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A modificação de modo e as diferentes estruturas do evento

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 177-184)

Nesta seção, vou examinar melhor como se comportam os advérbios de modo terminados em –mente em relação à estrutura de evento proposta por Pustejovsky. Será possível observar, em primeiro lugar, que a noção de modo veiculada por esses advérbios precisa de um subevento processo para se aplicar. Em segundo lugar, podemos concluir que há um componente lexical forte que determina se o advérbio em –

mente pode ou não agir como predicado de evento.

Vamos começar com os accomplishments, já que esses predicados têm uma estrutura eventual mais clara e mais rica. Tomemos

accomplishments típicos como em (16).

(16) O João leu o livro inteiramente/rapidamente/inteligentemente/ superficialmente/ininterruptamente/vagarosamente.

Todos os advérbios listados em (16) podem ter como escopo o subevento ação, que é a parte do accomplisment referente ao processo. A representação pode ser observada em (17).

(17) a. João leu o livro.

ES T

P (rapidamente) S LCS’ [act (j, y) & lido (y)] [ lido (y)] LCS cause ([act(j,y)], become (lido (y)))

Em (16), tendo escopo sob o processo (escopo estreito), o advérbio veicula uma leitura de que o desenrolar da ação foi rápido, ou seja, o advérbio nos informa a respeito do modo como a ação foi desenvolvida até chegar no estado resultante “o livro lido”. A partir dessa representação, podemos levantar algumas questões: a) há advérbios que modificam o estado resultante? b) todos os advérbios em (16) poderiam ter, ao mesmo tempo, escopo largo e estreito, ou seja, pegar a transição como um todo ou pegar especificamente um subevento?

A resposta para a questão a, tendo em vista os advérbios de modo em –mente, é não. Isso ficará mais claro quando tratarmos dos estados. Na medida em que o estado é alcançado, ele não pode mais sofrer uma modificação de modo. Um advérbio como quase, por exemplo, pode modificar o estado resultante,9 mas quase é um operador de um outro

tipo, não veicula a noção de modo. A resposta para a pergunta b também é não. Eu diria que advérbios como inteiramente, ininterruptamente, vagarosamente só podem designar o modo de ação; advérbios como 'inteligentemente', 'superficialmente', 'rapidamente' podem também tomar a sentença, veiculando informação orientada para o sujeito. Outros, como 'certamente', 'felizmente', 'dificilmente', são orientados especificamente para o discurso, modificando o ato de fala.10 Nesse

sentido é que eu afirmo que existe um componente que é especificamente

9 Ver a análise do almost proposta em Pustejovsky (1991).

10 Certamente, essa classificação não esgota a variação dos advérbios em –mente. Mesmo dentre

os advérbios mais baixos, ou de modo, podemos reconhecer alguns que se voltam especificamente para o objeto, como em Ele cortou o bolo finamente – seria uma espécie de resultativo. Arrisco a dizer que esses e, numa certa medida, os advérbios de modo em –mente, em geral, tendem a ser realizados sem a morfologia de advérbio (Ele cortou o bolo fininho). Apresento maiores detalhes

lexical. As possibilidades estão no léxico. Essa afirmação vai um pouco na contramão da teoria de Pustejovsky, mas acho que não temos como ignorar esses fatos. Que traço lexical determina esse comportamento? Essa é uma questão ainda não suficientemente esclarecida.

A estrutura prevista para os processos (atividades) só permite que o advérbio modifique a expressão associada ao primeiro evento ou o único, já que os subeventos são todos iguais e identificam a mesma expressão semântica. Em (18a), apresento a representação que Pustejovsky propõe para o almost.

(18) a. John almost ran

b. ES P [almost (P)] e1...en

[run (x)]

A minha dúvida é, se adotarmos essa representação, como poderíamos diferenciar escopo largo de escopo estreito? Os exemplos em (18) fundamentam essa preocupação.

(19) a. João rapidamente nadou. b. João nadou rapidamente.

Em (19a), podemos ter a interpretação de que a intenção de nadar foi rápida, a decisão do João em nadar foi tomada rapidamente. Em (19b), a leitura mais plausível é que o nado se desenvolve de modo rápido. Para dar conta dessas duas leituras, podemos propor que, no caso da leitura de modo, o advérbio tenha como escopo um dos subeventos. Como esses subeventos, no caso dos processos, são do mesmo tipo e como há uma relação temporal de sobreposição e precedência entre eles, isso garante que o modo perpasse todos os subeventos. Assim, a proposta em (18) pode ser a representação do escopo largo, leitura atribuída a (19a), enquanto a leitura deduzida de (19b) teria a representação apresentada em (20).

(20) a. João nadou rapidamente. b. ES P

e1 (rapidamente) e2 e3...en

[nadar (x)]

Dar conta dos achievements é uma tarefa um pouco mais complicada. Se o achievement é pontual, não tem o subevento processo, esperaríamos que não fosse possível a modificação de modo. Mas não é isso que se observa.

(21) a. O João atingiu o pico da montanha/lentamente/vagarosamente/ inteligentemente.

b. O João morreu lentamente.

Observando (21a), podemos perceber que o que se dá lentamente, ou vagarosamente, ou inteligentemente é a ação que João desencadeia para chegar ao pico; no entanto, isso não faz parte do significado de “atingir o pico da montanha”. O mesmo se dá em relação ao exemplo (21b): lento foi o que aconteceu no período que antecede a morte. Isso também não faz parte do sentido de morrer. Rothstein (2004), ao distinguir

accomplishments e achievements, afirma que, nos accomplishments, o

processo é dado lexicalmente; já nos achievements, o processo é fruto de uma inferência contextual. A representação proposta por Pustjovsky prevê isso ao assumir os achievements como uma transição que vai de um processo a um estado resultante, embora ele não qualifique claramente esse processo. A saída mais plausível foi adotar a representação em (22) e afirmar que, como o subevento é pontual e é um estado resultante, e como a noção de modo é necessariamente durativa, o advérbio se aplica ao contexto que antecede o evento.

(22) a. O João morreu lentamente. ES T

P S LCS’ [morto (j)](lentamente) [morto (j)]

Finalmente, podemos falar dos estados. Já adiantamos que os estados são avessos a esse tipo de modificação. Na verdade, o modelo prediz isso ao afirmar que os estados não têm estrutura interna. Por esse motivo, essa classe aspectual deveria ser imune à modificação de modo. Essa restrição foi atestada na literatura já em Harris (1968) e Jackendoff (1972 apud KATZ, 2008). Para alguns, essa característica é usada como traço distintivo da classe dos estativos (HINRICHS, 1985 apud KATZ, 2008). Para Katz (2008), essa impossibilidade decorre da diferença entre estrutura argumental dos verbos estativos e verbos eventivos, ou seja, o argumento evento – verbos estativos não apresentam esse argumento. Os exemplos em que Katz se pauta estão em (23).

(23) a.*John resembled Sue slowly.

b. *She desired a raise enthusiastically. c. *They hate us revoltingly.

Como no inglês, os verbos estativos do português parecem também resistir a essa modificação. A impressão que temos é que não conseguimos encontrar advérbios de modo apropriados para modificar uma eventualidade de tal tipo. Alguns exemplos, no entanto, parecem vir na contramão dessa afirmação.

(24) a. João sabe francês bem.

b. Lisa acredita firmemente que o João é inocente. c. Maria ama Pedro apaixonadamente.

Exemplos desse tipo também são analisados por Katz. O autor desenvolve uma análise extensa e concluiu que a modificação em (24)

é de grau e não de modo. Compartilho dessa interpretação, pois, ao compararmos (24a) com (25), podemos observar a diferença.

(25) João fala francês bem.

Falar francês bem é uma das realizações possíveis desse evento, não é um grau do evento de falar,11 mas saber francês bem diz em que

medida se sabe francês.

A estrutura de evento de Pustejovsky, de certa forma, prevê essa possibilidade, pois os estados, não apresentando estrutura interna, não possibilitam que o advérbio assuma o escopo estreito, exigência para obter-se a leitura de modo. Da mesma forma, quando o subevento é um estado resultante, a mesma restrição se verifica.

Conclusão

Este trabalho abordou o comportamento de advérbios de modo terminados em –mente em relação às diferentes classes aspectuais, tendo em vista a estrutura de evento apresentada em Pustejovsky (1991 e 1995). Em relação às transições, observo que tal advérbio só pode modificar o processo.12 No caso de predicado do tipo achievements, por não apresentar

o subevento processo, a única opção é modificar o contexto precedente. Por sua vez, o predicado processo amolda-se perfeitamente a esse tipo de modificação. Já o predicado estativo, por não ter estrutura interna, reage à modificação em foco, o que acentua a consistência da teoria.

A teoria de eventos de Pustejovsky mostra-se assim adequada para que se possa refletir sobre a noção de modo, bem como representá-la. No entanto, se o tratamento que damos aos achievements está correto, essa teoria não consegue dar conta de todas as especificidades. Vale observar,

11 Advérbios como bem, mal, muito sempre implicam grau num certo sentido, mas, quando

empregados em relação a eventos, veiculam uma avaliação da maneira como o evento é realizado.

também, que a divisão tripartite proposta pelo autor – em oposição à divisão vendleriana – é de certa forma incongruente, já que, quando tratamos das transições, precisamos explicitar se estamos falando de

accomplishments ou achievements.

Em relação à modificação de modo, cabe ainda um comentário: as restrições observadas são muito próximas das restrições que se impõem sobre predicados secundários, estudo feito em Foltran (1999). Já observei isso em trabalhos anteriores, no entanto, ainda não formulei uma explicação a contento para essa semelhança. É interessante lembrar que, no alemão, advérbios de modo não recebem nenhuma morfologia específica – usa-se a forma adjetival tal e qual. Sentenças como as de (26a) têm uma interpretação vaga entre uma leitura de predicado secundário e uma construção adverbial, o que torna tênue a diferença entre (26a) e (26b).

(26) a. Maria canta alegre. b. Maria canta alegremente.

Isso corrobora a sensação de que esses fenômenos interagem em algum ponto – só ainda não sabemos exatamente como e onde.

A relação entre perfectividade e

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 177-184)