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Capítulo 1: TRAÇANDO O PERCURSO TEÓRICO, HISTÓRICO E

1.8 O adolescente e suas teias relacionais

Nesta tese, compreendo a adolescência como uma construção histórica específica que adquire um sentido de moratória, por constituir-se como o período de espera vivenciado pelos indivíduos que não são mais crianças, mas que ainda não se incorporaram à vida adulta.

A adolescência, biologicamente, sempre existiu, mas essa fase de vida só começou a ser compreendida como um conceito teórico no momento em que o desemprego, na sociedade capitalista moderna, aliado à necessidade de aumentar o tempo de escolarização, em função da demanda tecnológica, criou a necessidade de retardar o ingresso dos jovens no mercado de trabalho. Nesse contexto, o tempo de escolarização aumentou, e os adolescentes passaram a ficar mais tempo sob a

tutela dos pais. Ariès (1978), quando discute esse período, ressalta que passamos de uma época em que a adolescência não existia, para uma época em que a adolescência é a idade favorita.

Nesse contexto, a adolescência abre uma gama de possibilidades ao sujeito, que faz com que ele se sinta mais livre; ao mesmo tempo em que a sociedade cobra responsabilidades pelo fato de não se ser mais criança, a liberdade que se concede é “limitada”, pois se considera que esse sujeito ainda não tem discernimento para enfrentar o mundo adulto.

Alguns estudiosos defendem que essa é uma fase da vida biologicamente determinada, vivida de forma homogênea por todas as pessoas, independentemente da cultura a que pertençam. Outros vêm produzindo significados que são “naturalmente” atribuídos a essa etapa da vida, como a rebeldia, a instabilidade emocional, o questionamento constante, a irresponsabilidade, a busca da identidade, etc.

Determinar a faixa etária da adolescência constitui uma difícil tarefa para os estudiosos do tema, pois além das mudanças biológicas (comuns a todos), os aspectos socioculturais (variantes entre as diversas culturas) influenciam o indivíduo em desenvolvimento. Neste sentido, Campos (1986, p.32) afirma:

Os adolescentes não podem ser considerados somente do ponto de vista de seus conflitos e processos internos, mas, pelo contrário, devem ser considerados biossocialmente, com a devida ênfase nos sistemas de valores e pressões dos grupos que os circundam e com ênfase, às vezes, nos valores em conflito, dos múltiplos papéis que precisam assumir.

Alguns fenômenos característicos da adolescência são definidos por Fiorelli e Mangini (2009), dentre eles: a vulnerabilidade do adolescente às mensagens que induzem à violência e à transgressão, a percepção de falta de espaço no mundo adulto e o poder do grupo.

Este último fenômeno é muito importante para o adolescente, sendo uma fonte de segurança, uma forma de identificar-se com os outros. O grupo de amigos constituído nessa fase reflete o sentimento de “fazer parte”, algo socialmente difícil de ser alcançado na adolescência.

Outro traço marcante da fase em estudo é o antagonismo ao comportamento dos pais, fruto da transição do pensamento mágico da infância para o exercício do pensamento lógico que ocorre na adolescência. Conforme Campos (1986) é natural que neste período as ideias da família sejam consideradas atrasadas pelo adolescente.

A insegurança, a vulnerabilidade, os aspectos físicos, as cobranças da sociedade, as exigências do mundo capitalista, os conflitos individuais, o desenvolvimento da consciência de si mesmo, o abandono do imaginário típico da infância, o despertar do senso crítico, são alguns dos obstáculos enfrentados nesta fase. Portanto, torna-se notável o caráter particular dos indivíduos que estão percorrendo este momento.

Cumpre ressaltar que a construção da capacidade de superação desses obstáculos da adolescência é iniciada na infância. Nesse sentido, Campos (1986, p.51) afirma que “A criança cujas necessidades de carinho e afeição foram satisfeitas comumente tem os fundamentais sentimentos de segurança que a capacitam para enfrentar o ‘stress’ da adolescência, como um considerável grau de resistência.”

Por tudo isso, o fato de um adolescente cometer um crime, muitas vezes de forma violenta e cruel, causa uma inquietante indignação social, motivada pelo contraste entre a violência e a ideia de que a adolescência ainda conserva alguns atributos ingênuos, infantis. Esta indignação traz à tona a concepção conservadora de que o fator incitante para a prática de crimes por adolescentes está na pouca severidade das punições.

Como já indicado, a legislação pertinente as crianças e adolescentes, Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), determina que o adolescente em conflito com a lei é aquele indivíduo entre 12 e 18 anos de idade, que comete um ato descrito como crime ou contravenção na legislação penal, cabendo a ele a aplicação das medidas socioeducativas, sendo a internação a de caráter excepcional e mais grave.

No entanto, as razões que levam um adolescente a praticar atos contra a lei traz a tona diversos fatores, merecendo maior atenção, uma vez que, conforme

demonstrado, a adolescência é uma fase complexa, onde há maior vulnerabilidade e, consequentemente, se é mais influenciável.

Existe uma tendência da sociedade a restringir a criminalidade juvenil aqueles que moram na periferia, desprovidos de recursos financeiros, e que por esta razão são levados a assaltar, sequestrar, furtar, etc. Todavia, o fato de ser pobre não pode ser visto como determinante, pois estudos demonstram que adolescentes de classe média, no Brasil, também cometem vários crimes, porém, por questões financeiras e/ou pessoais, estes crimes não ganham visibilidade, sendo, quando muito, engavetados na própria delegacia.

Deste modo, fica claro que a questão não se reduz à prática do crime, mas a maneira como a sociedade e o Estado tornam alguns crimes mais visíveis e puníveis do que outros.

Quantos adolescentes não são assassinados diariamente nas periferias das grandes cidades brasileiras? Quantos desses casos têm visibilidade na mídia? Mas, basta que um jovem de classe média, seja assassinado por um adolescente que está há três dias de completar 18 anos, para a mídia nacional levantar, enfaticamente, a campanha pela redução da maioridade penal.

Em João Pessoa, dados apresentados pelo Jornal da Paraíba9 esclarecem que o adolescente infrator não é necessariamente aquele que não tem condições financeiras. Segundo a Promotora da Infância e da Juventude, dos adolescentes em conflito com a lei atendidos na Promotoria da Infância e da Juventude Infracional 20% são da classe média. Porém, a ocorrência destes crimes não chega ao conhecimento do Ministério Público, pois esses adolescentes são dispensados na própria delegacia pela influência social dos pais. Estes crimes também não são noticiados pela mídia e a maior parte dos infratores que ganha visibilidade é oriunda das classes mais pobres.

Nesse contexto, são os adolescentes das mais baixas camadas sociais que são julgados e sentenciados ao cumprimento de medida socioeducativa de privação de liberdade. Esse processo de internação, segundo Goffman (1982) é um fenômeno decisivo na consolidação do estigma, visto que, a internação em um

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centro educacional persegue o adolescente como uma marca negativa que o distinguirá dos outros adolescentes que, mesmo tendo cometido algum delito, não foram fichados.

Ao analisar esse estigma dado pela sociedade aos adolescentes brasileiros (principalmente os de sexo masculino, negros e pobres), Soares (2005, p.175) demonstra o quanto o preconceito e a indiferença são desvalores estimulantes da criminalidade:

Uma das formas mais eficientes de tornar alguém invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos anulamos a pessoa e só vemos o reflexo da nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa, tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular desaparece. (...) dissolve a identidade do outro a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos. (...) O preconceito arma o medo que dispara a violência preventivamente. (...) Essa é a caprichosa incongruência do estigma, que acaba funcionando como uma forma de ocultá-lo da consciência crítica de quem a pratica (...) é um caso típico de “profecia que se autocumpre”

Uma pessoa estigmatizada tende a sentir-se insegura, e em muitos casos, principalmente quando se trata de adolescentes, essa insegurança pode refletir-se em agressividade. Sobre o efeito do estigma, merece destaque a observação de Goffman (1988, p.37) “Em vez de se retrair, o indivíduo estigmatizado pode tentar aproximar-se de contatos mistos com agressividade, mas isso pode provocar, nos outros, uma série de respostas desagradáveis.”

Em relação à sociedade de consumo e o efeito desta no adolescente, Soares (2005) afirma que a base do nosso sistema econômico é consumir o máximo possível, de modo que o jovem sem condições econômicas para tal consumo sente a necessidade de consumir, mas não encontra um meio aceito pela sociedade para adquirir determinados bens. Embora esta exclusão do consumo não obrigue o adolescente à prática de delitos, não deixa de ser uma inspiração, um estímulo, uma motivação. O autor esclarece (2005, p.286):

Eles não querem ser apenas pintores de nossas paredes, mecânicos de nossos carros, engraxates de nossos sapatos. Eles querem o que os nossos filhos querem: internet, música, arte, dança, esporte, cinema, mídia, tecnologia de última geração, criatividade. Já se foi o tempo em que bastava acenar com a integração subalterna para calar as demandas. Agora, quem

demanda quer mesmo a tal cidadania, que significa pleno acesso ao mundo dos direitos e a tudo que nossa sociedade pode oferecer de melhor.

Nesse contexto, convém ressaltar os ensinamentos de Merton (1970), que considerou como um grande motivador dos chamados “atos desviantes” a dissintonia existente entre as aspirações culturalmente previstas e as vias socialmente estruturadas para que essas aspirações se concretizem.

Deste modo, conclui-se que a delinquência juvenil é uma reação contra a falta de oportunidades para alcançar os valores culturalmente impostos. Nesta linha de pensamento, Merton (1970, p.207) afirma que “A cultura pode ser tal que induza os indivíduos a centralizarem suas convicções emocionais sobre o complexo de fins culturalmente aplaudidos, com muito menos apoio emocional sobre os métodos prescritos para alcançar essas finalidades.”

Esse aspecto idiossincrático afasta o homem das normas socialmente estabelecidas e da própria lei. Ao passo que não há meios institucionalizados para obter sucesso, qualquer outra maneira pode tornar-se viável, desprezando-se as regras e estabelecendo-se um estado de anomia.

Acrescente ainda que os meios de comunicação têm forte influência neste processo de exclusão social e ditadura do consumo. Grande parte das famílias brasileiras possui uma televisão em casa, independente da classe a que pertençam. Além da televisão, a internet e os jogos de videogame também estão à disposição dos adolescentes, seja dentro do quarto, para os mais abastados, ou na lan house do bairro, para os que moram nas periferias. Deste modo, trata-se de algo que é disponibilizado a todos, no entanto, nem todos têm a mesma capacidade econômica e intelectual para assimilar o que é exposto.

Neste contexto, muitos adolescentes, vítimas de exclusão social, aderem a um meio pelo qual ele pode pertencer a um grupo e adquirir os bens que são alvos de desejo da maioria dos adolescentes. Ao comentar esta realidade, Lisboa (2008, p.143) diz que:

(...) um trabalho bem pago é um trabalho parcial ou totalmente ilegal, enquanto os empregos legais que lhes são oferecidos não possuem

nenhum atrativo monetário. Deste modo, para estas pessoas, o tráfico de droga, apesar de ser um empreendimento arriscado, representa a melhor estratégia para conseguirem ganhar muito bem a vida, ascenderem na hierarquia social, serem respeitados, viverem com desafogo e conforto, nem que seja por um curto espaço de tempo.

O número desses adolescentes que aderem ao tráfico de drogas e de armas tem aumentado, consideravelmente, no Brasil. Segundo Misse (apud PAIVA e SENTO SÉ, 2007, p. 195):

Em 1973, há 30 anos, portanto, eu publiquei com colegas uma pesquisa sobre a delinquência juvenil no então Estado da Guanabara. (...) O que encontramos? Que durante toda a década de 1960, os crimes contra o patrimônio representavam a esmagadora maioria dos delitos praticados por adolescentes, e dentre esses crimes, o furto era, de longe, o mais comum. Os jovens autuados por drogas, o foram por porte, raramente por tráfico, e eram, em sua maioria, provenientes da classe média. Em meados dos anos 1970 já era perceptível o incremento dos roubos em relação aos furtos, até que a curva se inverteu nos anos 1980, com os roubos ultrapassando, em alguns anos, os frutos, nas estatísticas dos que eram conduzidos ao Juizado. Mas em meados dos anos 1990, as detenções de adolescentes e pré-adolescentes por tráfico superam as detenções por roubo, até ultrapassar a histórica predominância da curva de furto. Entre 1980 e 2000, houve um aumento de 1.340% nas detenções de adolescentes por delitos ligados às drogas (principalmente maconha, cocaína, cola-de-sapateiro e sintéticos).

Ainda que de forma efêmera, o adolescente aprende a sentir prazer na violência, acredita ser admirado por possuir armas e dinheiro, respeito advindo do tráfico, e por pertencer a este grupo. Com o ingresso no ilícito mercado de drogas o adolescente consegue o status, dentro da sociedade da aparência e do consumo, que não se sente capaz de conseguir pelas vias legais e/ou, muitas vezes, encontra no mundo do crime uma oportunidade de sobrevivência em meio a essa sociedade excludente (CALHEIROS e SOARES, apud PAIVA e SENTO SÉ, 2007).

Em decorrência desta criminalidade juvenil, o Índice de Homicídios na Adolescência (IDH) traz dados alarmantes. Os alvos mais frequentes da violência são os adolescentes entre 12 e 18 anos de idade, do sexo masculino, moradores de bairros mais pobres e negros.

Na Paraíba, dados divulgados no ano de 2013 pelo Ministério da Justiça, através do Mapa da Violência no Brasil demonstram que em dez anos o número de

homicídios dos jovens cresceu 213,6%, contabilizando 198 mortes em 2001, e 621 mortes em 2011.

Soares (2005, p.221) ao analisar a tendência à criminalidade nas áreas periféricas do país destaca a falta de compromisso e aparatos públicos:

(...) não se deduz que o brasileiro seja imoral, conivente com a legalidade, ou que o jovem da periferia que se liga ao crime não tenha consciência dos crimes que perpetra, e que suas ações possam justificar-se por referência a um código de valores particular. (...) Entretanto,o fato é que, mesmo não justificáveis, muitos atos têm significados específicos (que não estamos obrigados a aceitar e respeitar só porque existem e contam com apoio em faixas da população). (...) o foco de nossas preocupações não deveria ser o comportamento desviante individual, mas a educação dos jovens em uma cultura refratária a violência.

Pelo exposto, percebe-se que os fatores que levam os adolescentes a cometer delitos e contravenções não são pontuais e determinantes, pelo contrário, englobam um conjunto de possibilidades que variam de acordo com cada caso.

1.9 Construindo uma intersecção entre as “instituições austeras” e as