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Capítulo 3: VIDAS CONTROLADAS

3.3 Formas de controle e punição

Observando o CEA, percebe-se que ele é um campo minado, qualquer passo em falso pode resultar em conflito. Durante a realização da pesquisa, pude perceber que conflitos que envolvem os adolescentes e a instituição, provenientes do confronto daqueles com as normas da casa, são tão comuns e rotineiros como os conflitos que se estabelecem entre os próprios adolescentes.

Os conflitos, nesse espaço social, ocorrem por motivos aparentemente banais; um olhar, um gesto ou uma palavra, que para alguns pode não representar nada demais, para os adolescentes internos no CEA já é motivo suficiente para a explosão de conflitos. Desse modo, os conflitos podem ser vistos e analisados, nesse contexto, como necessários a formatação da dinâmica institucional.

Muitos conflitos que eclodem no CEA, entre os adolescentes, são provenientes da vida que estes levavam fora da instituição, de modo que ao se encontrarem nessa unidade de internação as relações anteriores são renovadas, tornando-se mais vivas e intensas.

Vejam como uma assistente social percebe os conflitos entre os adolescentes:

Esses conflitos? Esses conflitos ele às vezes até assim, de fora; porque a gente sabe que eles vêm pra cá, já tem os amigos, os adolescentes tem os grupos, que a gente sabe, que os adolescentes vivem muito em grupos, lá fora, seja de qualquer classe social, e também tem aqueles colegas que não são do grupo, e muitos assim chegam diz “olhe, fulano tá aí” “não me coloque no quarto de José não”. Por quê? Porque lá fora, tá entendendo, já chegaram com esse conflito, tá entendendo? Então isso aí é assim um dos cuidados, também; às vezes até dentro da unidade né, com toda a estrutura que tem, mas, os conflitos nunca vão deixar de existir, então assim, também eles ficam um com raiva do outro também, porque às vezes pequenas coisas, qualquer coisa irrita, né? (Carina)

Os conflitos mais sérios aqui eles se dão por questões, na maioria das vezes, violência de fora do centro, por exemplo. Há meninos que vem aqui que, de repente, já mataram amigos de outros meninos que estão aqui dentro. Aí nesses casos é complicado porque a gente precisa, primeiro, detectar isso pra evitar que haja um contato muito próximo, até a gente entender a dimensão desse conflito e saber se a gente pode tratar desse conflito aqui dentro ou não (Ronaldo).

Pelos relatos expostos, nas linhas anteriores, percebe-se que a instituição aponta o problema dos conflitos existentes no CEA como sendo proveniente apenas do meio externo, ou seja, das relações estabelecidas pelos adolescentes antes de adentrarem a instituição.

Como já mencionado, no CEA existem adolescentes de duas facções criminosas rivais que se estendem pelo estado da Paraíba. Assim, adolescentes que pertencem a essas facções não podem sequer se cruzar nos corredores da instituição, pois se sabe que um encontro casual pode desencadear em briga.

Porém, adolescentes da mesma facção, e adolescentes que dizem não pertencer a esse faccionismo, por vezes, também se envolvem em brigas no CEA, por questões, aparentemente, bobas e corriqueiras que se desenrolam dentro da instituição.

Muitas vezes os adolescentes começam brincando, fazendo piada uns com os outros, ou fazendo sequência (brincadeira onde eles ficam dando murro uns nos outros para ver quem aguenta mais) e a brincadeira gera uma desavença.

Outras vezes um comentário, um olhar ou um gesto, como já mencionado, leva um adolescente a suspeitar que esteja rolando alguma “malícia45” para o seu

lado, e este já se arma contra os outros.

Outra forma de conflito rotineiro no CEA é proveniente do confronto entre os adolescentes e as normas da instituição. Estes também se dão por questões aparentemente banais, que acabam ganhando grandes proporções pela peculiaridade em que acontecem. Segundo os técnicos, os adolescentes querem resolver as coisas ao seu tempo e ao seu modo, exigindo que a instituição funcione para servi-los. Vejam o que diz uma das psicólogas:

45 “Malícia” é uma expressão utilizada pelos adolescentes para se referir a maldade, armação de uns para com os outros.

Tirando as questões de fora, as questões daqui, eu acho uma questão de temperamento. Tem pessoas que têm padrões mais rígidos, levam tudo mais a sério. Têm outros que são “moleques”, que levam tudo na brincadeira; eles têm umas questões assim, eu vejo muito, eles são educados sem muitos direitos, né, eles lutam pelos direitos deles, dentro da comunidade, são adolescentes que não têm direito a alimentação, não tem direito a conforto em casa, não tem o básico, né? Então, aprendem a lutar pelo que precisam. Então eles pensam muito neles. Aí quando chega aqui vai na mesma linha, de lutar pelos direitos, então cada um quer ser, e também essa questão da idade né? O que prevalece é ser forte, quem manda mais, quem dita as normas, só que nós temos normas, eles não precisam fazer as normas, e a gente tá combatendo, nesse sentido, né? Nós estamos aqui, pra dar os direitos, não é o que eles querem num é? Não é tudo que o adolescente quer, que se dá não, num é? O que ele necessita? A gente tá aqui, pra dar a necessidade dele, num é? Eles precisam ter higiene, num é? De ir pra escola. São as necessidades, não é o que eles querem. Então, é diferente, quando eles chegam aqui, eles têm os direitos básicos atendidos, né? Mas eles continuam lutando, pra se impor, pra querer, pra mostrar poder, quem manda no pedaço (Estela).

O regimento interno do CEA prevê os deveres dos adolescentes em um de seus artigos:

Art. 16º - São deveres do interno, o cumprimento das seguintes obrigações: I – Participação nas salas de aula e oficinas;

II – Não conduzir instrumentos de trabalho para os quartos;

III – Manter o bom comportamento, disciplina e cumprimento fiel das medidas;

IV – Obedecer ao educador na execução das tarefas e ordens recebidas; V – Manter-se contrário a movimentos de fugas, brigas rebeliões, motins, etc.;

VI - Preservar sua higiene pessoal e asseio do quarto ou alojamento;

VII – Cumprir os horários tais como: de acordar, alimentação, lazer, estudo, atividades físicas, desportivas, profissionais, religiosas, etc.;

VIII – (não conta)46

IX – Proibida a entrada de eletro-eletrônicos nas salas de aula e quartos; X – Não riscar ou afixar cartazes ou figuras nas paredes dos quartos e/ou alas;

XI – Reportar-se a funcionários, visitantes e autoridades, tratando-os respeitosamente.

Como já mencionado nesta tese, o CEA, como toda e qualquer instituição de caráter totalitário, possui e produz uma série de dispositivos disciplinares com vistas a manter um controle rígido do comportamento dos adolescentes, pautando-se em uma lógica retributiva/punitiva (FOUCAULT, 1996).

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Por outro lado, os adolescentes desenvolvem uma série de estratégias para reagir ao processo de ressocialização proposto pela instituição, e construir ou dar continuidade a um processo de socialização característico da realidade na qual estavam inseridos, antes da privação de liberdade.

Por sua vez, a instituição, além das normas e regras, também trabalha com uma série de medidas disciplinares que vão punir as chamadas faltas disciplinares, que podem ser de três tipos: leves, médias e graves

O regimento interno prevê as faltas e as consequências, ou punições, para estas, da seguinte maneira:

Art. 17º - As faltas classificam-se em leves, médias e graves: I – Comete falta leve o interno que:

a) Comercializar objetos;

b) Não conservar os objetos recebidos da Instituição; c) Entrar em locais não permitidos pela Instituição; d) Apresentar-se no pátio vestido inadequadamente; e) Pronunciar palavras de baixo calão;

f) Promover tumultos batendo em grades e outros; g) Riscar ou afixar cartazes.

Consequências:

1) Advertência verbal feita pelo Diretor ou Vice-Diretor; 2) Registro na ficha individual;

II – Comete falta média o interno que: a) Repetir três faltas leves;

b) Desrespeitar qualquer pessoa na Instituição, colegas e outros; c) Recusar-se a cumprir ordens recebidas e normas da Instituição; d) Dificultar apuração de faltas;

e) Responder pela infração do outro;

f) Recusar-se a participar das atividades diárias. Consequências:

1) Recolhimento ao quarto durante os horários das atividades recreativas e banho de sol até 05 (cinco) dias; havendo reincidência da falta média, o período será dobrado;

2) Ficará sem visita um dia por semana; 3) Registro na ficha individual.

III – Comete falta grave o interno que: a) Repetir duas faltas médias;

b) Agredir fisicamente qualquer pessoa dentro da Instituição; c) Tentar ou ferir qualquer pessoa dentro da Instituição; d) Roubar, furtar ou danificar objetos alheios;

e) Tentar ou fugir da Instituição;

f) Incentivar ou participação de motim, rebelião ou qualquer outro movimento contrário a ordem e a disciplina;

g) Usar ou portar drogas e/ou armas de qualquer espécie; h) For flagrado na prática de ato sexual, libidinoso ou obsceno; i) Danificar o patrimônio;

j) Ameaçar qualquer pessoa. Consequências:

1) Será afastado do convívio coletivo e recolhido em ala de reflexão, pelo período de 05 (cinco) a 30 (trinta) dias acordo com a gravidade do ato cometido. Ressalvadas a frequência a Escola;

2) Comunicação a autoridade competente para instauração de outros procedimentos, quando se tratar de fato tipificado como crime;

3) Registro na ficha individual;

4) Sem direito a visitas e uso do telefone.

Na prática, nem todos os deveres são cumpridos pelos adolescentes e nem todos os descumprimentos são castigados, de modo que a objetividade prevista no regimento interno da casa é subjetivado, refletido e aplicado a cada caso em concreto, a partir da dinâmica institucional que vem sendo descrita nesta tese.

Sobre as medidas de punição que são tomadas pela instituição quando há mau comportamento dos internos, seja por agressão entre eles, rebelião ou confronto com os funcionários, uma psicóloga afirma que:

Depende do que ele faz, porque da mesma forma que quando o nosso filho faz uma coisa errada em casa a gente castiga e proíbe de ver televisão, por exemplo, aqui a gente também precisa fazer com que eles sintam que estão errados em agir assim. Às vezes há a proibição do banho de sol que eles gostam muito, de visitas por um certo período, e a medida mais grave é o isolamento, quando ele fica totalmente isolado e não sai do quarto pra nada, normalmente dura uma semana, mas depende do caso, é como se fosse um “castigo” (Ruth).

Ainda sobre as punições atribuíveis aos adolescentes, dentro da instituição, cumpre citar as palavras do Diretor:

Quando ocorre algum transtorno a primeira medida tomada é avaliar o contexto (por que, como, e o que aconteceu). Hoje há o Conselho Disciplinar que tem a função de discutir e deliberar sobre as intervenções que precisam ser feitas pelo setor técnico. Pode acontecer a proibição de visitas e o isolamento, mas estamos tentando reverter isso, porque pelo ECA só quem pode restringir visitas é o Juiz e o isolamento não possui o caráter pedagógico previsto (Ronaldo).

No que diz respeito a apuração e punição das faltas disciplinares, o regimento interno orienta que:

Art. 18º - As faltas leves serão executadas pelo Líder de plantão, com a devida comunicação à direção.

Art. 19º - Fica instituído o conselho disciplinar formado pelo diretor, psicólogo, assistente social e coordenador de disciplina para, sob a presidência do primeiro, apurar e decidir as faltas graves.

Parágrafo Único – Não concordando o defensor com a decisão tomada pelo Conselho Disciplinar, poderá promover o que julgar pertinente.

Durante a pesquisa, pude observar que o conselho disciplinar, na prática, não funciona nessa instituição47, de modo que há um processo de investigação para se apurar o que, de fato, aconteceu, mas as punições são sempre decididas pelo diretor, depois de ouvir os envolvidos no conflito e as possíveis testemunhas.

Os adolescentes, por sua vez, também não dispõem de mecanismos e estratégias para solucionar os problemas que os envolvem, preferindo deixar que a instituição tome tais providências.

Pelo exposto, percebe-se que o CEA, como um modelo de instituição de privação de liberdade, ultrapassa as ideias propostas por Foucault e Goffman, na sua organização cotidiana, se formatando a partir de um ajustamento entre as regras e normas institucionais e as regras e normas que os adolescentes constroem, embora a instituição faça todo um esforço para trabalhar a partir da lógica retributiva- punitiva descrita na normatização interna.

Art. 20º - O interno que no cumprimento da medida, apresentar bom comportamento, cumprindo rigorosamente com as normas estabelecidas e contribuindo com a ordem e a disciplina, em sua ficha constará a informação sobre o bom comportamento do qual será informado o juiz da infância e da juventude por ocasião do encaminhamento do seu relatório.

Em síntese, pode-se dizer que, as medidas socioeducativas de privação de liberdade e, consequentemente, o processo de ressocialização, vivenciado pelos adolescentes internos no CEA, hoje, não constituem um fator de ruptura com a socialização já construída por esses adolescentes antes do ingresso na instituição, e por vezes acabam por reproduzir ou manter o processo de socialização proveniente dessa realidade social externa.

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Esse conselho deveria ser formado por funcionários da instituição, técnicos e agentes sociais, mas esses funcionários dizem não ter tempo para mais essa tarefa, assim como, demonstram não quererem estar ocupando o papel de “juiz”.

No capítulo que segue, aprofunda-se a discussão das dinâmicas relacionais que os adolescentes estabelecem entre si no CEA; das relações estabelecidas entre os adolescentes e os demais atores que compõem esse cenário; e das relações que esses estabelecem com o mundo exterior, a partir da perspectiva bourdieusiana de campo, onde as relações se constroem de forma desigual, como relações de poder.