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Capítulo 2: A PESQUISADORA EM MOVIMENTO: TRAÇANDO O

2.3 Os passos seguintes

Segundo Oliveira (1996), o processo de coleta22 e análise de dados nas Ciências Sociais são compostos por três atos fundamentais, realizados pelo pesquisador na composição do seu ofício: olhar, ouvir e escrever.

Assim, no campo, o cientista social tem que ter capacidade de olhar o que realmente interessa e ouvir aquilo que quer saber; mas principalmente, deve ter sensibilidade para olhar, ouvir e registrar aquilo que não está claramente exposto, o que se apresenta nas entrelinhas.

É a partir do que o pesquisador vê e ouve que ele escreverá. O trabalho de coleta de dados em si é composto por essas três ações, e o momento do escrever não se apresenta como menos importante, pois é a partir do que se tem escrito que se delineará o trabalho final da pesquisa. Isto porque o que se vê e o que se ouve, muitas vezes, se perdem com o tempo, e é o registro escrito que facilita as lembranças do cientista. Por isso, é interessante que, no campo, o pesquisador anote até mesmo as coisas que não parecem importantes, pois esses detalhes podem constituir-se em elementos de grande valia na hora da análise dos dados, na fase pós-campo.

O escrever compõe-se assim, não apenas daquilo que é dito pelos pesquisados, mas também por aquilo que não é dito, ou seja, das observações, das impressões, das emoções e de tudo o que permeou o contato entre o pesquisador e o pesquisado.

Mills (1989) apresenta de maneira enfática a necessidade de o cientista social possuir o hábito do registro escrito ou, como ele diz, o hábito de manter diários de campo ou arquivos, onde ele possa registrar tudo o que vê, ouve e presencia, bem como aquilo que é ocultado, o que não é dito, aquilo que é dissimulado.

22 Utilizarei o termo “coleta de dados”, neste trabalho, para tratar os dados que “construí” no campo. Não acredito que em nenhum campo existam dados prévios esperando para ser coletado. Os dados de uma pesquisa são construídos, processualmente, pelo pesquisador em sua estada no campo, a partir de interesses, olhares e interações específicas.

Este autor acrescenta que o arquivo deve conter até as ideias vagas que surgem na mente do pesquisador, pois é a partir dessas anotações que sairão os seus trabalhos futuros. Ele ressalta, ainda, que se o pesquisador mantém um bom arquivo, ele possui material não apenas para uma pesquisa, mas para várias, desde que ele saiba arrumar e rearrumar as ideias e informações ali contidas.

Outro fator importante que deve estimular o pesquisador a escrever cotidianamente, é o fato de que, muitas vezes, quando se está em campo, não se tem contato com outros pesquisadores, pessoas ligadas a sua profissão, ou seja, não se tem com quem compartilhar suas ideias, dúvidas e inquietações, e o arquivo pode servir para que o pesquisador registre-as e depois possa compartilhá-las no seu ciclo profissional, entre os seus pares.

Deste modo, muitas vezes, uma ideia que parece vaga e sem muito sentido pode amadurecer em algo grandioso e produtivo, como adverte Mills (1989, p.213):

Mantendo um arquivo adequado, e com isso mantendo hábitos de auto- reflexão, aprendemos a manter nosso mundo interior desperto. Sempre que experimentamos forte sensação sobre acontecimentos ou ideias, devemos procurar não deixa-las fugir, e ao invés disso formulá-las para nossos arquivos, e com isso estaremos elaborando suas implicações, mostrando a nós mesmos como esses sentimentos ou ideias são tolos, ou como poderão ser articulados de forma produtiva. O arquivo também nos ajuda a formular o hábito de escrever. Não podemos ‘manter desembaraçada a mão’ se não escrevemos alguma coisa pelo menos toda semana. Desenvolvendo o arquivo, podemo-nos experimentar como escritor e, assim, como se diz, desenvolver nova capacidade de expressão. Manter um arquivo é empenhar-se na experiência controlada.

Por tudo isso, qualquer pesquisador, principalmente aquele que se dedica a pesquisa social, deve cultivar o hábito de escrever, de registrar, até mesmo os seus pensamentos mais vagos e pueris, principalmente na fase do trabalho de campo, pois esses podem ajudar quando o mesmo partir para o processo de análise dos dados e “finalização” do trabalho.

No entanto, é importante ressaltar que o excesso de dados pode prejudicar o trabalho pós-campo, pois o pesquisador pode se perder em meio a uma infinidade de dados soltos que, por mais que sejam informações ricas, por si só, não dizem nada. Por isso, a forma como os dados são registrados também é de fundamental

importância, pois são esses registros que vão alicerçar as bases para a elaboração do trabalho final de pesquisa, e é a partir da forma como esses dados estão organizados que o pesquisador vai guiar o trabalho pós-campo, de análise e construção descritiva.

Depois dos primeiros encontros exploratórios, já descritos nesse trabalho, eu passei a frequentar o CEA três ou quatro dias por semana, sempre de segunda a quinta-feira, tanto pela manhã como à tarde. Nesse momento, intensifiquei a observação e analisei as fichas individuais contidas nas pastas dos adolescentes.

Parti do princípio de que a observação, de acordo com Blanchet (1987), é fundamental para a compreensão das características que envolvem um grupo ou organização específica, uma vez que a coleta de informações parte da percepção do observador acerca dos acontecimentos ocorridos na situação de campo. Ao levar o pesquisador para o interior do mundo social investigado, no intuito de focalizar as peculiaridades do campo e as interações entre seus atores, permite uma melhor compreensão do universo da pesquisa.

Assim, a apreensão da dinâmica encenada pelos atores da pesquisa se deu através de um esforço etnográfico, de descrição e interpretação das práticas e das rotinas que permeiam as relações inerentes ao campo, permitindo um conhecimento mais detalhado de seu cotidiano. Neste intuito, optei pela confecção de um diário de campo, através do registro das percepções obtidas acerca dos acontecimentos ocorridos.

O diário de campo, que me acompanhou em todas as etapas da pesquisa, compreende o relato escrito daquilo que ouvi, vi, experenciei e pensei durante o trabalho de campo. Este recurso se revelou fundamental para a manutenção da minha autoconsciência, auxiliando no equilíbrio entre ser observadora, ser participante e ser observada. A confecção desse diário de campo também teve grande importância para a compreensão das minhas mudanças ao longo do tempo em que o trabalho foi realizado, me auxiliando na percepção de como os dados anotados influenciaram a minha compreensão sobre o universo social investigado (BOGDAN e BIKLEN, 1994).

Segundo Becker (1977), é comum que grupos excluídos socialmente ou considerados desviantes apresentem meios de proteção em relação a indivíduos estrangeiros ao grupo, através de mecanismos de defesa como o silêncio, a dissimulação e o segredo. De acordo com o autor, estudar estrangeiros para a sociedade, sendo considerado estrangeiro pelo grupo, não é uma tarefa fácil. Neste caso, encontrá-los, persuadi-los e conquistar sua confiança exige tempo, pois a observação direta sobre sua vida e seus espaços de pertencimento pode significar penetrar zonas desconhecidas, imprevisíveis e eventualmente perigosas.

Por isso, o contato inicial com os atores da pesquisa foi tecido pela observação, pelas anotações no diário de campo e por conversas informais, sem o uso de gravador ou de outras formas explícitas de registro, para que o diálogo se estabelecesse de forma mais descontraída e natural, permitindo-me posteriormente ultrapassar certas barreiras amparadas pela desconfiança (SILVA & MILITO, 1995) e chegar a uma seleção de possíveis informantes para a fase posterior do trabalho, as entrevistas.

Concomitantemente à observação, fiz uma leitura detalhada das pastas dos adolescentes internos, sentenciados. Nesse momento, senti a necessidade de fazer um recorte, resolvi trabalhar apenas com os adolescentes sentenciados. Essa escolha se deu porque os adolescentes sentenciados passam, no mínimo, seis meses na instituição, enquanto os que estão na provisória passam, no máximo 45 dias, caso não seja sentenciado. Como o objetivo deste trabalho perpassa a compreensão das teias de relações/interações sociais (re) construídas dentro da instituição, achei que a questão temporal fizesse diferença nesse sentido. No entanto, durante o desenvolvimento da pesquisa, nas conversas informais e nas entrevistas, acabei dialogando também com adolescentes que estavam no CEA provisoriamente, pois percebi que estes também participam da construção das sociabilidades na instituição.

Assim, analisei 99 pastas de adolescentes que se encontravam sentenciados no CEA. Apesar de ler atenciosamente as fichas, onde constam os dados pessoais do adolescente, seu histórico familiar, social e do crime, bem como seu comportamento na instituição, relatados nas avaliações encaminhadas ao juizado, semestralmente; registrei apenas aquelas informações que interessavam

para traçar o perfil dos adolescentes internos. A leitura das demais informações ajudou a compreender como os adolescentes se comportam na instituição, quando e como são atendidos, o que falam nos atendimentos, etc. Tais informações me serviram para compreender melhor a instituição, na sua complexidade.