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Capítulo 1: TRAÇANDO O PERCURSO TEÓRICO, HISTÓRICO E

1.3 A privação de liberdade para Foucault

Nas linhas anteriores discuti como se dá, para Foucault, a relação entre o poder e o saber na prática social voltada aos indivíduos modernos, mais especificamente aos adolescentes. Porém, para dar conta da análise proposta por este trabalho, é preciso discutir também como se construiu sócio-historicamente as políticas de controle dos delitos.

Foucault (1996) assinala o suplício, praticado na Europa no século XVII como o início formal do controle do delito. Este tinha como objetivo submeter o corpo à dor, expondo publicamente o sofrimento do réu para servir de exemplo à população. A dor, o sofrimento e o escárnio ensinavam ao povo que a prática do delito traria punições ferrenhas.

Aos poucos se percebeu que o excesso de sofrimento causado pelos suplícios, refletia mais o sadismo exercido por aqueles que detinham o poder do que o controle do delito. Nesse sentido, muitas vezes, o mal causado pelos suplícios públicos levavam a multidão a ver o suplicado como vítima e o “juiz” como injusto. Esse arsenal espetacular de horror punitivo começou a ser criticado, pois se acreditava que os ritos de punição ultrapassavam a selvageria do crime.

Filósofos, teóricos do Direito, juristas, magistrados e parlamentares começaram a denunciar a tortura como um resto de barbárie proveniente de uma época anterior.

Na passagem do século XVIII para o século XIX se constituiu o que Foucault chama de “economia das penas”, um critério de proporcionalidade entre o tipo de delito cometido e o rigor da penalidade; nesse período há também o desaparecimento do suplício e o surgimento de um código considerado mais “humano”.

O destroçamento e a tortura públicos3 foram, gradativamente, substituídos por processos de punição mais estruturados e fundamentados. Segundo Foucault,

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Segundo Foucault essas práticas eram cruéis. Como exemplo pode-se citar os casos em que o condenado tinha os seus membros amarrados em quatro cavalos que eram soltos em direções

neste momento, fez-se necessário a construção de alguns princípios básicos para alicerçar a ideologia das penas:

1. [...] É preciso dar à pena toda a conformidade possível com a natureza do delito, a fim de que o medo de um castigo afaste o espírito do caminho por onde ele era levado na perspectiva de um crime vantajoso. [...] É preciso que o castigo decorra do crime; que a lei pareça ser uma necessidade das coisas, e que o poder aja mascarando-se sob a força suave da natureza.

2. Inverter a relação das intensidades, fazer que a representação da pena e de suas desvantagens seja mais viva que a do crime com seus prazeres. 3. O papel da duração deve estar integrado à economia da pena.

4. Pelo lado do condenado, a pena é uma mecânica dos sinais, dos interesses e da duração. Mas o culpado é apenas um dos alvos do castigo. Este interessa principalmente aos outros: todos os culpados possíveis. 5. No suplício corporal o terror era o suporte do exemplo: medo físico, pavor coletivo, imagens que devem ser gravadas na memória dos espectadores, como a marca na face ou no ombro do condenado. O suporte do exemplo, agora, é a lição, o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da moralidade pública. O suplício como festa é substituído pela pena como luto.

6. Se a recodificação for bem feita, se a cerimônia se desenrolar como deve, o crime só poderá aparecer então como uma desgraça e o malfeitor como um inimigo a quem se reensina a vida social. (FOUCAULT, 1996, p.94-100).

De acordo com estes princípios, percebe-se que a disciplina, um elemento quase inexistente nos suplícios, passou a ter grande relevância na pena. Nesse novo contexto, há um ordenamento arquitetônico, um conjunto de normas pré- estabelecidas que determinam uma ordem imutável das coisas e das pessoas, com o objetivo de ordenar o mundo pela disciplina.

Assim, passa a existir para cada tipo de “problema social” uma arquitetura própria de confinamento que Foucault denomina de “instituições disciplinares” ou “instituições austeras”. Por exemplo: os hospitais para os doentes físicos; os orfanatos para crianças abandonadas pelos pais; os manicômios para os doentes mentais; os mosteiros para os religiosos; os albergues para os mendigos; os internatos para os estudantes e, as prisões, para os criminosos.

Conforme ensina Foucault (1996) a disciplina passou a ser a técnica de poder, e esta, ao invés do suplício, penaliza os corpos através da ordem ao

distintas, em plena praça pública, de modo que o corpo do condenado era esquartejado com ele ainda vivo.

comportamento, do isolamento vigiado. Esta necessidade de humanização da pena deu origem à privação de liberdade que até os dias atuais é a medida cabível para adultos e adolescentes, todavia, aqueles se destinam a prisões, e estes aos centros educacionais.

Esses espaços são internamente organizados e disciplinarizados; os diferentes ambientes são estruturados por critérios funcionais, de forma a manter a ordem e a normalidade do funcionamento da instituição.

As tarefas imputadas aos indivíduos que se encontram nesses espaços também seguem essa lógica da organização, carregando consigo uma representação social, imputando-lhes um valor ou um demérito. Assim, o interno pode ser designado para a limpeza das latrinas ou para a preparação dos alimentos, dependendo do delito praticado ou de seu comportamento dentro da instituição.

Segundo Foucault (1996) foi sob esta lógica que se estabeleceu a distribuição do poder na hierarquia das instituições, porém, estas têm como lógica maior, o distanciamento dos internos, ou seja, quanto menor for o contato com o interno, maior será o poder atribuído. Este distanciamento, explícito na verticalização do poder, tem como função especifica proteger as autoridades do risco da convivência com criminosos, bem como, visa colocá-los acima de todos, controlando, através das normas existentes, a disciplina interna. Isto porque a disciplina demanda rotinas planejadas e controladas adequadamente.

Deste modo, enquanto no suplício enfatizava-se a submissão do corpo; na punição há um controle humanizado do corpo e uma submissão do comportamento através da disciplinarização.

Outro elemento destacado na perspectiva foucaultina da constituição do controle social do delito é a prisão.

A prisão que inicialmente foi questionada, sob a alegação de que ela escondia o criminoso da sociedade e, estando fora do alcance visual da população, o sofrimento deste não podia ser visível, não servindo, consequentemente, como exemplo; aos poucos, foi se tornando uma peça central dentro do sistema penal.

O que era imposto com uma dimensão de castigo, com o advento das prisões, ganha uma dimensão mais terapêutica - de combate à ociosidade; uma dimensão pedagógica – de ensinar o sentido da propriedade; e, uma dimensão econômica – preparando os indivíduos como proletários, ou seja, ajustando-os a um aparelho de produção social mais amplo (VOLPI, 2001).

Porém o que ocorre, na prática, dentro das instituições prisionais é bem diferente da teoria que lhes dá bases de sustentação. No interior das instituições prisionais, geralmente, a sentença do juiz é convertida em várias outras sentenças, estabelecida por normas construídas na correlação de forças entre os presos e a equipe técnica que os cerca. Ou seja, nessas instituições se estabelece todo um poder dentro do poder (VOLPI, 2001).

Mas, essa realidade construída dentro das instituições prisionais pouco importa para a sociedade, tendo em vista que, o que interessa para esta é a tranquilidade que parece ser adquirida através do afastamento do infrator do meio social.

Convém lembrar que, apesar deste processo histórico parecer se dá evolutivamente, o suplício, a pena, a disciplina e a prisão, encontram-se presentes, até hoje, nos processos punitivos dos sistemas penais, inspirando-os ou determinando-os.

Nesta perspectiva, percebe-se que, ao longo da história houve uma preocupação muito maior em construir uma explicação convincente das penas, do que em compreender o delito como parte integrante da dinâmica social.

O delito, nesse sentido, é tido como algo externo a sociedade, consequentemente, o tratamento ao individuo que o cometeu deve ser feito, também, fora da sociedade. Isto porque, ao retirar o indivíduo considerado como malfeitor do convívio social tem-se a sensação de haver retirado, também, o delito.