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Princípio da legalidade, tipos penais abertos e normas penais em branco

No documento MESTRADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2010 (páginas 78-84)

CAPÍTULO 2. BEM JURÍDICO PENAL

2.4. Bem jurídico penal difuso e coletivo

2.4.4. A necessidade de adaptação do Direito Penal para uma tutela efetiva dos bens

2.4.4.1. Princípio da legalidade, tipos penais abertos e normas penais em branco

Para falar sobre tipos penais abertos e normas penais em branco torna-se imprescindível trabalhar com o princípio da legalidade.

Apesar das diversas opiniões sobre a verdadeira origem do princípio da legalidade, o fato é que este se consagra definitivamente como aforismo político do movimento constitucionalista inspirado pelos ideais iluministas do século XVIII, iniciando seu processo de universalização com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, na França143.

No início do século XIX, Feuerbach atribui-lhe o apotegma latino pelo qual foi mundialmente difundido: “nullum crime e nulla poena, sine previa lege”. “Feuerbach

também procura dar ao princípio em questão um fundamento jurídico vinculando-o a prevenção geral como fim da pena”144.

Na atual Constituição brasileira o princípio da legalidade em sua fórmula geral vem previsto no inciso II do artigo 5º: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de

fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Todavia, sua vertente penal vem estabelecida no inciso XXIV do mesmo artigo 5º: “não há crime sem lei anterior que o

defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Anteriormente o Código Penal, em seu artigo 1º, já trouxera redação muito similar à apresentada pelo constituinte no inciso XXXIV do artigo 5º em 1988.

143 Da leitura da declaração fica nítida a preocupação com a legalidade no artigo 5 e, especificamente no

campo penal, nos artigos 7 e 8. “Art. 5. A lei não pode proibir senão as ações prejudiciais à sociedade.

Tudo o que não é defeso em lei não pode ser impedido, e ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena”. “Art. 7. Ninguém pode ser acusado, detido ou preso, senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por ela prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas todo cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer incontinenti: ele se torna culpado em caso de resistência”. “Art. 8. A lei só poderá estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito, e legalmente aplicada”.

144 LUISI. Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2ª ed. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor,

O princípio em comento traduz a principal garantia penal de um ordenamento jurídico, “posto que é estruturador do princípio da dignidade da pessoa humana e

parâmetro indispensável ao sistema jurídico punitivo”145.

A legalidade não se confunde com a anterioridade. Esta é apenas um dos significados daquela. Pode-se afirmar que o princípio da legalidade apresenta três significados – ou sentidos – distintos: político, jurídico em sentido amplo e jurídico em sentido estrito.

Em seu principal significado, que é o político, a legalidade pode ser entendida como uma garantia do cidadão frente à atuação do próprio Estado. O significado jurídico em sentido lato – ou amplo - de legalidade impõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Finalmente, o significado jurídico em sentido estrito de legalidade (ou penal) traduz-se no princípio da anterioridade. Portanto, na essência, a anterioridade representa um dos significados da legalidade.

Vale esclarecer que é possível respeitar a anterioridade sem atentar contra a legalidade. Mas, não há como preservar a legalidade sem respeitar a anterioridade. As medidas de segurança são uma demonstração inequívoca de que é possível preservar a anterioridade sem observar a legalidade, porque as medidas de segurança, no Brasil, não têm um prazo máximo de duração, mas somente um prazo mínimo.

Para que seja observada a legalidade, a lei tem que ser certa, determinada e delimitada. As medidas de segurança são certas, determinadas, mas não são delimitadas. Portanto, elas não obedecem ao princípio da legalidade, por não possuírem prazo máximo de duração. Assim, conclui-se que as medidas de segurança, no sistema jurídico brasileiro, observam à anterioridade, mas não atendem à legalidade.

São efeitos da aplicação do princípio da legalidade: 1) a irretroatividade da lei penal – como regra a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o agente; 2) a exigência de lei escrita – deverá necessariamente existir lei escrita tratando das

infrações penais e de suas respectivas sanções; 3) a taxatividade – alguns autores inserem a taxatividade como um princípio, todavia, na essência a taxatividade é um dos efeitos – ou uma das características da legalidade. De acordo com a taxatividade, a lei penal precisa ser clara e objetiva, isto é, as normas penais incriminadoras não podem ser vagas e imprecisas.

A previsão “nullum crimen, nulla poena sine praevia lege” aglutina várias formas do princípio da legalidade, como: “nulla poena sine lege”; “nulla poena sine

crimen”; “nullum crimen sine poena legali”.

Ainda sobre o princípio da legalidade cumpre repisar que no âmbito dos interesses penais metaindivuduais a taxatividade – que, como dito acima, é um dos efeitos ou características da legalidade – deve ser vista com moderação. Quando se fala na tutela de interesses difusos – ou coletivos – na esfera penal, fica complicado trabalhar com a idéia de taxatividade que foi concebida dentro de uma perspectiva de proteção de interesses penais individuais.

Por essa razão, é que a Lei n. 9.605/98 (Lei dos Crimes Ambientais) trabalha basicamente com tipos penais abertos146, porque não é possível descrever todos os comportamentos que traduzem um risco ou dano ambiental. Essa dificuldade de observância da taxatividade, também se dá em relação aos crimes contra o consumidor, ambientais, biogenéticos, dentre vários.

Não se pode olvidar, porém, que a não observância da taxavidade foi a estratégia utilizada para subverter a garantia da legalidade em estados de regimes totalitários, como ocorreu no Estado soviético e no Estado alemão nacional-socialista.

Portanto, a flexibilização da taxatividade somente pode ser admitida, em caráter notadamente excepcional, para tutela de interesses difusos – ou coletivos – em que seja necessário promover uma maior abertura no preceito primário da norma incriminadora,

146 Tipos penais abertos são aqueles que dependem de interpretação e complemento do tipo incriminador

por parte do magistrado. Não há ofensa ao princípio da legalidade, tendo em vista que a interpretação e o complemento são realizados pelo juiz e, necessariamente, obedecem a balizamentos.

cujo objetivo seja o de manter a norma atualizada e eficaz perante os mais diversos comportamentos nocivos a esses interesses.

Dessa maneira, quanto à criminalidade difusa – ou coletiva - a taxatividade não pode ser levada às últimas consequências, sob pena de tornar inviável a defesa dos bens metaindividuais na seara criminal. Destarte a utilização de tipos penais abertos é fundamental para se estabelecer uma proteção penal satisfatória no campo dos interesses difusos e coletivos.

Outra medida imprescindível para tornar o Direito Penal eficiente no combate a estes delitos é a utilização de normas penais em branco.

Normas penais em branco, ou “cegas”, são aquelas em que o preceito é indeterminado quanto ao seu conteúdo e nas quais só se fixa com precisão a parte sancionadora. Podem ser subdivididas em normas penais impropriamente em branco e normas penais em branco propriamente ditas.

Normas impropriamente em branco são aquelas que possuem fontes formais homogêneas na formação da lei, exemplo: o artigo 237147, do Código Penal, cujo complemento (definição dos impedimentos matrimoniais) é retirado da lei civil. Por outro lado, normas em branco propriamente ditas, são aquelas que possuem fontes formais heterogêneas, posto que o órgão legiferante é diverso, como ocorre, por exemplo, com o artigo 28 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas) – quem define o que são drogas é o Ministério da Saúde148.

Verifica-se, portanto, que o complemento de uma norma penal em branco pode se dar por atos normativos diversos, como leis, decretos e portarias. Nesse diapasão, insta esclarecer que, quando o complemento for estável, ou seja, possuir caráter

147 “Art. 237, CP. Contrair casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a

nulidade absoluta:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano”.

148 Atualmente, a atribuição para relacionar as drogas que causem dependência física e psíquica é da

Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), órgão vinculado ao Ministério da Saúde. Nesse sentido a Lei n. 11.343/06, apontou em seu artigo 66 a vigência da Portaria n. 344, de 12 de maio de 1998, da SVS/MS (Secretária de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde).

permanente, se, esse complemento deixar de existir, não será mais possível falar em crime, pois o complemento terá retroatividade.

Já, se o complemento tiver caráter excepcional ou temporário, o que é relevante é a data do fato e, portanto, nesse caso, o complemento terá ultratividade, como ocorre com o previsto no artigo 2º, inciso VI149, da Lei 1.521/51 (Crimes Contra a Economia Popular) – o comerciante que vende mercadoria por um preço acima da tabela, comete crime contra a economia popular.

Se depois da venda acima do preço tabelado, o tabelamento deixar de existir, como o complemento é temporário, terá ultratividade. Dessa forma, se o vendedor efetuou a venda acima do valor na época do tabelamento, o crime permanecerá.

Para Basileu Garcia as normas penais em branco, de certa forma, atentam contra o princípio da legalidade. Na sua visão:

“Por vezes, a lei penal, ao conceituar a infração, reporta-se a textos extra-penais, em vigor ou porvindouros, de cujo conteúdo ficam a depender os contornos e a própria existência da figura delituosa. Aí temos a chamada lei penal em branco, modalidade que, pela sua progressiva adoção, assume uma importância que de certo modo cerceia o império do princípio nullum crimen. Sim, porque surge tão difusa e imprecisa, em alguns casos, a complementação da norma penal, e obriga tão intrincadas averiguações para positivar-se a existência ou não do crime, que aquele dogma fundamental decai do seu valor como garantia contra imputações especiosas ou arbitrárias”150.

Entretanto, com a devida “venia”, a norma penal em branco não ofende o princípio da legalidade, desde que o complemento da lei penal seja encontrado em outra fonte normativa, previamente determinada e conhecida.

Porém, é de se reconhecer que o complemento da norma penal em branco, normalmente, é temporário, devendo nesse caso ter aplicação ultrativa, mantendo a

149 “Art. 2º, Lei n. 1.521/51. São crimes desta natureza: (...)

VI – transgredir tabelas oficiais de gêneros e mercadorias, ou de serviços essenciais, bem como expor à venda ou oferecer ao público ou vender tais gêneros, mercadorias ou serviços, por preço superior ao tabelado, assim como não manter afixadas, em lugar visível e de fácil leitura, as tabelas de preços aprovadas pelos órgãos competentes”; (...)

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de dois mil a cinquenta mil cruzeiros”.

150 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 4ª ed. São Paulo, Max Limonad, s/d, v. I, Tomo I, p.

conduta, no futuro, como criminosa, o que sedimenta um desdobramento diferenciado no tratamento dessa lei penal no tempo, como ocorre com as leis temporárias e excepcionais.

Retornando-se à questão da proteção de bens difusos e coletivos na seara penal, a utilização da técnica da norma penal em branco apresenta-se como via adequada e necessária a ser utilizada, pois permite que a norma seja atualizada mais celeremente, propiciando um aprimoramento normativo capaz de acompanhar a evolução da criminalidade transindividual.

Defendendo a utilização das normas penais em branco no que concerne à tutela do meio ambiente, Cándido Conde-Pumpido Tourón, apresenta quatro indagações e respectivas respostas, capazes de justificar essa exigência:

“1. Por que se protege penalmente o meio ambiente? Por razões constitucionais (é um imperativo do art. 45.3 da Constituição Espanhola) e por razões sociais (existe uma acoçadora demanda social) e por razões dogmáticas (cumpre os três requisitos do princípio de intervenção mínima: é um bem jurídico digno de proteção penal, necessitado de proteção penal e suscetível de proteção penal); 2. O que se protege mediante essas sanções penais? Um bem jurídico autônomo: o meio ambiente ou equilíbrio dos sistemas naturais. Autônomo tanto a respeito dos bens jurídicos tradicionais como da normativa ou atuação administrativa; 3. Quando se deve proteger penalmente? Conforme o princípio de intervenção mínima, nos casos de agressões mais graves quando seja conveniente a utilização de sanções privativas de liberdade que, conforme a Constituição Espanhola, não podem ser impostas pela Administração; e 4. Como se tutela? Mediante a utilização de duas técnicas específicas: a técnica dos delitos de perigo e a técnica de reenvio à normativa administrativa. Esta última é necessária por razões de unidade do ordenamento jurídico, certeza ou segurança jurídica e eficácia”151.

Assim, o uso do mecanismo da norma em branco é indispensável para pavimentação de um caminho seguro na tarefa de proteger os bens jurídicos supra- individuais de relevo para Direito Penal.

151 CONDE-PUMPIDO TOURÓN, Cándido. Complementaridad de la tutela penal e la administrativa

sobre el médio ambiente. Problemas que suscita desde las perspectivas do derecho penal”, em Las

fronteras do código penal de 1995 e el derecho administrativo sancionador, em Cuadernos de derecho judicial, Madrid, Consejo General del Poder Judicial, 1997, p. 440-441, apud, BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Op. cit., p. 113.

No documento MESTRADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2010 (páginas 78-84)