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A estrutura de evento

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 171-177)

Pustejovsky examina o papel dos eventos dentro de uma teoria de semântica lexical. Propõe uma teoria de estrutura de evento configuracional. Sugere que a decomposição lexical é possível se realizada gerativamente. Ao invés de assumir um conjunto fixo de primitivos, assume um número fixo e reduzido de recursos gerativos que podem ser entendidos como responsáveis pela construção de expressões semânticas. No nível da estrutura de eventos, defende que qualquer verbo pode ser caracterizado como pertencendo a um dos três tipos básicos de evento: estados, processos e transições.4 A teoria

de decomposição delineada pelo autor está baseada na ideia de que o significado das palavras é altamente estruturado, e não simplesmente um conjunto de traços. Assim, a cada tipo de evento está associado um molde semântico que desvela sua estrutura interna. As noções teóricas básicas podem então ser assim resumidas: o léxico é estruturado em quatro níveis (argumentos, eventos, qualia e herança lexical) e prevê dispositivos gerativos que atuam em cada um desses níveis (a coerção de tipo, a ligação seletiva e a co-composicionalidade). Vamos nos deter aqui especificamente na estrutura do evento.

Nessa teoria, a estrutura de evento, tendo em vista as três classes, é interpretada em termos de precedência temporal e inclusão de evento exaustiva, ou seja, para um evento e, representado como [e1, e2], a interpretação pretendida é que e é um evento contendo dois subeventos,

4 Para Pustejovsky, as quatro classes aspectuais apontadas em outras teorias (VENDLER,

1967; DOWTY, 1979; BACH, 1986) resumem-se em três configurações estruturais distintas. As

em que o primeiro precede temporalmente o segundo e não há nenhum outro evento localmente contido no evento e. E é uma variável para qualquer tipo de evento.

Dentro dessa perspectiva, os estados ( S ) são apresentados como sendo um evento único que não é avaliado em relação a nenhum outro evento. A representação estrutural é a seguinte:

S

e

Os processos (P) constituem uma sequência de eventos que identificam a mesma expressão semântica, ou seja, e1, e2 são do mesmo tipo.

P

e1 en

As transições (T) seriam um evento identificando uma expressão semântica que é avaliada em relação à sua oposição.

T

E1 E2

Especificando melhor os eventos que têm estrutura interna (os estados estão fora disso), um verbo de processo engloba uma sequência de eventos do mesmo tipo [e1...en]. Pustejovsky assume, seguindo Dowty (1979), que, quando P é um verbo de processo, se a expressão semântica P’ é verdadeira num intervalo I, então P’ é verdadeira para todos os subintervalos de I maior que um momento.

Para explicitar a representação lexical, o autor assume, ainda, um nível de representação em que as distinções da classe do verbo são caracterizadas em termos de uma estrutura do tipo “estrutura

conceptual lexical” (LCS),5 que ele chama de LCS’. Uma outra

representação semântica, a LCS, toma a forma de decomposição de um predicado e pode ser construída, interpretando a estrutura de evento junto com a LCS’. As árvores representam uma informação em termos da LCS dividida de acordo com a estrutura do evento. A LCS é, portanto, obtida a partir da estrutura de evento junto com a LCS’.

Assim, a representação de um processo como Maria corre seria a seguinte: (7) a. Maria corre b. ES* P e1...en LCS’ [corre (m)] LCS [corre (m)] *ES = estrutura de evento (event structure)

Essa representação é enriquecida em Pustejovsky (1995), com a introdução da noção de núcleo do evento e de relações de ordenação temporal. A ideia de núcleo possibilita uma configuração em que os eventos não estão simplesmente ordenados por precedência temporal, mas marcados por uma proeminência relativa. Quanto à relação de ordenação temporal, os processos se caracterizam por uma relação do tipo <oα6, ou seja, [ e

1 <oα e2]. Isso significa que e1 começa antes

de e2 e há, ao mesmo tempo, uma relação de sobreposição (overlapping) temporal. Não vou me deter nessas noções por não serem relevantes para a discussão proposta aqui.

As distinções aspectuais feitas por Pustejovsky englobam

achievements e accomplishments. Essas duas classes, segundo o autor,

podem ser distinguidas somente em termos da dicotomia não agentivo/

5 Em relação à noção de LCS (lexical conceptual structure), Pustejovsky afirma estar adotando

representação similar à de Dowty (1979), Jackendoff (1983) e Levin e Rappaport (1988 apud PUSTEJOVSKY, 1991).

agentivo. Ou seja, quando o verbo faz referência tanto à oposição do predicado quanto à atividade que provoca a mudança, então o tipo aspectual resultante é um accomplishment, conforme representação estrutural em (8). Quando o verbo não faz referência explícita à atividade que está sendo desenvolvida, o tipo aspectual resultante é um

achievement, conforme representação estrutural em (9).

(8) a. Accomplishment

ES T

P S LCS’ [act(x,y)& Q(y)] [Q (y)] LCS Cause ( [act (x,y) ], become (Q(y)))

(9) a. Achievement

ES T

P S LCS’ [Q (y) ] [Q (y) ] LCS Become (Q (y) )

Aplicando esses esquemas a dados empíricos, temos como resultado as representações em (10) e (11), em que construir representa a classe dos accomplishments e morrer a dos achievements.

(10) a. Maria construiu uma casa. ES T

P S LCS’ [act (m, y) & house (y)] [ house (y)] LCS cause ([act(m,y)], become (house (y)))

(11) a. Maria morreu.

ES T

P S LCS’ [morta (m)] [morta (m)] LCS become ( [ morta (m) ] )

O que parece distinguir o modelo de Pustejovsky de outros mo- delo é o fato de que tanto accomplishments como achievements possuem um processo antes do estado final. O que os distingue é o operador

Cause presente nos accomplishments e ausente nos achievements.

O escopo dos advérbios na estrutura de eventos

Pustejovsky usa os advérbios como exemplos para a funcionalidade de sua teoria. Observa que esses itens lexicais podem apresentar escopo largo ou escopo estreito, referindo-se a advérbios orientados para o falante ou sujeito e advérbios de modo, respectivamente. Defende que, na estrutura de evento proposta por ele, essa ambiguidade pode ser mais bem explicada. Para ele, essa ambiguidade resulta de uma distinção estrutural e não de uma polissemia lexical: nas diferentes leituras, os advérbios são idênticos; diferentes escopos é que dão origem à ambiguidade mencionada.

Essa posição não é nenhuma novidade no tratamento dos advérbios. Outras teorias também buscam explicar o efeito de significado dos advérbios a partir do seu escopo na estrutura, procedendo daí classificações conhecidas como advérbio de discurso, advérbio de sentença, advérbio de VP, dentre outras. A novidade neste tratamento é considerar a estrutura do evento. Para se ter uma ideia de como funciona, vou utilizar um exemplo do próprio autor. Um verbo como depart teria, para Pustejovsky, a seguinte estrutura de evento:

(12) a.

ES T

P S LCS’ [act (x) & departed (x)] [ departed (x)]

Tendo em vista esta representação, concluímos que o autor avalia este predicado como sendo um accomplishment,7 distinguindo a ação 7 Embora não concorde com a classificação do autor em relação a depart como um

de partir e o estado resultante de ter partido. Um advérbio como rudely, tradicionalmente classificado como modo, pode agir de diferentes maneiras na estrutura: pode pegar a estrutura como um todo agindo sobre o processo (escopo largo) e, nesse sentido, será interpretado como “foi rude da parte dele partir”, ou pode agir especificamente sobre o subevento ação (escopo estreito), com a interpretação de que a partida foi rude. No primeiro caso, teremos um advérbio de sentença; no segundo, um advérbio de modo.

Pustejovsky chama a atenção para o comportamento idiossincrático dos advérbios modificadores de eventos: cada advérbio aduz informações diferentes. Nos exemplos em (13) e (14), enquanto 'vagarosamente' se refere, em ambos os exemplos, ao modo de ação, tendo apenas o escopo estreito, 'rapidamente' pode ter as duas leituras: o modo de ação ou a duração do evento como um todo, tomando o sujeito como escopo: a Maria foi rápida (decidiu de forma rápida andar até o parque).

(13) a. A Maria andou até o parque vagarosamente.8 b. A Maria vagarosamente andou até o parque. (14) a. A Maria andou até o parque rapidamente.

b. A Maria rapidamente andou até o parque.

Segundo o autor, um tratamento desse tipo teria condições de dar conta da ambiguidade de um advérbio como almost, ambiguidade essa já apontada em Dowty (1979). O uso do advérbio almost constitui um teste para diferenciar os accomplishments das outras classes, já que a ambiguidade se verifica somente para os eventos que denotam

accomplishments. Isso se deve ao fato de este tipo de predicado ter dois

predicados distintos envolvidos na sua estrutura: primeiro, o processo que está sob o operador act; segundo, o estado resultante. Para entender

accomplishment, acho que vale a pena analisar o exemplo.

melhor, vejamos os exemplos em (15). Vou usar os exemplos em português, já que, nessa língua, podemos observar o mesmo efeito.

(15) a. O João quase construiu uma casa. b. O João quase correu.

c. O João quase morreu.

Em todos os exemplos, constatamos a leitura de que a ação denotada nem chegou a começar; por outro lado, somente em (15a), um predicado que denota accomplishment, é possível observar, além dessa leitura, a interpretação de que o João começou a construir, mas não terminou.

Na seção seguinte, vou detalhar um pouco mais essa abordagem a fim de constatar sua eficácia para o tratamento da noção de modo em relação às diferentes estruturas de evento denotadas pelos diferentes predicados.

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 171-177)