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Compostos “aparentes”

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 33-37)

Os nomes na Libras não possuem marcação morfológica de gênero. Quando é necessário esclarecer qual é o sexo do referente por razões discursivas, uma das maneiras de fazê-lo nos substantivos é a combinação dos sinais independentes HOMEM ou MULHER com o sinal de base, como mostram os exemplos abaixo:8

(11) a. HOMEM^CRIANÇA [menino] b. MULHER^CRIANÇA [menina]

Em (11), ao sinal CRIANÇA acrescentou-se em primeira posição o sinal HOMEM ou MULHER, esclarecendo assim qual é o sexo do referente. Este recurso parece ser muito comum na língua, como se vê nos exemplos em (12) a seguir:

(12) a. HOMEM^BEBÊ / MULHER^BEBÊ [bebê – menino ou menina] b. HOMEM^JOVEM / MULHER^JOVEM [rapaz /moça]

c. HOMEM^TI@ / MULHER^TI@ [tio / tia]

d. HOMEM^FILH@ / MULHER^FILH@ [filho / filha]

8 Para a transcrição dos dados em Libras, usaremos alguns dos símbolos do sistema de notação

comumente adotado pelos pesquisadores de línguas de sinais aqui e em outros países. São eles: a) letras maiúsculas para a representação dos sinais a partir de itens lexicais do português; b) símbolo “^” para representar os sinais compostos; c) datilologia (alfabeto manual) representada pelas letras maiúsculas separadas por hífen; d) símbolo @ no lugar da flexão de gênero, a fim de mostrar a ausência desta marca morfológica em Libras. Cf. <http://www.ines.gov.br/ines_ livros/37/37_003.HTM>.

Esses sinais apresentam distribuição de nome na língua, já que podem assumir a função sintática de sujeito e de objeto nas sentenças. Observa-se, no entanto, que não convém chamar a esse processo “flexão de gênero”, já que não se trata verdadeiramente de flexão – ele não apresenta certas propriedades que Câmara Júnior. (1970) atribui à flexão, como ser obrigatória, regular e desencadear concordância. Na verdade, ele se parece mais com o expediente lexical do PB que consiste na aposição das palavras 'macho' e 'fêmea', usado exatamente quando queremos esclarecer o sexo de um referente no caso de o nome não admitir flexão de gênero, como em 'cobra macho' ou 'jacaré fêmea'.

Por outro lado, tampouco é possível tomar esse tipo de combinação entre sinais como verdadeira composição – e essa é a razão pela qual lhe chamamos composto “aparente”, uma vez que, embora a ordem mais comum seja [HOMEM + N] ou [MULHER + N], a ordenação entre os sinais pode variar, como mostra (13) abaixo:

(13) a. BEBÊ^HOMEM / BEBÊ^MULHER [bebê – menino ou menina] b. IRM@^HOMEM / IRM@^ULHER [irmão / irmã]

c. TI@^HOMEM / TI@^MULHER [tio / tia]

d. FILH@^HOMEM / FILH@^MULHER [filho / filha]

O fato de a ordem ser variável depõe contra a hipótese da composição, onde a ordem dos elementos componentes é invariável. Além disso, a aposição dos sinais HOMEM ou MULHER na Libras em geral não é obrigatória, pois é possível usar sinais como CRIANÇA, BEBÊ, JOVEM, IRM@ sozinhos na língua, sem qualquer referência ao sexo do referente. Assim, essas formações não parecem constituir um composto de fato, já que a aposição não é obrigatória e apresenta ordem variável.

Por outro lado, nos sinais correspondentes a pai e mãe na Libras, tem-se uma situação diferente,9 pois nesses casos observamos seja a

9 É preciso dizer que há alguma variação (dialetal?) aqui: para alguns falantes, houve uma

modificação no par pai x mãe: no caso de pai, prevaleceu o sinal que se lexicalizou a partir de uma soletração manual (P-A-I), ao passo que, no caso da mãe, permaneceu apenas a segunda

obrigatoriedade da presença do sinal HOMEM/MULHER para sua formação, seja a ordem fixa, característica dos compostos nas línguas naturais. Os exemplos em (14) ilustram essas propriedades:

(14) a. HOMEM ^BENÇÃO [papai] b. MULHER^BENÇÃO [mamãe] c. *BENÇÃO^HOMEM [papai] d. *BENÇÃO^MULHER [mamãe]

Deve-se observar que, no caso específico desses dois sinais, BENÇÃO apresenta a característica de não poder ser usado como um item lexical independente (mas cf. nota 9). Há que se observar também que ele aparece somente nesses dois sinais, o que nos faz pensar em algum tipo de lexicalização, não em um processo morfológico produtivo.

Um caso similar mas aparentemente mais produtivo é o que, na falta de um nome mais preciso, chamaremos um expediente de “quantificação genérica” em Libras, exemplificado em (15) abaixo:

(15) a. MAÇÃ^DIVERSO [frutas] b. LEÃO^DIVERSO [animais] c. ROUPA^DIVERSO [vestuário]

O processo de “composição” aqui é simples: usa-se o sinal de um elemento prototípico do grupo que se deseja classificar (para frutas, por exemplo, o sinal relativo a maçã) e acrescenta-se a ele um morfema (preso?) que parece ser parte do sinal COISA (ou COISAS^DIVERSAS). A hipótese de que se trata de parte do sinal COISA vem do fato de que esse sinal é realizado com as duas mãos e com movimento duplo. No caso dos exemplos de quantificação genérica acima, apenas uma mão é usada, com a mesma configuração de mão do sinal COISA e com

lexicalizar parte do composto com o valor do composto todo também ocorre no PB com o que a GT chama de “pseudoprefixos”; por exemplo, o radical grego auto- (que age por si só, como

automóvel) passou a existir independentemente com o significado do composto, de tal modo que

movimento simples, não o movimento duplo original, compartilhando com o sinal completo os mesmos traços semânticos.10

Nesse caso de “quantificação genérica”, a ordem dos sinais também é sempre fixa e é essa mesma ordem pós-nominal do “quantificador” que se observa em geral nas estruturas de quantificação com numerais ordinais em Libras, como se vê em (16):

(16) a. M-A-R-I-A IDADE 3 (Maria tem 3 anos) b. EU TER CACHORR@ 4 (eu tenho 4 cachorros)

No entanto, também no caso da “quantificação genérica” não é claro que estejamos falando efetivamente de composição, porque não há a justaposição de dois sinais independentes mas a formação de um novo item lexical parece se dar a partir de um sinal independente e de um morfema preso (contudo cf. nota 10). Aqui se recoloca o problema que levantamos no começo da discussão sobre composição: com formas do tipo quantificacional, como bi- em PB, temos dúvidas sobre o estatuto lexical dessa forma na língua, ainda mais quando são formas presas, que não exibem propriedades claras da classe à qual pertencem, por hipótese, à classe dos nomes na língua.11

É possível também que estejamos diante de uma espécie de composição por aglutinação na língua, dado o que se sabe sobre a existência de processos fonológicos atuantes em compostos nas línguas

10 Segundo T. Leite (c.p.), o sinal COISAS^DIVERSAS, normalmente formado por duas

mãos ativas e simétricas, também pode ser realizado com uma única mão; quando o falante está fazendo uma lista e usando a mão passiva como apoio para a listagem, é comum sinalizar COISAS^DIVERSAS ao final da listagem com uma mão apenas. É fato que existe alguma variação na realização desses sinais, porque o nosso informante realiza o sinal apenas com a mão dominante, mas sinalizantes de outras regiões usam as duas mãos. Esse, porém, não é um fato tão surpreendente dado o que se sabe sobre processos fonológicos de redução na forma dos sinais compostos, como revela a literatura sobre composição nas línguas de sinais. Cf. Liddell (1984) para a língua de sinais americana e Quadros e Karnopp (2004) para a Libras.

11 Ainda segundo T. Leite (c.p.), existem contextos em que o sinal COISAS^DIVERSAS tem

sentido propriamente lexical, traduzível como “várias coisas”, como no diálogo abaixo: A: – FACULDADE, VOCÊ ESTUDAR O^QUE?

de sinais em geral. Ainda que reconheçamos a urgência e a pertinência de um tal estudo,12 não nos ocuparemos da descrição dos processos

fonológicos que ocorrem nos compostos da Libras. Assim, diremos apenas que essas formas ainda esperam estudo específico para termos uma análise mais consistente.

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 33-37)