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Capítulo 3: VIDAS CONTROLADAS

3.2 Dos sentenciados

3.2.3 A rotina diária dos adolescentes sentenciados

3.2.3.1 A escola

Atualmente, no CEA, a rotina vem se (re) construindo a partir das especificidades contextuais de uma instituição que recebe adolescentes de duas facções criminosas rivais do Estado da Paraíba. O diretor da instituição relata essa rotina:

Hoje, no dia-a-dia, nós temos os atendimentos acontecendo, a escola funcionando em sistema de rodízio, com aula de segunda e quinta, terça e sexta pra grupos diferentes. A proposta do segundo semestre é ter essa aula de segunda a sexta para todos, pela manhã e à tarde, pra que não haja essa ruptura e esse conteúdo limitado devido à demanda. Hoje a casa tem mais que o dobro da capacidade de alojamentos, de alojados, e tem os atendimentos odontológicos, médicos, enfermagem de baixa complexidade, todos são feitos aqui, aquilo que não pode ser tratado a gente encaminha pro hospital. (...) Mas, as atividades estão acontecendo de forma fragmentada ainda (Ronaldo).

Essa fragmentação, citada pelo diretor da unidade, se refere à separação que precisa ser feita, nas atividades, por alas, devido a presença de adolescentes pertencentes a facções criminosas rivais na instituição.

Antes de existir o faccionismo no CEA, os adolescentes frequentavam a escola de acordo com o nível escolar; misturavam-se adolescentes de todas as alas de internação em uma sala de aula. Atualmente, isso não pode acontecer, de modo que os adolescentes são encaminhados às atividades por ala, pois quando se agrupam adolescentes de alas distintas, em uma mesma atividade, ou em um mesmo espaço, a existência do conflito é garantida.

Como já mencionado, no CEA há adolescentes que pertencem a duas facções criminosas rivais do Estado da Paraíba: os Estados Unidos e a Okaida. Esses adolescentes, muitas vezes, nem se conhecem, mas percebem-se e colocam- se como inimigos, construindo o seu cotidiano na instituição a partir dessa rivalidade.

Nesse sentido, embora o ECA direcione o cumprimento da medida socioeducativa de privação de liberdade a partir de regras específicas que buscam garantir o processo de ressocialização dos adolescentes internos, na prática, faz-se necessário um ajustamento entre aquilo que a lei orienta, aquilo que a unidade prega e aquilo que os adolescentes “aceitam” vivenciar.

O ECA preconiza que todos os adolescentes internos em centros educacionais para o cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade devem estar, obrigatoriamente, matriculados na escola. Para isso no CEA funciona uma unidade escolar estadual com o regime do EJA - Educação para Jovens e Adultos, presencial, onde os adolescentes deveriam ter aulas diariamente. No entanto, as aulas, hoje, estão restritas a dias e horários reduzidos, tendo em vista que os adolescentes se recusam a frequentar a mesma sala de aula que os seus inimigos. Deste modo, os horários escolares tiveram que ser fracionados para que os adolescentes das facções rivais não se encontrem em uma mesma sala de aula. Tal fato demonstra que o processo de ressocialização existente, hoje, no CEA, pautado na ideia do controle, acaba influenciando a (re) produção da delinquência (FOUCAULT, 1996).

Porém, materialmente, parece não haver outra saída. Meses antes da fragmentação das atividades, quando a escola ainda não se organizava de modo a intensificar o faccionismo na instituição, os adolescentes já se recusavam a frequentar as atividades, vejam o que diz um adolescente.

Faço nada o dia todo, num tem nada pra fazer. A escola não começou ainda, mas eu não tava indo não pra escola, mó da guerra aí. Ala B é Okaida, ala C é Estados Unidos. Mandacaru a maioria é Okaida. Mas, disseram agora que vai por ala, dividido, aí desse jeito todo mundo vai. Eu gosto da escola (Caio, 16 anos, primeira internação).

Deste modo, a escola passou a funcionar apenas duas vezes por semana para cada ala, tendo 2 (duas) horas de duração em cada dia, de modo a abranger todos os níveis e todos os adolescentes das alas distintas. Quando questionado sobre os dias em que vai para a escola, um adolescente diz: “Parece que é na terça e na quinta” (Pedro, 16 anos, oitava internação).

A fala desse adolescente representa uma reação negativa à instituição e me faz refletir sobre o não comprometimento destes com a rotina estabelecida. Os adolescentes internos no CEA parecem não ter motivação para participar de boa parte das atividades, frequentando as que eles dizem gostar, nos dias que sentem vontade. Essa falta de motivação talvez se deva ao fato de as atividades serem programadas e oferecidas pela instituição de uma maneira não dialógica, ou seja, não considerando a vivência, os valores, os gostos e as vocações dos adolescentes internos.

Assim, essas atividades, que deveriam ter uma perspectiva educativa e socializadora acabam sendo, para a instituição, um mecanismo de controle e para os adolescentes, um passatempo, uma maneira de eles ficarem mais tempo livre das grades dos quartos, ou uma maneira de obterem uma boa avaliação e, consequentemente, alcançarem uma progressão de medida ou liberação. A vice- diretora da casa coloca:

Tem aqueles que o processo de reeducação ou de educação já está mais claro na cabeça, eles querem realmente progredir, não querem entrar novamente em medida, eles procuram fazer tudo certo pra que a avaliação

deles vá boa pra o juizado, e eles consigam uma progressão de medida ou até a extinção, ter a medida já cumprida, no caso (Luana).

No CEA, a escola é uma das atividades que os adolescentes menos gostam, quer seja porque eles não foram acostumados com esse tipo de atividade fora da instituição, quer seja pelo perfil conservador que essa atividade adquire. Deste modo, embora todos os adolescentes internos estejam matriculados na escola, boa parte deles se nega a ir para a sala de aula quando o agente chama, e boa parte dos que a frequentam, tem “segundas intenções”, ou seja, frequentam a escola para adquirir algum benefício. A foto que segue mostra o esvaziamento que existe nas salas de aula.

Foto 25: Poucos adolescentes frequentam a escola Crédito: Arquivo do CEA

Pelas regras da casa, apenas os adolescentes que estão frequentando a escola têm direito a participar das oficinas e ir ao campo para o banho de sol. Para a instituição, esta é uma forma de “incentivar” os adolescentes a frequentarem a escola, pois muitos não querem assistir as aulas, mesmo sabendo que a frequência escolar contribuirá na avaliação semestral encaminhada ao juiz.

Como os adolescentes querem e gostam de participar das outras atividades, das oficinas e principalmente do banho de sol, muitas vezes, eles acabam indo à escola para poderem participar das outras atividades, mas não se empenham nos estudos.

Deste modo, pode-se dizer que o controle que a instituição exerce sobre a presença dos adolescentes na escola reflete uma política de ajustamento e

retributividade, que premia com a participação em outras atividades, os adolescentes com maior assiduidade escolar.