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Para Mercklé (2004, p. 3), o termo "rede" goza atualmente de uma “popularidade crescente”, é abundantemente usado em linguagem corrente, acadêmica ou política para designar uma grande variedade de objetos, ações e fenômenos. No entanto, o termo estaria longe de ser um neologismo: a palavra, antiga na história, surgiu no início do século XII e, desde então, seus usos são extremamente instrutivos, pois permitem distinguir claramente os diferentes registros metafóricos que o conceito já recebeu e continua recebendo.

A palavra rede (résau) só aparece na língua francesa no século XII, vindo do latim retolus, diminutivos de retis, e do francês antigo résel: a rede designa então redes de caça ou pesca e tecidos, uma malha têxtil que envolve o corpo. Como aponta Musso, (2010, p. 18) “fios entrelaçados para os tecidos, os cordéis ou cestas, as malhas ou tecidos estão em torno do corpo”. No século XVI, o termo résuil no francês antigo veio designar também os véus e rendas com que as mulheres cobriam a cabeça e, ainda também o tecido que elas colocavam sobre suas camisas, o sutiã.

Mercklé (2004) faz referência as ocorrências mais constantes e precisas do termo rede, ao se referir do livro “Le Thresor de la langue française”, de Nicot (1606), onde é usado termo résau, que significa “tecelões de malha de fios, incluindo redes, sacos, bolsas”. O livro considerava o termo - originário do latim – como: “entrelaçamento de linhas”, portanto, referindo-se a um tecido, mencionado nos séculos anteriores. O uso do dicionário da academia francesa de 1694 define o vocábulo como uma obra “de linha ou de seda, feitos por pequenas malhas em forma de redes”, termologia adotada inclusive para a língua portuguesa.

Neste sentido, Musso (2001), ao fazer uma análise metafórica das redes11 e seu entrelaçamento nos diversos espaços e territórios, menciona que nas técnicas manuais de tecelagem, a fiandeira produz o tecido (rede) num ritmo contínuo de vai-e- vem, um movimento circular e cíclico, um símbolo de continuidade e ruptura. Assim,

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Musso (2001) define três visões metafóricas diferenciadas de rede de acordo com o contexto social da inserção de cada uma: A rede biometafisica (do tecido); a rede biopolítica (do organismo), acompanhada da visão lógica e moderna de Saint-Simon; e a rede bioecológica (do cérebro/computador).

para o autor, desde a origem a simbologia do tecido é abordada na ambivalência da continuidade do entrelaçamento e da ruptura e do corte do cinzel12.

Nesta linha de raciocínio, pode-se analisar a rede sob a concepção de pausa, ou seja, enquanto ruptura que se opõe ao fluxo, geralmente atribuída aos espaços; e também enquanto movimento, que pode representar os fluxos contínuos evidentes no último século, decorrentes da mundialização do capital, da revolução técnica, do transporte das pessoas e das mais variadas mobilidades e integrações.

No século XVII a palavra rede acabou por ser definida para designar a intersecção das fibras, face ao uso de redes têxteis. Consequentemente utilizou-se o termo, ainda no mesmo século, em prontuários para designar artérias, veias e o sistema nervoso. A visão anterior do tecido é transferida para o interior do organismo, a partir das veias que se comunicam no corpo fluindo de um lado a outro alimentando organismos vivos.

Em especial, pelos trabalhos do naturalista e médico italiano Marcelo Malpighi que trás para a ciência o vocábulo rede, até então reservado ao tecido, para descrever o “corpo reticular da pele”. Muito embora, essa noção, já tenha sido abordada anteriormente pela medicina de Hipócrates que tratava do fluxo invisível da circulação dos humores e do arranjo de fluxos e malhas que partem do cérebro. (MUSSO, 2004).

Em Traité de l'homme (1662), Descartes compara o corpo humano a uma

máquina feita de mangueiras, fibras, fios, artérias, redes pequenas, intestinos, tubos, de forma que o movimento de sangue no corpo produza uma circulação constante e intermitente. Para ele os fluxos e conexões do corpo humano, principalmente o cérebro eram como rendas, uma densa rede de fios entrelaçados.

Descartes, analisa uma zona precisa do cérebro, a glândula de pineal, afirmando ser este o lugar de passagem das mensagens que vinham do coração, o meio de comunicação da mente para os demais membros do corpo, uma verdadeira rede de distribuição.

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Formão (português europeu) ou cinzel (português brasileiro) é um instrumento manual que possui numa extremidade uma lâmina de metal resistente muito aguçada em bisel, usado para entalhar ou cortar (madeira, ferro, pedra etc.), geralmente com auxílio de um martelo. Esse termo vem do latim popular arcaico "císellus": "cortar".

As artérias e veias do corpo humano estariam estendidas como malhas de tecidos estendidos e conectados como tapeçarias. É nesse momento que se consolida a ideia do “fluxo”, correspondente ao fluxo sanguíneo que posteriormente se constitui como alguns dos principais aspectos das redes: fluir e circular.

Assim, as primeiras formas de representação da rede designam caminhos, convergências, linhas e nós, seja pelas técnicas de tecelagem, seja pelas conexões interiores ao corpo. Inicialmente, a rede é externa e envolve o corpo; depois as redes passam a constituir o próprio corpo, passam a fazer parte de sua composição, dão sentido ao seu funcionamento como a funcionalidade de uma máquina composta de engrenagens, fios, tubos e conexões de todos os tipos.

A partir de meados do século XVIII, a noção de rede é enriquecida com o significado de topografia, com a sua aplicação aos métodos de triangulação do espaço em rede. Em 1750 aproximadamente, o abade de La Caille, professor de matemática, chama “rede” uma reunião de fios que permite observar as estrelas com uma luneta astronômica (retículo óptico) (MERCKLÉ, 2004).

Posteriormente os geógrafos e oficiais militares Achille-Nicolas Isnard e Pierre Alexandre d’Allent em seu Ensaio de conhecimento militar (1802) empregam o termo rede no sentido de “redes de comunicação” com o objetivo de representar o território como um esboço de linhas imaginárias ordenadas em rede de modo que matematicamente contribuísse na construção de mapas (MUSSO, 2004).

Consequentemente, ainda em meados do século XIX, dando sequência a conhecimentos técnicos produzidos por engenheiros, militares na construção de infraestruturas e demarcações dos grandes territórios, existe a grande ruptura no conceito de rede, em que é observada sua “saída” do corpo e dos fios da tecelagem, que eram até então as duas grandes metáforas.

É também no século XIX que o conceito de rede tem sua maior expansão em termos, derivações, metáforas e utilização para análise e designar uma série de fenômenos. É nesse momento também que ela é utilizada por uma série de ramos da ciência como objeto de estudo, principal e complementar.

Ela, a rede, foi pensada como cristal e depois como grafo. E, sobretudo, ancorada na matemática e geometria que forneceram conhecimento técnico para uma

análise do conceito de rede sobre um aspecto operacional, representada pelas construções técnicas dos engenheiros sobre o território.

Assim, a rede é objetivada como uma lógica técnica, expansionista, demarcadora, conectora, promotora do acesso, fluxo e transporte por meio de infraestruturas itinerárias, estradas de ferro, redes de telegrafia, estradas, caminhos que atravessavam as regiões, cidades e países modificando a relação com o espaço e com o tempo.

A rede não é mais apenas observada sobre ou dentro do corpo humano, ela pode ser construída. Distinguida do corpo natural, ela se torna um artefato, uma técnica autônoma. A rede está fora do corpo. O corpo será até mesmo tomado pela rede técnica enquanto se desloca em suas malhas, no seu território. De natural, a rede vira artificial. De dada, ela se torna construída. O engenheiro a concebe e a constrói, enquanto o médico se contentava em observá-la. A rede pode ser construída, porque ela se torna objeto pensado em sua relação com o espaço. Ela se exterioriza como artefato técnico sobre o território para encerrar o grande corpo do Estado-Nação ou do planeta. Para sair de sua relação com o corpo físico, a rede devia primeiramente ser pensada como conceito para torna-se operacional como artefato (MUSSO, 2010, p. 20).

A rede, enquanto grande ruptura no seu conceito incorporou algumas características chaves, que a nosso ver, abarcam de forma objetiva o sentido real e funcional que se pressupõe ou espera-se de uma rede (ou de uma estruturação em rede), seja ela construída pelos artefatos técnicos, ou existentes de relações sociais, ou mesmo a construção das várias interligações de artérias e veias do corpo humano, que seriam: conectar, transportar, circular e fluir.

Seu conceito se tornou atualmente fundamental na compreensão de muitos fenômenos e na potencialização de outros. A rede assim, em sua instituição é uma estrutura composta por elementos de interação; em sua dinâmica, ela é uma estrutura de conexão instável, transitória e não linear; e em sua relação com um sistema complexo, ela é uma estrutura cuja dinâmica supõe-se explicar o funcionamento de um subsistema visível.

Nos dias de hoje, como mesmo destaca Musso (2010, p. 17) a noção de rede chega a ser

Onipresente, e mesmo onipotente, em todas as disciplinas: nas ciências sociais, ela define sistemas de relações (redes sociais, de poder...) ou modos de organização (empresa-rede, por exemplo); na física, ela se identifica como a análise dos cristais e dos sistemas desordenados (percolação); em matemática informática e inteligência artificial, ela define modelos de conexão (teoria dos grafos, cálculos sobre rede, conexionismo...); nas tecnologias, a rede é a estrutura elementar das telecomunicações, dos transportes ou da energia; em economia, ela permite pensar novas relações entre atores na escala internacional (redes financeiras, comerciais...); a biologia é apreciadora dessa noção de rede que, tradicionalmente, se identifica com a análise do corpo humano (redes sanguíneas, nervosas, imunológicas...).

E muito embora o autor não tenha se dedicado nesta citação a mencionar a geografia, o conceito de rede se mostrou constantemente presente nos estudos geográficos, denotando os vários recortes espaciais, territorialidades tecnológicas e sociais. E é justamente quando as redes passam a se tornar objeto pensado em sua relação com o espaço, por meio da influência técnica (e não apenas ela) no século XIX que a Geografia passa a se preocupar com sua funcionalidade e transformações.