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Capítulo 1: TRAÇANDO O PERCURSO TEÓRICO, HISTÓRICO E

1.7 A gestação do Estatuto da Criança e do Adolescente

Os acontecimentos relatados anteriormente influenciaram, de forma direta ou indireta, o Projeto do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Fernando Collor de Melo foi eleito Presidente da República Federativa do Brasil no ano de 1989, assumindo o cargo em 01 de janeiro de 1990. Logo no início de seu governo a FUNABEM foi extinta. Criou-se a Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência – FCBIA e o Projeto Ministério da Criança (extinto em 1992); ambos apoiaram o projeto do ECA.

Em 28 de junho de 1990 o Projeto do ECA foi aprovado pela Câmara e em 29 de junho do mesmo ano, homologado pelo Senado. Enfim, no dia 13 de julho de 1990 o Presidente Fernando Collor de Melo sancionou a Lei 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente, que foi publicada no Diário Oficial da União no dia 16 de julho de 1990, entrando em vigor no dia 14 de outubro do mesmo ano (SANTOS, 1992).

O ECA conta com 267 artigos, todos destinados à criança e ao adolescente, pautados na Doutrina da Proteção Integral e reconhecendo esta população como sujeitos de direito, como verdadeiros cidadãos. Segundo Costa (1991), esse Estatuto é considerado como uma Constituição da Criança e do Adolescente no Brasil.

Nesse momento, a FCBIA e o Fórum DCA passaram a lutar para garantir a incorporação do ECA às diversas instâncias direcionadas à criança e ao adolescente. Segundo Costa (1991, p. 32) algumas dessas lutas tiveram bons resultados:

1. A implantação de serviços de assistência médica, psico-social e jurídica a crianças e adolescentes vitimizados (do tipo SOS Criança) em várias localidades do país.

2. O fechamento e substituição de internamentos por outras alternativas de atendimento.

3. A criação de plantões interinstitucionais de atendimento integrando segurança, justiça e bem-estar social.

4. Organização de Centros de Defesa (assistência jurídico-social) em várias capitais.

5. Criação de Coordenadorias do Ministério Público na área da infância e da juventude em vários estados.

6. Aprimoramento da técnica de ação do policiamento militar e viabilização da incorporação do Estatuto à ação policial.

7. Montagem de um Sistema Nacional de Capacitação à Distância na área de crianças e adolescentes em circunstâncias especialmente difíceis.

Esta listagem traça um panorama das melhorias diretas ocorridas com o advento do ECA, entretanto, este não se legitimou como “melhoria real”, devido principalmente, a falta de comprometimento por parte do Estado em fazer os reordenamentos necessários à sua aplicabilidade.

Além do artigo 227 da CF de 1988, o ECA regulamentou o artigo 204 da Carta Magna, que prevê a participação popular na formulação das políticas públicas e no controle das ações já implementadas através dos Conselhos Nacional, Estaduais e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Art. 204: As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recurso do orçamento da seguridade social, previstos no art.195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:

I – descentralização político-administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;

II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.

Foram estes órgãos juntamente com a FCBIA e o Fórum DCA que conduziram o processo de legitimação do Estatuto da Criança e do Adolescente em meio à sociedade brasileira.

Tudo coadunava para a legitimação do Estatuto. Neste momento, fazia-se necessário que a população tomasse conhecimento da Lei 8.069 para que pudesse avaliar e solicitar seus direitos. Foi nessa frente de divulgação que passaram a agir as Organizações Governamentais (OG’s) e, principalmente, as Organizações Não Governamentais (ONG’s).

A tarefa era divulgar os elementos constitutivos do ECA, seus artigos, para aquela parcela da população que, comumente, tem seus direitos violados, até mesmo pela falta de conhecimento. Assim, o Estatuto tinha que ser divulgado em centros e escolas comunitárias e públicas, associações comunitárias e de moradores, clubes de mães, etc. Nesse âmbito foram realizadas várias palestras, distribuídos panfletos e cópias do próprio Estatuto, além da participação de algumas rádios e emissoras de televisão.

Entretanto, parece que os recursos humanos e financeiros não foram suficientes para fazer uma ampla divulgação do Estatuto, ficando este submerso na construção social e simbólica atribuída por uma parcela conservadora da sociedade.

Assim, desde a sua aprovação, o ECA enfrenta uma deslegitimação, principalmente no que se refere à aplicabilidade das disposições que tratam da prática do ato infracional, haja vista que foi construído um lobby que caracteriza o Estatuto como responsável pelo aumento da criminalidade e da delinquência.

O ECA era, e é, tido como uma ameaça, para essa parcela conservadora da sociedade, pois coloca pessoas que estavam a margem da sociedade, em condições de igualdade de assistência e direitos. Entretanto, essa igualdade legal, nunca foi viabilizada na prática.

Vários foram os fatores que contribuíram para o Estatuto da Criança e do Adolescente se tornar um instrumento legal perseguido e desmoralizado. Nesse sentido, Santos (1992, p.77) coloca que:

O poder judiciário, as organizações policiais e setores do empresariado têm sido os segmentos mais refratários à implantação do Estatuto. Nestes setores surgem, com frequência, declarações enfatizando o Estatuto como responsável pelo aumento da delinquência: “Estatuto dá carona à marginalidade”; “Depois do Estatuto aumentou a presença de menores nas ruas”; “O Estatuto é inócuo, é utópico”.

Com base nessa discussão se criou um discurso que pregava que o ECA protegia as crianças e os adolescentes infratores, que seus interesses estavam sempre em primeiro lugar, etc. Tudo isso para tentar impedir a implementação de um

novo Diploma Legal que instituísse essa parcela da população como sujeitos de direito.

A ideia de que as crianças e os adolescentes cometeriam crimes respaldados pelo Estatuto se disseminou na sociedade brasileira. Porém, essa ideia é fruto de um desconhecimento acerca do ECA.

Nesse sentido, a imagem do Estatuto da Criança e do Adolescente foi se disseminando como um instituto legal voltado para a proteção de “criminosos” que ainda não haviam atingido a maioridade penal.

Nesse contexto, pode-se perguntar: será que o Estatuto, divulgado como superprotetor, exerce mesmo uma superproteção com relação aos adolescentes tido como infratores?

Vejam algumas analogias:

Quando um adulto comete um crime, será que ele o faz por que sabe de seus direitos? Quais sejam: o de só ser preso em flagrante delito ou mediante determinação escrita de autoridade judiciária competente, desde que obedecidos os ditames legais; o direito de ampla defesa e do contraditório; o direito a integridade física e moral, ainda que detido ou preso, cabendo às devidas autoridades assegurá- la; o direito a defesa técnica elaborada por advogado, mesmo quando este não tem condições financeiras de bancar essa defesa, cabendo ao Estado promovê-la através da Defensoria Pública, etc.

Esses direitos são assegurados aos cidadãos considerados como penalmente imputáveis. Dentre estes direitos existe ainda outro direito, o pagamento de fiança, que consiste em um relaxamento da prisão, mesmo que esta tenha ocorrido em caso de flagrante delito, podendo o réu responder o processo em liberdade, desde que o crime ou contravenção penal cometido seja legalmente afiançável.

Entretanto, no Estatuto da Criança e do Adolescente o instituto da fiança não existe, assim, para o adolescente, o indivíduo que ainda não tem 18 anos completos e é flagrado em prática de ato infracional, o ECA determina que:

Art. 172: O adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, logo, encaminhado à autoridade policial competente [...].

Art. 173: Em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa, a autoridade policial, sem prejuízo do disposto nos arts. 106, parágrafo único e 107, deverá:

I – Lavrar auto de apreensão, ouvidas as testemunhas e o adolescente; II – Apreender o produto e os instrumentos da infração;

III – Requisitar os exames ou perícias necessárias à comprovação da materialidade e autoria da infração;

Parágrafo único – Nas demais hipóteses de flagrante, a lavratura do auto poderá ser substituída por boletim de ocorrência circunstanciada.

Caso o adolescente não seja libertado, e isso é avaliado conforme a gravidade do ato cometido, do risco que corre ou que oferece à sociedade – o adolescente será encaminhado ao Ministério Público que, por sua vez, poderá fazer representação ao Juiz da Infância e da Juventude para aplicação de medida socioeducativa. O ECA determina como medidas socioeducativas:

Art. 112: Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I – advertência;

II – obrigação de reparar dano;

III – prestação de serviço à comunidade; IV – liberdade assistida;

V – inserção em regime de semiliberdade;

VI – internação em estabelecimento educacional; [...]

Convém ressaltar que a Lei 8.069/90 não considera os adolescentes como “absolutamente incapazes”, ela coloca-os na condição de pessoas capazes de responder pelos atos infracionais praticados; na realidade o que os adolescentes são, tanto para a Constituição Federal de 1988 como para o Estatuto da Criança e do Adolescente, é “penalmente inimputáveis”, ou seja, a eles não pode ser imputada pena.

Entretanto, o ECA prevê, para todos os adolescentes que se encontram no intervalo de idade entre 12 e 18 anos, “medidas socioeducativas” que podem ir desde a advertência até a internação em estabelecimento educacional.

Para esses estabelecimentos educacionais são encaminhados os adolescentes que vão cumprir medida socioeducativa de privação de liberdade e/ou aqueles que irão aguardar a sentença do Juiz da Infância e da Juventude. Neste

último caso eles só poderão permanecer internados por, no máximo 45 dias, conforme determina a lei:

Art. 108: A internação antes da sentença, pode ser determinada pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias.

Parágrafo único – A decisão deverá ser fundamentada e basear-se em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida.

Mas, o texto do Estatuto da Criança e do Adolescente nunca foi divulgado e clarificado de forma ampla, tendo em vista que para os grupos conservadores era, e é mais interessante trabalhar com o desconhecimento ou uma interpretação enviesada desse instrumento legal.

Infelizmente, de forma geral, o ECA ainda é desconhecido na mesma proporção em que dele se tem uma imagem tão desfavorável. Raras não são às vezes em que se ouvem frases como: “o Estatuto é superprotetor”; “quero ver se você vai continuar defendendo esse Estatuto no dia em que tiver uma filha estuprada por uma ‘criancinha’ dessas”; “essa lei é muito bonita, mas só no papel”; “esse Estatuto dá direitos demais a esses moleques malandros”; “é por isso que eles não param de roubar, matar, a lei passa a mão na cabeça deles”; etc.

Como já demonstrado, o ECA não assegura ao autor do ato infracional a remissão de seu erro, muito pelo contrário, o ECA especifica as medidas socioeducativas que se pode e se deve adotar em cada caso específico

É conveniente mencionar que o ato infracional é o crime ou a contravenção tipificada, respectivamente, no Código Penal Brasileiro e na Lei de Contravenções Penais; nesse sentido, o que se altera é apenas à medida que se adota com relação às pessoas que comentem tais atos, não o ato em si, ou seja, o ato criminoso tipificado é o mesmo, seja o individuo penalmente responsável ou não.

Embora as falácias sejam muitas, o que se pode perceber é que a Lei 8.069/90 não é menos rígida que o Código de Menores na indicação das medidas socioeducativas. O ECA se diferencia por definir melhor as medidas socioeducativas, as circunstâncias e as condições em que elas podem e devem ser

aplicadas, bem como delimita a quem cabe a sua aplicação, restringindo as atribuições de cada Poder.

Neste ponto há realmente uma diferença com relação ao Código de Menores que, por sua vez, atribuía única e exclusivamente ao Juiz de Menores o poder de decidir o destino daquela parcela da população.

Tendo como base a trajetória descrita nas linhas anteriores, discutirei ao longo desta tese, a medida socioeducativa de privação de liberdade como um problema vivenciado, nos dias atuais, tendo em vista que se acredita que a internação dos adolescentes, tidos como autores de atos infracionais, influencia o processo de construção das identidades desses adolescentes, a partir das relações que eles constroem e das experiências que eles vivenciam, nesses centros educacionais.

Nesse momento, torna-se redundante qualquer discurso sobre a intencionalidade de se fazer do ECA um instrumento legal inviável, da mesma maneira que se buscou transformar as crianças e adolescentes que não são, de modo algum, nenhuma efígie de candura, pureza, sensatez e bondade, em monstros inescrupulosos e cruéis.