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CAPÍTULO 3. MANDADOS DE CRIMINALIZAÇÃO

3.3. Mandados de criminalização expressos (ou explícitos)

3.3.1. O cumprimento dos mandados expressos de criminalização pelo legislador

3.3.1.2. Crimes hediondos e assemelhados

3.3.1.2.1. Crimes hediondos

Crime hediondo, no Brasil, não é o que no caso concreto se mostra repugnante, asqueroso, depravado, horrível, sádico, cruel, por sua gravidade objetiva, ou por seu modo ou meio de execução, ou pela finalidade do agente, mas sim aquele definido taxativamente pelo legislador ordinário.

Sob a ótica doutrinária, existem três critérios de fixação dos chamados crimes hediondos. São os critérios legal, judicial ou misto. Entende-se por critério “legal” aquele em que o próprio legislador diz quais são os delitos que ele considera hediondos, de forma taxativa.

Diferentemente, o critério “judicial” autoriza ao magistrado, em virtude da gravidade objetiva do fato, ou pela maneira de execução do delito, considerar no caso concreto a infração penal como hedionda, por ter causado intensa repulsa à sociedade. Sendo essa a conclusão, o juiz poderá aplicar a este delito todas as consequências penais e processuais penais advindas do reconhecimento da hediondez.

Segundo o critério “misto”, que conjuga ambos os critérios anteriores, ao legislador compete definir um rol exemplificativo de crimes hediondos, permitindo ao magistrado, em virtude da gravidade objetiva do delito, atribuir a outros delitos o caráter hediondo. Porém, o legislador brasileiro optou pelo critério legal.

O artigo 1º, inciso I, da Lei n. 8.072/90, inicia o rol dos delitos hediondos com o crime de homicídio, que, segundo o legislador, somente será dotado de hediondez quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio – ainda que cometido por um só agente -, ou quando for qualificado.

Vale dizer que na redação originária da Lei n. 8072/90, essas condutas não constavam da relação dos crimes hediondos, situação que perdurou até o advento da Lei n. 8.930, de 6 de setembro de 1994, diploma que modificou a Lei dos Crimes Hediondos para inserir tais crimes no rol do artigo 1º desta, e retirar do mesmo o delito de envenenamento de água potável ou de substância alimentícia ou medicinal, qualificado pela morte (art. 270 c.c art. 285, CP).

Ocorre que o legislador não definiu o que vem a ser atividade típica de grupo de extermínio, e nem “como uma só pessoa pode praticar atividade própria de grupo”218. Melhor seria se tivesse inserido o homicídio doloso, salvo quando privilegiado, no catálogo dos delitos hediondos.

E mais, pelos critérios adotados pelo legislador, praticar homicídio contra uma só pessoa mediante envenenamento configura crime hediondo, porém, como assinala Antonio Carlos da Ponte, “colocar veneno na caixa d’água de uma determinada cidade

e provocar a morte de vários moradores não caracterizaria conduta marcada pela hediondez. Difícil compreender a lógica concebida”219.

Quanto aos crimes de “latrocínio”220, “extorsão qualificada pela morte”221,

“extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada”222, “estupro”223, “estupro de

218 PONTE, Antonio Carlos da. (Op. cit., p. 155). 219 Ibidem.

220 “Art. 157, CP. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou

violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência: Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. (...)

§ 3º (...); se resulta morte, a reclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, sem prejuízo da multa”.

221 “Art. 158, CP. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e com o intuito de obter

para si ou para outrem indevida vantagem econômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa. (...)

§ 2º Aplica-se à extorsão praticada mediante violência o disposto no § 3º do artigo anterior”.

222 “Art. 159, CP. Seqüestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem,

como condição ou preço do resgate:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Se o seqüestro dura mais de 24 (vinte e quatro) horas, se o seqüestrado é menor de 18 (dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se o crime é cometido por bando ou quadrilha:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 20 (vinte) anos.

§ 2º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 16 (dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos. § 3º Se resulta morte:

Pena – reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30 (trinta) anos” (...).

223 “Art. 213, CP. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a

vulnerável”224, “epidemia com resultado morte”225 e “genocídio”226, é de se reconhecer que o legislador andou bem em prevê-los entre as condutas gravadas pela hediondez.

Todavia, no que tange ao crime de “falsificação, corrupção, adulteração ou

alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais”, a crítica deve novamente ser pontuada.

De acordo com o inciso VII-B, do artigo 1º, da Lei n. 8.072/90, são consideradas hediondas as condutas descritas no artigo 273, “caput”, e § 1º, § 1º A, § 1º B, do Código Penal, com a redação dada pela Lei n. 9.677, de 2 de julho de 1998, cuja redação é a seguinte:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. § 2º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

224 “Art. 217-A, CP. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze)

anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

§ 2º (Vetado.)

§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.

§ 4º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

225 “Art. 267, CP. Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos.

§ 1º Se do fato resulta morte, a pena é aplicada em dobro”.

226 O crime de genocídio vem previsto nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei n. 2.889, de 1º de outubro de 1956,

cuja redação é a seguinte:

“Art. 1º. Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal: a) matar membros do grupo; b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial; d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; Será punido: com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a; com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b; com as penas do art. 270, no caso da letra c; com as penas do art. 125, no caso da letra d; com as penas do art. 148, no caso da letra e”.

“Art. 2º. Associarem-se mais de 3 (três) pessoas para prática dos crimes mencionados no artigo anterior: Pena – metade da cominada aos crimes ali previstos”.

“Art. 3º. Incitar, direta e publicamente, alguém a cometer qualquer dos crimes de que trata o art. 1º: Pena – metade das penas ali cominadas.

§ 1º A pena pelo crime de incitação será a mesma de crime incitado, se este se consumar. § 2º A pena será aumentada de um terço, quando a incitação for cometida pela imprensa”.

“Art. 273. Falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais:

Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem importa, vende, expõe à venda, tem em depósito para vender ou, de qualquer forma, distribui ou entrega a consumo o produto falsificado, corrompido, adulterado ou alterado.

§ 1º-A. Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico.

§ 1º-B. Está sujeito às penas deste artigo quem pratica as ações previstas no §1º em relação a produtos em qualquer das seguintes condições:

I – sem registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária competente;

II – em desacordo com a fórmula constante do registro previsto no inciso anterior;

III – sem as características de identidade e qualidade admitidas para a sua comercialização;

IV – com redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade; V – de procedência ignorada;

VI – adquiridos de estabelecimento sem licença da autoridade sanitária competente.

§ 2º (...)”.

A crítica se assenta no disposto no § 1º-A, tendo em vista que, por vezes, o princípio da proporcionalidade acabará sendo violado. A pena de 10 (dez) a 15 (quinze) anos de reclusão e a natureza hedionda da conduta poderão ser proporcionais, dependendo do que for falsificado, corrompido, adulterado ou alterado, como, por exemplo, um medicamento que auxilia no tratamento do câncer. Entretanto, se a conduta recair sobre um cosmético sem qualquer relevância, como, por exemplo, um batom, haverá desproporcionalidade na resposta penal.

Sabe-se, também, que as alterações promovidas para inserção do homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, de homicídio qualificado e da falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais, foram frutos de episódios emblemáticos que repercutiram na mídia: o assassinato de uma jovem atriz que atuava na maior empresa de televisão do país; e o escândalo das “pílulas de farinha”, que decorreu do fato de que muitas mulheres, embora tivessem tomado corretamente o anticoncepcional, acabaram engravidando em função da falsificação na composição das pílulas.

Em ambos os acontecimentos, em função da comoção social e do escândalo deflagrado na imprensa, o Congresso Nacional se apressou em aprovar no afogadilho, as

Leis 8.930/94 e 9.695/98, atuando de forma descuidada em relação à temática tão relevante dos mandados de criminalização227.

Percebe-se, pois, que uma matéria tão relevante, como a definição dos crimes hediondos, infelizmente, foi tratada de maneira açodada pelo legislador. Melhor seria se o critério utilizado fosse o judicial, o qual possibilitaria que o magistrado diante da gravidade ou não do fato no caso concreto pudesse sopesar se o delito deveria ser ou não gravado como hediondo.

Com essa permissão, outras infrações graves como o racismo, a corrupção em grande escala na administração pública, a corrupção eleitoral, por exemplo, poderiam receber a marca da hediondez na situação concreta. Todavia, não é o que acontece, pois o critério adotado na definição de crime hediondo foi o legal.

Por fim, é necessário salientar que a Lei n. 12.015, de 7 de agosto de 2009, alterou os incisos V e VII do artigo 1º da Lei n. 8.072/90, para adaptar a redação desta em relação à nova diretriz adotada no Título VI da Parte Geral do Código Penal, que cuida dos “crimes contra a dignidade sexual”.

De acordo com essa nova realidade, entre outras alterações feitas nos crimes contra a dignidade sexual - antes denominados “crimes contra os costumes” -, compete, nesse momento, destacar que o artigo 214 do Código Penal, que previa o crime de atentado violento ao pudor, considerado até então como crime hediondo, foi revogado pela Lei n. 12.105/09.

Entretanto, não se pode incidir no equívoco de dizer que se operou “abolitio

criminis” em relação às condutas previstas anteriormente como atentado violento ao

227 Com absoluta razão, Antonio Carlos da Ponte, ao comentar tais alterações, expõe sua crítica nos

seguintes termos: “Interessante observar que a modificação foi provocada pelo assassinato de uma atriz,

ligada a grande mídia, que causou sensível comoção. A técnica empregada pelo legislador foi a pior possível, ao não inserir o homicídio como crime hediondo, mas apenas o homicídio qualificado e o homicídio simples, quando praticado em ‘atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente’. (...) A modificação introduzida demonstra ausência de critério e o modo absolutamente inconseqüente como um mandado de criminalização pode ser tratado, servindo como objeto de manipulação momentânea por parte de um legislador ordinário despreparado, preocupado em combater a criminalidade por meio de medidas paliativas e eleitoreiras, não políticas de Estado” (Op. cit., p. 155-156).

pudor. O que houve, foi que o legislador optou por descrever as condutas que configuravam o atentado violento ao pudor no novel artigo 213 do Código Penal, que passou a admitir não apenas a conjunção carnal, mas qualquer ato libidinoso praticado com violência ou grave ameaça como comportamento típico do crime de estupro.

Extinguiu-se, portanto, a divisão existente até o advento da Lei n. 12.015/09, entre os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor, para se estabelecer em um único tipo penal as condutas criminosas que antigamente levavam à separação dos delitos.

Outra modificação trazida pela Lei n. 12.015/09, que interessa ao presente trabalho, foi aquela que implicou a criação do chamado estupro de vulnerável. Na essência, o legislador extraiu as hipóteses antes definidas como violência presumida (no revogado art. 224, CP), fez pequenas adaptações na redação e as estabeleceu diretamente em um tipo penal autônomo (art. 217-A, CP), passando a prever uma pena mais severa [8 (oito) a 15 (quinze) anos de reclusão] do que aquela aplicável ao crime de estupro do artigo 217 do Código Penal [6 (seis) a 10 (dez) anos de reclusão].

Disto decorre que se o agente praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 (quatorze) anos, ou com pessoa que por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, consolidada estará a conduta descrita no artigo 217-A do Código Penal – estupro de vulnerável -, com pena mais gravosa do que a do estupro.

Assim, além da resposta penal se apresentar mais forte, quando da prática do estupro de vulnerável não será mais necessário promover uma adequação típica mediata, pois o enquadramento da conduta será feito diretamente no artigo 217-A do Código Penal.

No documento MESTRADO EM DIREITO PENAL SÃO PAULO 2010 (páginas 104-109)