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A presença do homem sobre a terra sempre proporcionou à natureza um caráter de (re)descoberta constante. O meio natural e a criação de uma natureza social promovida pelos homens criaram uma ordem racional das coisas, dos objetos, das ações e do mundo. Diante da proporcionalidade cada vez maior de lugar ao artefato técnico pela natureza, a racionalidade criada e imposta se confunde com o natural e cria uma natureza instrumentalizada, domesticada e, por diversas vezes, surreal (ORTEGA Y GASSET, 1963; SIMONDON 1989; GEORGE, 1989).

No início do desenvolvimento da civilização humana, a natureza era selvagem e sofria pouca ou nenhuma intervenção do homem. Entretanto, no decorrer dos anos e da evolução das sociedades, os elementos naturais foram sendo substituídos por objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, recentemente, cibernéticos, fazendo com que a natureza tenda a funcionar como uma máquina artificial (GEORGE, 1989).

Assim, o homem impõe sua mudança à natureza por meio da técnica, criando uma nova natureza, posta sobre a anterior, uma “sobrenatureza” com modificações. A operação técnica é o lugar da combinação de elementos técnicos inventados e elementos naturais. A respeito disso, Simondon (1989, p. 256) diz que não há de um lado o natural e de outro o artificial, logo, “o artificial é o natural suscitado”.

Na Grécia Antiga, a ideia de “sobrenatureza” ou “nova natureza” oriunda das relações do homem com a natureza mediada pela técnica rogava nos discursos filosóficos de Platão, por exemplo. Porém foi o romano Cícero, no século I A.C. em De natura Doerum quem melhor definiu a segunda natureza:

À nossa disposição estão montanhas e planícies. Nossos rios e lagos. Colhemos o milho e plantamos árvores. Fertilizamos o solo pela irrigação. Represamos os rios para orientá-los a nosso bel prazer.

Pode-se dizer que com nossas mãos tentamos criar uma segunda natureza no mundo natural (SMITH, 1984, p. 16).

Para Godoy (2004) passagens como esta, mostram, resumidamente, que os problemas teóricos que cercam o debate sobre o espaço geográfico remontam a própria institucionalização da geografia como saber científico. Mesmo que de forma não tão explícita.

Ou seja, as transformações e produções humanas sempre foram motivos de reflexão. Afinal, a natureza é um dado permanente, que se modifica a medida que avançamos no seu conhecimento. “A transformação da natureza em meios de produção de vida é feita pelos homens numa relação de cooperação e com apoio na técnica” (MOREIRA, 2010, p. 103).

Assim, a natureza “tecnicizada” acaba por ser abstrata, já que as técnicas insistem em imitá-la e culminam por consegui-lo (SIMONDON, 1989; SANTOS 1996). Ou, como aponta Moreira (2010, p. 103) “a transformação da natureza em meios de produção de vida é feita pelos homens numa relação de cooperação e com apoio na técnica”.

Essa nova natureza e realidade são resultados da busca constante de satisfação das necessidades e de melhoria em relação às adversidades impostas pela natureza. Assim, a técnica tem, no contexto da evolução humana, uma relação de utopia ou de panaceia na esperança de emancipação e de superação de todos os problemas e entraves das mais diversas ordens.

A história do homem sobre a Terra é a história de uma rotura progressiva entre o homem e o entorno. Esse processo se acelera quando, praticamente ao mesmo tempo, o homem se descobre como indivíduo e inicia a mecanização do Planeta, armando-se de novos instrumentos para tentar dominá-lo. A natureza artificializada marca uma grande mudança na história humana da natureza. Hoje, com a tecnociência, alcançamos o estágio supremo dessa evolução (SANTOS, 2008, p. 5).

A técnica é então criada por ações sociais personificadas por meio de atos humanos que modificam e/ou reformam a circunstância ou a natureza, conseguindo que nela passe a haver o que anteriormente não havia, incluindo o surgimento de elementos antes da necessidade da existência deles. Todos estes atos são técnicos, são

específicos do homem, já que os animais têm que se ajustar ao que encontram na natureza. Eles seriam assim, de acordo com Ortega Y Gasset (1963) “atécnicos”.

Estes atos técnicos são, em resumo, aqueles em que dedicamos o esforço, primeiramente para inventar, inovar, modificar, produzir, criar e, depois, para executar um plano de atividade que nos permita, segundo (ORTEGA Y GASSET, 1963 p. 30):

1) Assegurar a satisfação das necessidades evidentemente elementares; 2) Conseguir satisfação com o mínimo de esforço;

3) Criar-nos novas possibilidades complementares, produzindo objetos que não existem na natureza do homem.

Ainda segundo Ortega y Gasset (1963, p. 14), “O conjunto destes atos é a técnica, que podemos, desde logo, definir como a reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação de suas necessidades”. Para Santos (2006, p. 16), “As técnicas são um conjunto de meios instrumentais e sociais, com os quais o homem realiza sua vida, produz e, ao mesmo tempo, cria espaço”.

Já para Simondon (1989), a técnica é uma designação de um conjunto de elementos dos gestos ligados à fabricação e à utilização de sistemas, melhorando e ampliando as performances dos corpos nas suas relações com o meio ambiente. Essas considerações reafirmam que a principal forma de relação entre o homem e a natureza, entre o homem e o meio é dada pela técnica.

Mumford (1998), por sua vez, entende por técnica o controle ou a transformação da natureza pelo homem, o qual faz uso de conhecimentos pré- científicos. É importante destacar que técnica é diferente de tecnologia, uma vez que esta seria um avanço daquela.

Sendo assim: a) não existe homem sem técnica – esta está diretamente ligada ao contexto social humano, independentemente do contexto histórico ou geográfico, sendo considerada como um dentre os vários aspectos da existência humana; b) Essa técnica varia em grau máximo ou mínimo, de acordo com o contexto histórico, o nível de conhecimento e/ou de necessidade; c) Nem toda técnica é absoluta - na evolução humana e da própria técnica, em dados momentos, algo extremamente útil e necessário será negligenciado pela humanidade (ORTEGA Y GASSET, 1963; SIMONDON, 1989; SANTOS 1996).

Portanto, a ideia de técnica como algo onde o "humano" (pessoas) e o "não humano" (instrumentos, técnica etc.) são inseparáveis é fundamental. Sem isso seria impossível pretender superar dicotomias tão tenazes na geografia e nas ciências sociais quanto as que opõem o natural e o cultural, o objetivo e o subjetivo, o global e o local etc. (ORTEGA Y GASSET, 1963; SANTOS, 1996).

A própria evolução social do homem se confunde com as técnicas, tecnologias desenvolvidas e empregadas em cada época. Isto nos diz que a história do homem coincide com a história da técnica e que sem as ferramentas e o conhecimento produzido por elas nossa própria existência seria diferente. Nesse sentido, podemos reiterar que não existe homem sem técnica e vice versa. A técnica seria assim a própria essência do homem.

À medida que a história vai fazendo-se, a configuração territorial é dada pelas obras dos homens: estradas, plantações, casas, depósitos, portos, fábricas, cidades etc. verdadeiras próteses. Cria-se uma configuração territorial que é cada vez mais o resultado de uma produção histórica e tende a uma negação da natureza natural, substituindo-a por uma natureza inteiramente humanizada (SANTOS, 2006, p. 39).

É importante destacar que a técnica não pode ser concebida apenas como o aspecto artesanal dos artefatos criados pelo homem a fim de alcançar certos objetivos. A técnica é, acima de tudo, um conjunto de estratégias operacionais mobilizadas para realizar objetivos individuais e coletivos. Esse conjunto de estratégias inclui tanto o pensamento e o imaginário, como as ações sociais voltadas para as diversas e complexas realizações humanas.

Nesse sentido, Simondon (1989) diz que a técnica é um modo de ser e um modo de ação do homem no mundo. Mais do que isso, a técnica compreende o de onde viemos e para onde vamos; e o principal: como vamos. Sendo assim, a técnica deve ser considerada, assim como a magia, a religião, a ciência, a ética e a estética, um modo cultural de/do ser no mundo em dadas gerações.

Para Simondon (1989, p. 185), “Todo objeto técnico, móvel ou fixo, pode ter sua epifania estética, na medida em que ela prolonga o mundo e se insere nele”. A percepção física do objeto enquanto ente do mundo faz-se necessário não apenas para

seu uso enquanto ferramenta, ou não, mas também para a compreensão de sua função cartesiana no mundo.

Em suma, a técnica assim poderia ser definida como toda uma série de ações que compreende uma pessoa, uma matéria e um instrumento de trabalho ou meio de ação sobre a matéria, e cuja interação permite a fabricação de um objeto ou de um produto. Entretanto, para que esta visão faça sentido, é importante conceituarmos o que são os “objetos” e as “coisas”, pois se relacionam fundamentalmente com o contexto em questão.

Segundo Santos (2006, p. 40), “os objetos seriam o produto de uma elaboração social. As coisas seriam um dom da natureza e os objetos um resultado do trabalho”. Focillon (1981, p. 4) destaca que “as coisas - formas naturais - são obras da natureza, enquanto os objetos - formas artificiais - são obras dos homens”. Moles (1971, p. 222) diz que o objeto seria “um elemento do mundo exterior, fabricado pelo homem e que este deve assumir ou manipular”.

De acordo com Seris (1994, p. 22): "será objeto técnico todo objeto susceptível de funcionar, como meio ou como resultado, entre os requisitos de uma atividade técnica". Sua adoção pelas sociedades seria função de uma avaliação dos valores técnicos em relação aos êxitos ou fracassos prováveis.

Bunge (1985) ao caracterizar o objeto (artefato) o define como toda coisa, estado ou processo controlado ou feito deliberadamente com ajuda de algum conhecimento aprendido e utilizável por outros. Para ele, “o resto” (coisas) seriam as coisas sem utilidade, que abrangeriam até os produtos atuais não recicláveis.

Para Ortega Y Gasset (1963) e Santos (1996), a classificação mais intuitiva entre objetos e coisas seria aquela segundo a qual no início da existência humana, no momento em que a natureza era ainda inexplorada, tudo seriam coisas, ao passo que hoje tudo tende a ter uma finalidade, intencionalidade e utilidade, transformando as coisas em objetos. Assim, a natureza atualmente se transforma em um verdadeiro sistema de objetos, e não mais em coisas.

Assim, os objetos técnicos podem ser analisados conforme o seu respectivo conteúdo, ou, em outras palavras, conforme sua condição técnica; o mesmo pode ser dito das ações que se distinguem segundo os diversos graus de intencionalidade e

racionalidade. Estes aspectos são a principal lógica por trás da existência desses objetos.

Portanto, os objetos técnicos se instalam na superfície da terra por meio da construção humana e fazem-no para responder a necessidades materiais fundamentais dos homens: alimentar-se, produzir, residir, deslocar-se, confortar-se etc.

O objeto técnico, pensado e construído pelo homem, não se limita apenas a criar uma mediação entre o homem e a natureza; ele é um misto estável do humano e do natural, contém o humano e o natural; ele confere a seu conteúdo uma estrutura semelhante à de objetos naturais, e permite a inserção no mundo das causas e efeitos naturais dessa realidade humana (SIMONDON, 1989, p. 245).

A evolução técnica de um objeto não diz respeito apenas ao funcionamento do próprio objeto, mas aos diversos modos como ele se insere e se naturaliza na cultura. Por consequência, a evolução técnica não diz respeito apenas ao aperfeiçoamento dos objetos, mas ao modo como humanamente nos relacionamos e nos modificamos a partir dele.

A evolução do objeto técnico se confunde com o meio, ao passo que a evolução social do homem se confunde com as tecnologias desenvolvidas e empregadas em cada época. Esta é mais uma dentre as características dos períodos humanos e técnicos. De acordo com Ortega y Gasset (1963, p. 75), os períodos técnicos poderiam ser divididos em três etapas:

1º - A técnica do acaso: é a técnica primitiva do homem primitivo, seja ele no contexto da evolução humana, seja como grupos sociais isolados que vivem seus cotidianos a partir de técnicas desenvolvidas há alguns anos, como tribos indígenas, por exemplo. Este desconhece por completo o caráter essencial da técnica, que consiste em ser uma capacidade de mudanças e progresso;

2º - A técnica do artesão: A produção de alguns elementos como arcos, flechas, vestimentas etc. se dá por meio dos artesões, que sabem fazer determinados objetos. Em algumas circunstâncias não possuem noção da importância social de seus atos técnicos;

3º - A técnica do técnico: Quando o homem descobre os caminhos que devem ser traçados para que seus atos técnicos resultem em uma técnica que proporcione o resultado esperado.

Ao longo da história, no decorrer dessas etapas, o homem adquiriu consciência suficiente sobre suas eventuais capacidades e habilidades para realização de determinados atos técnicos que gerassem resultados específicos e esperados. Além disso, percebeu que a técnica não é um acaso da natureza ou da circunstância, como poderia ser considerado num primeiro estágio. A técnica não seria, portanto, fixa, mas uma quantidade ilimitada de atividades e possibilidades.

As infinidades de perspectivas permitidas pela técnica possibilitaram um enorme crescimento de atos e resultados técnicos que integraram toda a vida social.

Enquanto na Idade Média, na época do artesão, a técnica e a naturalidade do homem pareciam compensar-se e a equação de condições em que a existência se apoiava lhe permitia beneficiar-se do dom humano para adaptar o mundo ao homem, mas sem que isso levasse a desnaturalizar-lhe, hoje os supostos técnicos da vida superam gravemente os naturais, de sorte tal que materialmente o homem não pode viver sem a técnica a que chegou (ORTEGA Y GASSET, 1963 p. 87).

Na Idade Média, o inventar não podia constituir um ofício porque o homem ignorava seu próprio poder de invenção. Hoje, pelo contrário, o técnico se dedica como à atividade mais normal e preestabelecida à construção, invenção, inovação, sendo este último, inclusive, um dos aspectos mais marcantes de nossa atualidade.

Entretanto, Mitcham (1989), quando fala da periodização proposta por Ortega y Gasset (1963), destaca que na primeira fase (a técnica do acaso) não há um método para descobrir ou transmitir as técnicas utilizadas; na seguinte (a técnica do artesão), já há algumas técnicas conscientes transmitidas entre gerações por uma classe especial: a dos artesãos. Todavia, há apenas "destreza e não ciência".

De acordo com Simondon (1989, p. 46), “O artesanato corresponde ao estado primitivo de evolução dos objetos técnicos. A indústria corresponde ao estado concreto”. Sendo assim, seria apenas na terceira fase (a técnica do técnico ou do engenheiro) que se instala um estudo consciente: a tecnologia como desenvolvimento de um modo de pensar o homem vinculado à ciência moderna.

Heidegger (1992) resume esse debate propondo que existem apenas dois grandes períodos na evolução da técnica: a técnica dos antigos e a técnica dos modernos. Ainda segundo ele, no começo da história social do planeta, ou no período da técnica dos antigos, havia tantos sistemas técnicos quantos eram os lugares e os grupos humanos. Estes, servidos apenas pelas técnicas do corpo, carentes de mobilidade, eram dependentes de áreas geográficas restritas, onde os recursos de sua inteligência e os recursos naturais combinados permitiam a emergência de modos de fazer dependentes do entorno imediato. Cada ponto habitado da superfície terrestre constituía, então, um conjunto coerente, formado sobre uma dada fração do planeta por uma população local, pelas técnicas locais, por um sistema político local e um regime econômico também local.

Porém cada período vê nascer uma nova geração técnica que o caracteriza. Esse novo subsistema, por se mostrar mais eficaz que os demais, emerge como um subsistema hegemônico. No passado, os respectivos sistemas hegemônicos não dispunham de um alcance global, podendo estar ausentes em certos países ou em certas regiões. Hoje estes sistemas técnicos tornam proporções globais, não mais sistemas técnicos locais, e sim globais, se tornam uma “uma

unicidade técnica” (SANTOS, 2006, p. 125).

Hoje, as técnicas estão potencializadas no coração da atividade contemporânea de controle, de reconstrução da matéria e da vida. Acrescentamos que a fonte das mutações técnicas é ela a própria técnica, afinal, a forma como se combinam as técnicas de diferentes idades têm consequências sobre as formas de vida das pessoas de dado momento histórico e na própria composição do espaço geográfico.