• Nenhum resultado encontrado

O unitarista – a proposta de Rothstein

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 193-197)

A proposta de Rothstein (2004) para a telicidade fundamenta- se na noção de eventos atômicos: um evento télico é atômico. A autora salienta que há um tanto de vagueza com relação à ideia de atomicidade para eventos e que há restrições a essa vagueza: às vezes, o contexto nos dá pistas sobre a atomicidade de um dado evento; às vezes, o critério para individuação de um evento é dado sintaticamente, no nível do VP; e, às vezes, essa informação é lexical. Um adjunto como ‘até o parque’ estabelece a individuação no nível do VP: ‘João correu até o parque’.

A adjunção do sintagma preposicional transforma um evento atélico (‘João correu’) em télico, justamente porque ele dá um critério de telicidade: com esse adjunto, é possível individualizar um átomo, porque há então um telos, que é a chegada de João ao parque. A autora oferece também um Princípio de Telicidade: um VP é télico se ele denotar um conjunto de eventos X que é atômico, ou que é a pluralização de um conjunto atômico (i.e., se os critérios para individualizar um evento atômico em X são plenamente recuperáveis) (ROTHSTEIN, 2004, p. 158).

Desse modo, deve-se concluir que a adjunção de ‘até o parque’ ocorreu no interior do domínio do VP. Uma vez que o evento é individualizado, não é mais possível manipulá-lo. Para o caso de

achievements e accomplishments, e mesmo de degree achievements, a

“medida da telicidade”, ou seja, o que conta como individualizador do evento, é dado pelo próprio predicado que o denota.

Seja como for, a abordagem de Rothstein para a telicidade, em princípio, não tem relação alguma com o paradoxo do perfectivo; de fato, provavelmente, qualquer teoria que mantenha a intuição básica de que telicidade e perfectividade são noções distintas não vê problemas na sentença (1), desde que não se assuma que um evento télico perfectivo acarrete o alcance do telos. O paradoxo do perfectivo ocorre quando se assume uma leitura forte do perfectivo, que soma à sua semântica mais do que informação exclusivamente temporal, como veremos na última seção.

Rothstein não é explícita sobre a relação entre as sentenças (1) e (2), mas é possível encontrar pistas em seu texto que apontam para a assunção de que (1) acarreta (2). Em uma passagem de Rothstein (2004), ela analisa as sentenças “(38f) ? Jane read a book for half an hour” (Jane leu um livro por meia hora) e “(38e) # Mary built a house for years” (Mary construiu uma casa por anos):

(38f) is acceptable, but only if a non-telic reading is forced on

the accomplishment. Jane read a book normally entails that the event ended with the reading of the whole book and that the book consequently became “read”, but (38f) – which focuses on the activity of reading – does not have this entailment. (...) Not all

accomplishments can be pushed to this non-telic reading, as the unacceptability of (38e) shows (...). Achievements cannot be coerced into this non-telic reading. (p. 24-25).

A autora propõe que há recursos linguísticos, como os adjuntos adverbiais, que transformam accomplishments em atividades, que são eventos não télicos. Para o caso da sentença (1), no modelo da autora, ela é télica, então acarreta (2). Se (1) não acarreta (2), então, ela não é mais télica, mas sim uma atividade.

Rothstein propõe os seguintes templates:

atividades: λe.(DO(P))(e)

accomplishments: λe.$e1$e2[e=s(e1∪e2)^(DO(P))(e1)^(BECOME(P)) (e2)^Cul(e1)=e2]

Um accomplishment pode ser entendido como a soma de dois eventos: uma atividade (a parte com o operador DO) e um evento BECOME; o alcance do telos dá-se devido ao operador Cul (de culminação), que indica que o segundo evento (e2) pode ser entendido como a culminação do primeiro (e1).

Com essas ferramentas, vejamos como se dá a interpretação de (1) que não acarreta (2) e que deve ser uma atividade. Nesse caso, o predicado inicialmente télico, composto por uma atividade (DO) e um resultado (BECOME), sofre uma operação de coerção que o transforma em atélico porque suprime o resultado (i.e., “apaga” a parte BECOME e Cul). Essa operação só pode ocorrer, segundo a autora, com accomplishments homogêneos como ‘ler o livro’, mas não com ‘construir a casa’; e isso explica a diferença de julgamento, em inglês, para as sentenças (38e) e (38f).

Um primeiro problema é que deveríamos esperar como interpretação default de (1) que o artigo foi terminado. Mas nesse caso, não há como explicar alguns dos casos levantados na seção 1, afinal esperamos que a sentença com um advérbio como ‘completamente’ seja redundante; além disso, temos, como veremos, um problema com ‘terminar’, exemplicado pela sentença (19), abaixo:

(19) João leu o livro e não terminou.

A presença de ‘e não terminou’ é um critério de individuação do evento de ler o livro, dado que ‘terminar’ combina-se apenas com eventos télicos. Assim, ‘ler o livro’ é télico, e deveria acarretar o alcance do telos, i.e., o livro deveria estar inteiramente lido. Contudo, a sentença (19) é bastante clara em afirmar que o livro não foi completamente lido. Logo, mesmo tomando ‘ler o livro’ como télico – o que é atestado por sua combinação com ‘e não terminou’ –, o alcance do telos não pode ser entendido como acarretamento da combinação desse evento com o perfectivo; se esse fosse o caso, (19) seria claramente uma contradição, e não é. Se, por outro lado, ‘ler o livro’ é nesse contexto atélico porque sofreu uma coerção, então a sentença em (19) deveria ser agramatical, pois ‘terminar’ exclusivamente seleciona télicos.

De acordo com Rothstein, o contraste de aceitabilidade, pelo menos para o inglês, entre as sentenças (38e) e (38f) (repetidas como (20) e (21)), abaixo,

(20a) # Jane read a book or half an hour. (20b) Jane leu o livro por meia hora.

(21a) Mary built a house for years. (21b) Maria construiu uma casa por anos.

É explicado, como dissemos, pela composição interna dos eventos: ‘ler um livro’ é constituído internamente de eventos semelhantes, por isso ele é homogêneo, e isso explicaria a possibilidade de interpretarmos tal evento como uma atividade; no entanto, ‘construiu uma casa’ é constituído de eventos bastante diferentes entre si (levantar parede, concretar, pintar), bloqueando a possibilidade de uma interpretação como atividade. Essa explicação é, no entanto, problemática teoricamente e inadequada empiricamente para o PB. Se a abordagem de Rothstein estivesse correta, deveríamos esperar que tanto (20b) quanto (21b) fossem ambas ruins – na verdade, (20b) poderia ser “salva” mediante

coerção, mas (21b) seria sempre ruim; mas esse não parece ser o caso para o Português Brasileiro.

Do ponto de vista teórico, a diferença entre esses tipos de predicados télicos está no mundo; parece claro que ‘ler um/o livro’ é homogêneo porque composto de eventos de ler um/o livro, mas o que dizer de ‘escrever um/o artigo’? Pode-se argumentar que ‘limpar uma/a casa’ é um evento heterogêneo, pois os eventos que levam a casa a ficar limpa são distintos: tirar pó, lavar o chão, limpar janela... Mas, então, deveríamos esperar que a coerção não pudesse ocorrer com esse predicado, o que não se verifica:

(22) João limpou a casa mas não terminou.

Além disso, voltando ao caso de ‘construir uma/a casa’, tomemos a sentença abaixo:

(23) João construiu a casa mais do que o Pedro (construiu ela).

Não apenas (23) é compatível com a casa não estar pronta, como essa parece ser a leitura preferencial. Como o critério para rejeitar (21a) são fatos do mundo, não podemos esperar que eles sejam de um modo em uma língua e diferente em outra. Assim, parece que temos que buscar outra explicação.2

Outro ponto em que a posição da autora sobre a relação entre (1) e (2) pode ser observada é sua teoria sobre os adjuntos ‘em’ e ‘por X tempo’, que veremos abaixo.

No documento Percursos em teoria da gramática (páginas 193-197)