprios valores, preconceitos, ensurdecimentos, indiferenças, intolerâncias. Balint (1988) chamou atenção para isso quando desenvolveu o conceito de “função apostólica”, para designar as intervenções orientadas pelo livre jogo das inclinações pessoais do profissional, seus sentimentos inconscientes, convicções, valores morais e preconceitos. Seria um tipo de evangelização: “como se cada médico possuísse o conhecimento do que os pacientes deviam e não deviam esperar e suportar, e além disso, como se tivesse o sagrado dever de converter à sua fé todos os incrédulos e ignorantes entre seus pacientes” (Op. Cit.: p.186). Tomando o caráter disciplinador e normatizador que, por vezes, as práticas de saúde assumem, a impossibilidade dos profissionais se questionarem sobre seus próprios valores e afetos pode gerar muitos problemas: a tendência a pautar as ações em normas de conduta e preconceitos; a moralização dos riscos de adoecimento; o uso da intimidação e do medo para obter a “adesão” ao tratamento; o discurso do “não” e da “proibição”; a baixa capacidade de compartilhar decisões; entre outros (Cunha, 2009).

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Aqui o conceito de transferência pode ser valioso. Para Freud (1975 [1912]), a transferência seria a repetição de protótipos infantis, a partir do deslocamento inconsciente de afeto de uma representação para outra. A relação do sujeito com as figuras parentais, marcada pelas ambivalências pulsionais ódio-amor, seria revivida na relação com o analista. Na psicanálise, o manejo da transferência é um elemento central, embora Freud tenha reconhecido esse fenômeno como inerente às relações humanas em geral. A Análise Institucional pensou a transferência nos espaços institucionais, atribuindo a ela contornos mais amplos, isto é, os sujeitos e as instituições são atravessados por todo o campo institucional e social, que produzem fluxos de afeto cruzados, transversais. Portanto, reconhecer minimamente os fluxos de afeto que estão presentes no encontro terapêutico possibilitaria ao profissional de saúde ampliar sua capacidade de compreender e lidar com eles. Cunha (2005), explica didaticamente:

No imaginário/inconsciente de um paciente, uma enfermeira pode ser a enfermeira Alemã que tortura, ou a adorável Juliette Binoche do filme O Paciente Inglês. Noutro tempo pode ser lembrança da Mãe. (...) Podemos ser também instituições: “Você já usou droga?” O paciente pensa: “esse cara vai me entregar”. E então "somos" a Polícia. Ou a Igreja: “Você já teve alguma relação sexual de risco?” A voz da culpa, do castigo divino. (...) É vital procurar no repertório do paciente, uma “transferência” que seja útil para o trabalho em saúde e fazer desse sentimento improvisado uma ponte para o seu tratamento (...). Por outro lado, precisamos reconhecer que também vemos os pacientes com as nossas lentes (...). Um nos lembra fulano: gostamos, tratamos bem. Outro não topamos e nem queremos pensar quem nos lembra... Perceber, descobrir, captar esses fluxos de sentimentos e associações torna o trabalho melhor e menos chato. Cada vez que os descobrimos, aprendemos muito sobre nós mesmos e ganhamos (...) autonomia (Op. Cit.: p.114, grifo do autor).

Uma escuta ampliada na clínica seria algo que poderíamos aproximar daquilo que Freud denominava “atenção flutuante” no contexto psicanalítico (guardando, é claro, as especificidades do trabalho nos diferentes contextos). Consistiria num esforço em manter a atenção numa espécie de mobilidade, o não privilégio a priori de elementos da fala do

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paciente, uma abertura que implica abrir mão de preconceitos. Pois, uma vez que o profissional focaliza sua atenção em elementos que, a princípio, são de seu interesse, ele tenderia a negligenciar outros aspectos que seriam fundamentais e, sobretudo, seria levado a “descobrir” aquilo que já pressupõe.

Assim, ouvir e falar com requer certa abertura ao inesperado. E essa atenção não deveria se voltar apenas para o conteúdo do que é dito, mas também para o tom de voz, o ritmo da fala e a gestualidade que a acompanha, os silêncios, os risos (Kupermann, 2004), e a forma com que as frases são construídas. É importante fazer perguntas as mais abertas, que abram espaço para a fala do sujeito, e cuidar para não “atropelá-lo”: dar valor ao silêncio, que pode comunicar muita coisa; não discutir imediatamente o que foi pronunciado; recolher-se sobre o que foi dito e olhar para si mesmo, tentando compreender os significados. E quando necessário, usar de estratégias para ajudar o sujeito a falar – como, por exemplo, parafrasear ou resumir os conteúdos que já foram ditos e devolvê-los, para que possam ser repensados e reformulados; servir de espelho, isto é, refletir para o sujeito o que foi percebido de suas emoções e sentimentos, para que ele possa validar a compreensão do profissional e também ampliar a compreensão sobre si; dar menos conselhos e “palpites”, devolvendo as questões feitas pelo sujeito para que ele mesmo possa pensar e procurar respostas; entre outras estratégias possíveis. Isso ajuda a ampliar a capacidade do sujeito para entender e agir sobre sua realidade.

Enfim... tentamos indicar possíveis caminhos e algumas categorias que podem ser úteis para a construção de uma clínica sensível à complexidade das dimensões do humano e aos aspectos relacionais das intervenções. São categorias que remetem à dimensão ético- política da clínica, na medida em que apontam para a necessidade dos profissionais

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colocarem-se a serviço da defesa da vida, “mas como agentes que se deixam tocar, interferir pela vida que aí pulsa” (Onocko Campos, 2006). Elas pretendem propiciar a valorização da narrativa e da experiência do sujeito, bem como sua participação na elaboração de escolhas e das direções do percurso terapêutico, podendo servir como elementos reflexivos e balizadores para que as práticas assistenciais não sejam produtoras de controle e impotência, mas de autonomia e de capacidade reflexiva, crítica e de ação.

E então, perguntamo-nos: essa disponibilidade para a alteridade, essa qualidade relacional, é possível “ensiná-la”? Por meio de que tipo de formação o profissional poderia chegar a manter esse lugar? Para Oury (1991), essa sensibilidade para estar com o outro requer certa disponibilidade de saída da parte de quem se engaja nesse trabalho, uma disposição particular de sua própria personalidade. Mas requer também uma aprendizagem que não se adquire no ensino tradicional, nem se faz de maneira passageira ou de uma vez por todas. Trata-se de uma aprendizagem próxima daquela do artesão, algo da ordem de uma experiência. Vejamos a seguir.

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2. A formação como instância de mobilização do sujeito e do trabalho em saúde:

referenciais teórico-metodológicos