• Nenhum resultado encontrado

Crimes de perigo abstrato

No documento MESTRADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2010 (páginas 85-93)

CAPÍTULO 2. BEM JURÍDICO PENAL

2.4. Bem jurídico penal difuso e coletivo

2.4.4. A necessidade de adaptação do Direito Penal para uma tutela efetiva dos bens

2.4.4.3. Crimes de perigo abstrato

Se analisado sob o prisma da lesão ou mera ameaça de lesão ao bem jurídico, os crimes podem ser classificados em crimes de dano e de perigo. Estes se subdividem em crimes de perigo concreto e de perigo abstrato.

O crime de dano pode ser definido como aquele que, para sua consumação, impõe a ocorrência de uma efetiva lesão ao bem jurídico. Nesse caso, a não produção da lesão pode caracterizar o “conatus” ou, simplesmente, um irrelevante penal. Como exemplos de crimes de dano, encontram-se: o roubo, o furto, o dano, a lesão corporal e o homicídio.

Ao revés, crime de perigo é aquele que para se consumar se contenta com a mera colocação do bem jurídico numa situação de risco, ou seja, é aquele cuja consumação exige apenas que o bem seja exposto a uma situação de perigo de dano. Três são as teorias que buscam fornecer o conceito de perigo: teoria subjetiva, teoria objetiva, teoria objetivo-subjetiva (híbrida). Segundo Julio Fabbrini Mirabete:

“Três são as correntes a respeito da conceituação do perigo. Na primeira, subjetivista, entende-se que o perigo é mera criação do espírito do homem, simples prognóstico da ocorrência de uma lesão. Os objetivistas, porém, consideram o perigo um trecho da realidade, um estado de fato concreto, real. Na terceira corrente (objetivo-subjetivista), o perigo é considerado como uma realidade que exige um juízo mental para a apuração de sua existência”156.

Assim sendo, de acordo com a teoria subjetiva (Janka, Von Buri, Finger) que vem calcada num conceito positivista-naturalístico, o perigoso existe na mente humana que possui uma visão “subjetiva, não real, do mundo, baseando-se, através da

experiência, na possibilidade ou na probabilidade de ocorrência de produção de um resultado lesivo. Destarte, mediante um juízo subjetivo ex ante, poder-se-ia vislumbrar a existência de um perigo”157.

Na precisa lição de Nélson Hungria:

“A teoria subjetiva (Janka, Von Buri, Finger) sustenta que o perigo não é senão uma idéia, um ens imaginationis, nada tendo de objetivo: é uma hipótese, não um fato; uma abstração subjetiva, não uma entidade concreta. Na realidade dos fenômenos, não há lugar para o perigo objetivo, isto é, para a possibilidade ou probabilidade do fenômeno: ou êste acontece, e era desde o princípio possível, embora fosse julgado impossível; ou não acontece, e então era ab initio impossível, ainda que fosse julgado possível. Há sempre, desde o surgir da condição inicial, a certeza absoluta de que o fenômeno terá ou não de verificar-se. Não há fenômenos possíveis ou prováveis, impossíveis ou improváveis, mas apenas fenômenos necessários ou não necessários. Possibilidade e probabilidade não são mais que um fruto da nossa ignorância ou da imperfeição da natureza humana, um produto da limitação do nosso espírito, que não consegue abranger tôdas as causas de um fenômeno”158.

A teoria objetiva (Von Kries, Binding, Merkel, Oppenheim, Hälschner, Von Liszt, Rocco, Jannitti di Guyanga, Rastiglia, Florian) por sua vez, parte da premissa que alguns comportamentos têm, de uma forma geral, a capacidade de ser perigosos. A periculosidade não decorreria de uma abstração, mas, sim, da constatação de que

“atendendo-se a múltiplas circunstâncias concorrentes, verificada seria a probabilidade de lesão”159.

156 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial. 24ª ed. São Paulo, Atlas, p. 93,

v II.

157 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Op. cit., p. 92.

158 HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. 2ª ed. Revista e Atualizada. Rio de Janeiro,

Forense, 1953, p. 357-358, v. V.

(conhecimento nomológico); p. ex., Tício ministrou uma taça de veneno a

Fazendo-se uso novamente do magistério de Nélson Hungria:

“Diverso é o ponto de vista da teoria objetiva (Von Kries, Binding, Merkel, Oppenheim, Hälschner, Von Liszt, Rocco, Jannitti di Guyanga, Rastiglia, Florian): o perigo é um trecho da realidade. Existe uma possibilidade ou probabilidade objetiva (segundo um cálculo estatístico, fundado na experiência ou observação sistemática dos fatos) e, portanto, um perigo objetivo. Se, em certas circunstâncias, um fenômeno pode ocorrer ou falhar, significa isto que o fenômeno existe na ordem externa das coisas, na possibilidade ou probabilidade objetiva do mundo cósmico, ou seja, que o fenômeno possível ou provável tem uma existência objetiva. O que impede o advento do fenômeno são, in concreto, condições ulteriores às que tendiam necessariamente a produzi-lo; mas a superveniência dessas condições impeditivas não exclui que o perigo tenha existido. Perigo é, portanto, segundo os objetivistas, um estado de fato que contém as condições (incompletamente determinadas) de um evento lesivo (Von Kries)”160.

Sintetizando a distinção entre as duas teorias, Renato de Mello Jorge Silveira aponta:

“Subjetivamente, o perigo nada mais é do que uma representação mental, um ens imaginationis, não presente no plano concreto. Não tem ele, enquanto fruto da mente, existência real, nada mais sendo do que expectativa subjetiva de um evento que não se deseja. Objetivamente, contudo, é tido como ens reale, presente, pois, no mundo quotidiano. O prognóstico de uma danosidade não depende da apreciação subjetiva valorativa. Existindo, já goza ele de autonomia suficiente para uma apreciação penal”161.

Na atualidade o conceito de perigo decorre de uma fusão desses conceitos, apresentando uma formação híbrida. Se há uma probabilidade de ocorrer um dano, baseado nas circunstâncias do que normalmente acontece, a valoração a ser dada é de que o perigo está presente. Explicando de outra forma:

“Modernamente, ambas as concepções se fundiram. Passou-se a admitir que o perigo tem sempre um quid de objetivo e uma parcela de subjetividade: o juízo probabilístico de superveniência do dano, com base naquilo que costuma acontecer (quod plerumque accidit). Do conceito de dano e do de probabilidade, chega-se ao de perigo. Perigo é a probabilidade de dano. É o dano em potencial. Mas o perigo, embora de certa forma alicerçado na realidade objetiva, deve ser avaliado subjetivamente, por meio de um juízo probabilístico. Completa-se, assim, a noção de perigo por um momento subjetivo. O juízo de probabilidade é resultado de um silogismo, em que a premissa maior é representada por aquilo que sói acontecer (conhecimento nomológico), e a premissa menor, pelo caso concreto (conhecimento ontológico). Destarte, uma dose de veneno costuma matar

160 Op. cit., p. 359. 161 Op. cit., p. 93.

Caio (conhecimento ontológico); logo, Tício provavelmente matará Caio”162.

Superada a discussão a respeito da conceituação de perigo, passa-se à apreciação das espécies de crime de perigo. Como apontado acima, os crimes de perigo podem ser subdivididos em crimes de perigo concreto e de perigo abstrato.

Crime de perigo concreto é aquele que exige a comprovação de que a conduta praticada foi apta a colocar o bem jurídico em situação efetiva de risco, ou seja, é aquele cuja situação de perigo precisa ser comprovada no caso concreto.

A lei exige de forma expressa que o comportamento realizado pelo agente seja capaz de provocar uma situação de perigo real. “O perigo só é reconhecível por uma

valoração subjetiva da probabilidade de superveniência de um dano”163.

Como exemplos de crimes de perigo concreto podem ser destacados: “perigo de

contágio venéreo”164, “perigo de contágio de moléstia grave”165, “perigo para a vida

ou saúde de outrem”166, “abandono de incapaz”167, “exposição ou abandono de

recém-nascido”168, “maus-tratos”169, “incêndio”170, “explosão”171, “uso de gás tóxico

162 COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de Direito Penal. 9ª ed. Revista e Atualizada. São Paulo,

Saraiva, 2008, p. 69.

163 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 15ª ed. São Paulo, Saraiva,

2010, p. 254, v. 1.

164 “Art. 130, ‘caput’, CP. Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a

contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado: Pena - detenção de 3 (três) meses 1 (um) ano, ou multa” (...).

165 “Art. 131, CP. Praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado,

ato capaz de produzir o contágio:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.

166 “Art. 132, ‘caput’, CP. Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, se o fato não constitui crime mais grave” (...).

167 “Art. 133, ‘caput’, CP. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade,

e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos” (...).

168 “Art. 134, ‘caput’, CP. Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos” (...).

169 “Art. 136, ‘caput’, CP. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou

vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena - detenção, de 2 (dois) meses a 1 (um) ano, ou multa” (...).

170 “Art. 250, ‘caput’, CP. Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o

patrimônio de outrem:

1 7 ,

ou asfixiante” 72, “inundação”1 3, “perigo de inundação”174 “desabamento ou desmoronamento”175, “participação em competição não autorizada – racha”176,

“direção sem habilitação”177, “tráfego em velocidade incompatível com a

segurança”178, etc.

Os crimes de perigo abstrato ou presumido são aqueles em que o perigo não precisa ser demonstrado. A simples prática da conduta tipificada já é considerada como suficiente para constatação da situação de perigo a que o bem fica exposto.

Diante de um comportamento potencialmente danoso e de periculosidade social reconhecida, a lei presume-o perigoso. No perigo abstrato há uma previsão “juris et de

jure” do perigo, não se exigindo a prova do perigo real. Na lição de Pierpaolo Cruz Bottini:

“O crime de perigo abstrato é a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas, independentemente da produção de um resultado externo. Trata-se de prescrição normativa cuja

171 “Art. 251, ‘caput’, CP. Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem,

mediante explosão, arremesso ou simples colocação de engenho de dinamite ou de substância de efeitos análogos:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa” (...).

172 “Art. 252, ‘caput’, CP. Expor a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem, usando

de gás tóxico ou asfixiante:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa” (...).

173 “Art. 254, CP. Causar inundação, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de

outrem:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa, no caso de dolo, ou detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, no caso de culpa”.

174 “Art. 255, CP. Remover, destruir ou inutilizar, em prédio próprio ou alheio, expondo a perigo a vida,

a integridade física ou o patrimônio de outrem, obstáculo natural ou obra destinada a impedir inundação:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”.

175 “Art. 256, ‘caput’, CP. Causar desabamento ou desmoronamento, expondo a perigo a vida, a

integridade física ou o patrimônio de outrem:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa” (...).

176 “Art. 308, Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro). Participar, na direção de veículo

automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada:

Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.

177 “Art. 309, Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro). Dirigir veículo automotor, em via pública,

sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:

Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, ou multa”.

178 “Art. 311, Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro). Trafegar em velocidade incompatível com

a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:

completude se restringe à ação, ao comportamento descrito no tipo, sem nenhuma referência aos efeitos exteriores do ato, ao contrário do que ocorre com os delitos de lesão ou de perigo concreto”179.

São exemplos de crime de perigo abstrato: “fabrico, fornecimento, aquisição,

posse ou transporte de explosivos ou gás tóxico, ou asfixiante”180, “subtração,

ocultação ou inutilização de material de salvamento”181, “difusão de doença ou praga”182, “quadrilha ou bando”183, “posse irregular de arma de fogo de uso

permitido”184, “porte ilegal de arma de fogo de uso permitido”185, “disparo de arma

de fogo”186, “pose ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”187, “embriaguez ao volante”188, o crime previsto no artigo 63, do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90)189, dentre outros.

179 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato e Princípio da Precaução na Sociedade de

Risco. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2007, p. 111.

180 “Art. 253, CP. Fabricar, fornecer, adquirir, possuir ou transportar, sem licença da autoridade,

substância ou engenho explosivo, gás tóxico ou asfixiante, ou material destinado À sua fabricação: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa”.

181 “Art. 257, CP. Subtrair, ocultar ou inutilizar, por ocasião de incêndio, inundação, naufrágio, ou outro

desastre ou calamidade, aparelho, material ou qualquer meio destinado a serviço de combate ao perigo, de socorro ou salvamento, ou impedir ou dificultar serviço de tal natureza:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”.

182 “Art. 259, ‘caput’, CP. Difundir doença ou praga que possa causar dano a floresta, plantação ou

animais de utilidade econômica:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa” (...).

183 “Art. 288, CP. Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer

crimes:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Parágrafo único: A pena aplica-se em dobro se a quadrilha ou bando é armado”.

184 “Art. 12, Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Possuir ou manter sob sua guarda arma de

fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa”.

185 “Art. 14, ‘caput’, Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Portar, deter, adquirir, fornecer,

receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa” (...).

186 “Art. 15, ‘caput’, Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Disparar arma de fogo ou acionar

munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, desde que essa conduta não tenha como finalidade a prática de outro crime:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa” (...).

187 “Art. 16, ‘caput’, Lei n. 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento). Possuir, deter, portar, adquirir,

fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa” (...).

188 “Art. 306, ‘caput’, Lei n. 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro). Conduzir veículo automotor, na

via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:

Como mencionado no item 2.2.6 do presente trabalho o crime de perigo abstrato foi concebido por Edmund Mezger, sendo desenvolvido em larga escala pelos seguidores da Escola de Kiel.

Talvez em função dessa origem associada à corrente penal que deu sustentação ao regime nacional-socialista é que tal modalidade delitiva tenha posteriormente ficado estigmatizada como instrumento a ser abominado por um Direito Penal que queira estar em consonância com o modelo democrático de Estado.

Nesse sentido, há uma tendência na doutrina pátria em considerar o crime de perigo abstrato como inconstitucional, tomando-se por fundamento que, segundo o princípio da ofensividade - a configuração da infração penal depende da comprovação de que a conduta do agente foi apta a causar, de fato, algum perigo ou ameaça a bens ou interesses alheios. Caso tal situação não seja demonstrada o fato não teria qualquer relevância para o Direito Penal.

Todavia, a idéia que se pretende aqui desenvolver, é exatamente a antítese desse raciocínio, pois, a despeito da origem dos crimes de perigo abstrato ter se dado na ótica de um Estado totalitário, não se pode dizer que são incompatíveis com um Direito Penal de feição democrática.

O que se propugna, pelo contrário, é que a utilização dos crimes de perigo abstrato é necessária para viabilizar a proteção de determinados bens jurídicos difusos e coletivos.

Para tutela de interesses meramente individuais, a utilização de crimes de perigo abstrato realmente se afigura como dispensável, tendo em vista que nesse aspecto o Direito Penal deve ser utilizado apenas em caráter excepcional, quando os demais ramos do direito se demonstrarem inócuos para proteger o bem ou interesse.

Penas – detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três) anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor” (...).

189 “Art. 63, ‘caput’, Lei n. 8.078/90. Omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade ou

periculosidade de produtos, nas embalagens, nos invólucros, recipientes ou publicidade: Pena – detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa” (...).

Entretanto, na seara dos bens e interesses supra-individuais o crime de perigo abstrato pode ser um mecanismo valioso na busca por uma proteção veemente, tendo em vista que, muitas vezes, deixar para punir a conduta apenas quando verificado o dano ou quando demonstrado que dela decorreu uma situação de perigo real ao bem jurídico, pode frustrar a preservação deste.

Assim, não há como dizer que todo crime de perigo abstrato afronta a constituição. O princípio da lesividade, como será proposto “a posteriori” no item 4.5.2., deve ser utilizado dentro de uma ótica de proteção de bens notadamente individuais, onde o Direito Penal deve ser colocado como “ultima ratio” no papel de fornecer a devida tutela ao bem jurídico.

Já quanto aos delitos que atingem ou põem em risco os bens metaindividuais os crimes de perigo abstrato é sim ferramenta válida dentro de um Estado Democrático de Direito, uma vez que não há como abrir mão deles para que seja dada a máxima proteção a bens de tamanha magnitude.

No documento MESTRADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2010 (páginas 85-93)