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CAPÍTULO 2. BEM JURÍDICO PENAL

2.2. Evolução da concepção de bem jurídico penal

2.2.6. A Escola de Kiel

Com o surgimento, em 1935 na Alemanha, da Escola ou Tendência de Kiel, que deu base ao regime nacional-socialista111, passou-se a apregoar que crime era toda e qualquer violação de um dever de obediência ao Estado. A lesão do dever, por conseguinte, passa a ser reconhecida com conteúdo material do injusto, contestando-se assim toda a evolução apresentada até aquele momento pela teoria do bem jurídico.

A Escola de Kiel afastou, “num primeiro momento o dogma do bem jurídico por

ser incompatível com as diretrizes do Estado totalitário, para admiti-lo posteriormente, quando perdeu sua identidade e não passava de instrumento inócuo”112. Expondo os dogmas da Escola de Kiel, Heleno Cláudio Fragoso explica:

“O direito penal da vontade (Willensstrafrecht), que esta Escola fundou, afirmava que a teoria do bem jurídico era consequência do liberalismo do século XIX, incabível num estado autoritário, em que o crime é essencialmente violação de um dever de obediência ao Estado. Tratava-se de um processo de subjetivação do direito penal, no qual se atribuía à vontade a primazia na elaboração doutrinária, de sorte que o bem jurídico aparecia como um aspecto materialista, absolutamente secundário”113.

111 Miguel Reale Júnior ao analisar ideologia nazista explica que: “Segundo a visão da vida nazista, sua

Weltanschauung – o indivíduo amorfo, burguês e conservador, deveria ser superado pela compreensão orgânica da realidade. A espinha dorsal da vida social é a Volksgemeinschaft, na qual se insere o indivíduo. O povo se forma como raça, sendo a nação alemã o povo da raça germânica. O povo engendra uma unidade incidível, historicamente constituída, da qual a raça é o elemento catalisador. Os indivíduos se organizam de modo coordenado, formando uma coletividade concreta, possuindo a mesma raça, o mesmo sangue, participando de um mesmo espírito objetivo. (...) A coletividade como realidade concreta, quando formada por indivíduos da mesma raça e sangue, que participam de um mesmo espírito objetivo, vem a constituir a comunidade do povo (Volksgemeinschaft) que é conduzido pelo Führer. O direito é função e resultado da Volksgemeinschaft, como instrumento através do qual o espírito objetivo, atuante do organismo real do povo, ordena a vida coletiva. A vida da comunidade não é limitada pelas leis, pois o direito está além das leis positivas, como expressão da comunidade. Desse modo, a um caso concreto pode ser aplicada uma solução não normativa, mas jurídica, derivada do ordenamento concreto. A função jurisdicional se confunde com a criatividade do direito. O direito é um sistema de leis que ordena a vida da comunidade do povo, sendo as leis o espelho do espírito que caracteriza essa mesma comunidade. O Führer, como condutor da comunidade e encarnação do espírito objetivo que caracteriza o povo, tem o poder de dizer o direito” (Teoria do Delito. 2ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 23-24).

112 PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 33. Segundo Winfried Hassemer, a teoria da proteção dos bens

jurídicos penais “foi preparada em meio a longas discussões na Ciência do Direito Penal sobre o

conceito e a função do bem jurídico e foi interrompida pelos nazistas, que, naturalmente,, não estavam interessados em uma discussão geral em torno da realidade do autor e da vítima na justiça penal”.

(Introdução aos Fundamentos do Direito Penal. Trad. da 2ª ed. Alemã, por Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p. 55-56).

Os alemães Gallas, Dahm, Klee, Siewert, Schaffstein, Hans Frank, foram os principais representantes da Escola de Kiel.

George Dahm e Friedrich Schaffstein constroem o delito tomando por base o Direito Penal do autor – “Taterstrafrecht” - ou Direito Penal da vontade –

“Willensstrafrecht” -. Assim, “a essência do delito não é apreciada na incidência

típica sobre bens jurídicos, mas sim constituída pelo espírito reprovável do autor que viola os sentimentos e valores coletivos da comunidade”114. Destarte, considera-se o autor em vez de sua conduta para efeito de proteção penal.

Discorrendo sobre a teoria de Schaffstein, Paulo Vinicius Sporleder de Souza registra:

“Para Schaffstein, o interesse do legislador em proteger certos bens jurídico-penais não pode ser apreciado de forma autônoma, pois aquele vem limitado ou completado pela relevância de outros fatores preponderantes e transcendentes. Assim, embora não negando que constitui tarefa essencial do ordenamento jurídico-penal proteger certos valores relevantes da sociedade, Schaffstein não considera admissível que o dogma da tutela de bens jurídico- penais seja o único Leitmotiv do legislador penal para a criação das figuras delitivas, pois junto a este aspecto existem outras questões relacionadas ao pensamento nacional-socialista que conduzem a uma necessária revisão histórico-dogmática daquela categoria. Ademais, diferentemente da sistemática clássica, que, assentada nos esquemas jurídico-naturais do Iluminismo, entendia o conteúdo do delito como ofensa ao objeto jurídico protegido, o pensamento nacional-socialista do direito penal estabelece como pedra básica a idéia do delito como violação de um dever (Pflichtverletzung”)115.

A respeito do pensamento de Dahm, mais uma vez Paulo Vinicius Sporleder de Souza relata:

“Por outro lado, entende Dahm que a noção de direito deve ser compreendida, como ordenamento da vida do povo, uma realidade sentimental interna. O direito “não consiste num mero aglomerado de normas nem numa forma exterior do ser social, senão um ordenamento realista, vital e interno. Direito e vida não constituem conceitos contrapostos; direito é a realidade plena de sentido, não empírica. A sociedade não aparece regrada de fora; ela própria é portadora de sua própria lei. Resulta errôneo, por conseguinte, todo pensamento que estabelece como base o dualismo de valor e realidade, de dever-ser e ser. O delito não integra somente uma oposição à lei formal, mas também um ataque contra a ordem fundamental do povo, assim como contra a moral do mesmo e a lei interna da comunidade. Representa uma oposição ao ordenamento autoritário estabelecido através do Estado, e, com isso, à lei

114 SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Op. cit., p. 96. 115 Idem, p. 96-97.

interior da nação. A natureza do injusto não pode ser vista no contraste de interesses e de objetos de tutela, senão na rebelião contra a comunidade e a sua lei interna”. Este retrocesso do fato ao autor e do tipo à vontade corresponde a uma maneira de pensar que não vê a essência do delito na violação de um ordenamento externo e de singulares bens jurídicos, mas sim na própria desagregação da sociedade desde dentro”116.

Na visão de Gallas, tal modificação metodológica apresenta feição ideológica. Se por um lado a categoria bem jurídico surge atrelada ao modo de pensar individualista-liberal, “o ideal nacional-socialista do direito penal determina-se agora

mediante a unidade entre a comunidade e seus membros”117.

Segundo a concepção de Gallas, “a essência do delito baseia-se no caráter

perturbador da coletividade e não mais em ataques a bens juridicamente protegidos, pois nem todos tipos do Código Penal, então vigente naquela época, ofendiam necessariamente bens jurídicos”118.

Cumpre destacar, ainda dentro do ideal de Direito Penal que prevaleceu durante o nazismo na Alemanha, a figura de Edmund Mezger. Segundo Francisco Muñoz Conde, Mezger foi:

“(...) um dogmático importante durante o nacional-socialismo (...),

suas sisudas elucubrações se encaminharam a partir de 1933 a configurar e interpretar o Direito Penal segundo os postulados nazistas. Assim, por exemplo, desde um primeiro momento, ocupou-se de demonstrar que a única fonte do Direito Penal e a única base de todas as elucubrações não podiam ser outras que a vontade do Führer”119.

Na visão de Mezger, portanto, não existiam mais limites à intervenção do Estado no Direito Penal do que a simples vontade do ditador. Aliás, na ideologia nazista a lei era a vontade do Führer, tendo em vista que “sendo um ato do Fürhung (poder do

Führer) e este constituindo uma atribuição pessoal do Führer, acaba sendo poder pessoal do chefe ditar a lei como fonte de direito”120.

116 Idem, p. 97-98. 117 Idem, p. 98. 118 Ibidem.

119 MUNÕZ CONDE, Francisco. Edmund Mezger e o Direito Penal de seu Tempo – Estudos Sobre o

Direito Penal no Nacional-Socialismo. 4ª ed. Trad. Paulo César Busato. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 80.

Por conseguinte, também para Mezger, o Direito Penal não deveria lastrear a sua atuação tomando por base o resultado, mas sim a vontade do agente. Novamente, Francisco Munõz Conde referindo-se à Mezger expõe:

“Sua paixão pelas novas propostas jurídicas do nacional-socialismo chega a tanto que, apesar de ter sido dito muitas vezes o contrário, Mezger propõe idéias muito próximas ao Direito Penal da vontade, tão representativo do regime nazista e dos penalistas mais afins a ele, como eram os integrantes da ‘Escola de Kiel’ (Dahm e Schaffstein”)121.

Nesse sentido, o crime tentado deveria ser punido como crime consumado, com base na simples vontade do agente. Aliás, foi Mezger quem concebeu a idéia de crime de perigo abstrato, conceito desenvolvido em larga escala pelos seguidores da Escola de Kiel.

Além disso, durante o regime nacional-socialista era permitida a analogia em Direito Penal, inclusive para criar condutas puníveis, além do que a interpretação da norma penal foi completamente alterada para permitir sua aplicação segundo o “são

sentimento” do povo alemão. “A analogia é adotada segundo a idéia de que deve ser

punível toda a ação de acordo com o pensamento fundamental de uma lei penal, por ser esta expressão do querer comunitário”122.

O princípio da legalidade – “nullum crimen, nulla poena sine previa lege” – é

“substituído por uma concepção material, segundo a qual a configuração do delito depende do espírito da lei ou do são sentimento do povo, como o que se consagra o princípio nullum crimen sine poena”123.

A Escola de Kiel ainda exerce influência no Direito Penal. Alguns dispositivos do nosso ordenamento penal refletem a tendência de punir a tentativa da mesma forma que o crime consumado, como, por exemplo, o artigo 352 do Código Penal (Evasão mediante violência contra a pessoa: “Evadir-se ou tentar evadir-se o preso ou o

indivíduo submetido a medida de segurança detentiva, usando de violência contra a pessoa”); e os artigos 309 (“Votar ou tentar votar mais de uma vez, ou em lugar de

121 Op. cit., p. 82.

122 REALE JÚNIOR, Miguel. Op. cit., p. 25. 123 Ibidem.

outrem”), 312 (“Violar ou tentar violar o sigilo do voto”) e 317 (“Violar ou tentar

violar o sigilo da urna ou dos invólucros”), do Código Eleitoral (Lei n. 4.737/65).

A doutrina do bem jurídico também foi contestada na Itália por Francesco Antolisei, para o qual a função do ordenamento jurídico não era somente conservar e defender determinados bens ou interesses jurídicos. O direito apresentava, além desta função conservativa, também uma função propulsora ou evolutiva124.

2.2.7. As teorias contemporâneas

Com o encerramento da Segunda Guerra Mundial, ressurge a preocupação com o conceito de bem jurídico na tentativa de se buscar, como fizeram Birnbaum e Liszt, limites ao direito de punir do Estado. Retoma-se, portanto, “a idéia de que o bem

jurídico-penal estaria vinculado a uma garantia do homem” 125.

Nesse momento do pós-guerra, Hans Welzel modificou completamente a maneira como se compreendia o bem jurídico até então. Para ele, o bem jurídico situava-se além do Direito e do Estado, podendo ser definido “como ‘todo estado social

desejável que o Direito quer resguardar de lesões’, mas com vistas em toda ordem jurídico-social” 126.

Welzel desenvolveu a teoria finalista preconizando uma tutela penal pautada em valores elementares de natureza ético-social, que têm origem na “consciência jurídica

124 Heleno Cláudio Fragoso ao apresentar a seqüência do pensamento de Antolisei nas suas obras, observa

que: “O trabalho em que ANTOLISEI melhor expõe seu pensamento sobre o assunto é o citado ‘Il

problema del bene giuridico’, publicado pela primeira vez em 1940 e recolhido em seus Scritti di Diritto Penale (1955, p. 97). Em seu Manuale di Diritto Penale (1955, p. 123) manifesta-se com maior sobriedade, repetindo que a teoria do bem jurídico teve importância exagerada, pois não se trata de conceito decisivo na interpretação, já que em vários crimes é tutelado o mesmo bem. Que de maior valor é a indagação quanto ao escopo ou ratio da incriminação. Na valoração do crime outros elementos são considerados, inclusive a qualidade do dever violado. Afirma que a super-valoração do dano individual é expressão de tendências conservadoras da doutrina e que ainda mais deve diminuir a importância do bem jurídico no futuro”. Nessa mesma direção: “Pretendendo negar que o bem jurídico constitua sempre

o objeto específico do crime, já que o crime seria antes de tudo desobediência a um imperativo de lei (crimes de pura desobediência), acaba-se num verdadeiro processo de formalização do direito penal, mesmo que se afirme querer fazer dogmática penal ‘realista’” (BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal.

Versão portuguesa do original do italiano Diritto Penale (Parte Generale). Campinas, Red Livros, p. 161).

125 PONTE, Antonio Carlos da. Crimes Eleitorais. São Paulo, Saraiva, 2008, p. 148.

No documento MESTRADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2010 (páginas 64-68)