• Nenhum resultado encontrado

A experiência do filme popular indiano na Índia

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 123-136)

4 CINEMA HÍNDI, SOCIEDADE E IMAGINÁRIO

4.1 O CINEMA HÍNDI E SEU PÚBLICO NA ÍNDIA

4.1.2 A experiência do filme popular indiano na Índia

Uma frase de Yash Chopra, reconhecido cineasta de Mumbai, mostra a importância peculiar da audiência indiana na construção do significado do filme híndi. Eis a frase, que abre a introdução do livro de Lakshmi Srinivas sobre o lugar da audiência no cinema indiano: “Não é isso – nós fizemos algo. Nós fizemos apenas um filme, mas a audiência fez a história.” (CHOPRA apud SRINIVAS, 2016, tradução nossa).

Essa importância da audiência indiana para a construção do significado do filme deriva de duas características da experiência do filme popular indiano na Índia: a coletividade e a participação. A coletividade implica que o filme projetado é desfrutado em grupo, sendo este de extrema importância para que a ida ao cinema

e a satisfação na fruição ocorram. Na Índia, o cinema é o principal local de reunião de amigos e parentes. Lá, as salas de cinema são locais visitados não apenas por causa do filme em si, mas pela oportunidade de encontro que proporcionam. A participação implica que o público indiano participa intensamente com sons e gestos do filme projetado. Nas linhas que se seguem, destrincha-se a maneira como coletividade e participação definem uma experiência fílmica notadamente peculiar na Índia.

A experiência do filme na Índia é marcadamente distinta da experiência do filme no ocidente, em geral. Srinivas (2016) emprega o termo “audiência ativa” para se referir à recepção explícita e marcadamente participativa que caracteriza a experiência de se assistir a filmes nas salas de cinema indianas, o que contrasta com a noção de “espectador passivo”, que caracteriza em linhas gerais o cinema ocidental. Srinivas (2016) utiliza o termo “ativo” para descrever o público geralmente loquaz, agitado e inquieto na sala de projeção do cinema popular indiano, caracterizado pela espontaneidade, improvisação e performance, muito diferente da apreciação silenciosa do filme que caracteriza o público ocidental e ocidentalizado do cinema anglo-americano e europeu ocidental.

É importante ainda considerar a ressalva que Srinivas (2016) faz a respeito do termo “audiência ativa” ou “estética ativa” que emprega. O autor ressalta que não está afirmando que todos os cinéfilos indianos se envolvem necessariamente com os filmes de forma aberta, interativa e participativa sempre com o mesmo nível de intensidade e nem que essa forma de fruição ativa seja encontrada apenas entre o público indiano. Como informa o autor, historicamente, o próprio público cinematográfico ocidental era participativo e loquaz, enquanto atualmente as audiências participativas no cinema ocidental estão associadas com filmes cult e de terror. Contudo, o termo “audiência ativa” ou “estética ativa” é parte de uma forma dominante de se envolver com o cinema que pode ser encontrada em graus variados mais predominantemente em salas de cinema na Índia e em salas fora do país que exibem filmes indianos com espectadores indianos.

Ressalta-se que o termo “audiência ativa” é acolhido por este trabalho com reservas. Enquanto Srinivas (2016) considera que a audiência ativa é formada por

um público não alienado que participa da construção do filme, a autora deste trabalho considera que a interação sensorial intensa com o filme não implica necessariamente em criticidade ou ausência de alienação. De acordo com Srinivas (2016, tradução nossa): “A estética da recepção [ativa] na Índia sugere que, ao invés de consumidores alienados “recebendo” um filme, públicos ativos participam do processo de elaboração de um filme e estão envolvidos em vários “nós” na construção da experiência cinematográfica.” A autora deste trabalho considera que a audiência do cinema indiano é sim alienada em geral, ainda que sua participação sensorial intensa com o filme contribua para a construção dele. Essa participação ativa é inclusive prevista e esperada pelos cineastas, que elaboram o filme pensando nessa participação, uma vez que se sabe que a coletividade tem grande impacto no sucesso de um filme por meio da chamada propaganda boca a boca.

Como meios alienantes, os filmes indianos populares de entretenimento reforçam a tradição das castas e o poder das estruturas sociais sobre a vontade do indivíduo e replicam continuamente cosmovisões mitológicas hindus, de forma a reforçar essa tradição (Considerações finais). A audiência interage sim com os filmes, mas em uma lógica de concordância com a mensagem que ele transmite, sem colocar em dúvida o que está sendo apresentado no nível das ideias. Muitas vezes, a interação do público com esse cinema é inclusive pautada em fortes crenças e tradições religiosas hindus, como mencionado anteriormente. As interações do público ativo na Índia como zombar de uma cena excessivamente melodramática, por exemplo, se referem mais a questões estéticas e técnicas e não alcançam em geral o nível das ideias que o filme transmite.

Portanto, destaca-se que, neste trabalho, o termo “ativo” não será utilizado como “crítico em relação ao que é exibido na tela”, mas como “participante do espetáculo de maneira sensorialmente intensa e vibrante”. A autora deste trabalho considera que a participação ativa do público indiano com o filme projetado não implica em uma criticidade em relação ao que está sendo exibido. Pelo contrário, o envolvimento do público com o filme, cujo propósito é entreter, com todo o seu corpo, fortifica seu poder alienante. A postura crítica de um espectador diante do que é projetado não se relaciona a ações sensoriais aparentes de seu corpo em envolvimento com o filme (embora uma reflexão crítica possa resultar em ações

sensoriais visíveis), mas sim a processos sociais complexos que extrapolam o escopo deste trabalho.

Feitas essas ponderações, atém-se à caracterização da experiência do filme no ambiente das salas de cinema indianas. Essas salas são caracterizadas por uma intensa efervescência popular, como relata Srinivas (2002), em que há ruídos, sussurros e deslocamentos incessantes, assim como interação de membros da audiência em voz alta e com gestos marcantes com a tela e outros membros. Os filmes e os espaços onde eles são exibidos são estruturados de forma a permitir a experiência social coletiva que os espectadores esperam. O conteúdo da obra varia conforme essa experiência esperada. De acordo com Srinivas (2002):

Que a experiência social de ir ao cinema e estar nele é tão, se não mais, importante que o filme em si, pode ser visto nos modos como os membros da audiência estruturam a experiência, assim como na maneira como a exibição do filme é organizada para antecipar aspectos sociais do evento. (SRINIVAS, 2002, p. 159, tradução nossa).

Enquanto no cinema ocidental, a experiência de se assistir a um filme é caracterizada em linhas gerais pela apreciação isolada do que é projetado, no cinema indiano, a dimensão social desse evento é muito mais proeminente. Em geral, o público indiano vai às salas de cinema em grupos (de quatro a dez pessoas ou mais) formados por amigos, colegas de trabalho e familiares de várias idades, desde crianças até idosos (SRINIVAS, 2002, p. 160). A experiência do cinema ocidental caracteriza-se em geral pelo anonimato, silêncio e absorção – nela, por causa da norma de visualização silenciosa na sala de cinema, a audiência atomizada é invisível como coletividade social (SRINIVAS, 2016). No cinema indiano, ao contrário, essa coletividade é bastante evidente, sendo que a participação do público traz certo relevo a alguns indivíduos da plateia, o que talvez explique em parte o interesse de algumas pessoas por ver repetidas vezes um mesmo filme.

Durante a exibição dos longos filmes masala, que duram em torno de duas horas e meia a três horas e meia, com intervalo de 15 a 20 minutos (SRINIVAS, 2002), os indianos se comportam de forma peculiar. Principalmente nas cidades

menores, é comum observar membros da audiência falando, dialogando, cantando e dançando com os atores que performam na tela. É provável que o fato de os indianos costumeiramente assistirem aos filmes com pessoas próximas, como familiares, contribua para tal tipo de comportamento. Também contribui para tal o fato de que parte das canções dos filmes são hits musicais já conhecidos do público – muitos espectadores vão assistir a alguns filmes por causa de canções que o integram, muitas vezes anunciadas antecipadamente como estratégia de marketing.

Nesse contexto, pode-se afirmar que há uma cultura específica em torno da recepção de filmes na Índia, em que, como afirma Srinivas (2016), a estética social e participativa molda a exibição de filmes nas salas de cinema, em graus variados. Srinivas (2016) exemplifica o comportamento da audiência imersa nessa cultura:

Pessoas da audiência falam durante todo o filme, que é atravessado por assobios, gritos e vivas dos “assessores frontais” [os espectadores indianos que se sentam mais à frente na sala de projeção são em geral mais participativos] que apontam para a tela. As salas de cinema são lugares de performance e espetáculo dentro e fora da tela. Homens jovens gritam diálogos improvisados, assobiam e fazem comentários de cunho sexual, pessoas cantam e sussurram junto com as músicas e podem até dançar. (SRINIVAS, 2016, tradução nossa, grifo nosso).

Srinivas (2016) considera que a experiência do cinema popular indiano se constitui em um efervescente espetáculo, antes e durante o filme, dentro e fora da tela. “Performance e espetáculo dentro e fora da tela”, destaca-se, é uma expressão que denota que aquilo que acontece exteriormente ao filme é tão importante quanto o que ocorre em seu interior, para a construção do produto artístico. Nesse contexto, de atenção dispersa entre o dentro e o fora do filme, não impressiona que os filmes indianos, aparentemente repetitivos aos olhos do espectador ocidental e inseridos no universo mítico do indiano, atraia tanto o público da Índia: uma narrativa familiar e previsível condiz com uma atenção oscilante entre o dentro e o fora do filme. Além disso, uma trama familiar libera a atenção do público para o espetáculo que o próprio filme oferece, com danças extravagantes, com sequências de ações fortemente emotivas etc., e para o espetáculo proporcionado pelo evento social na sala de projeção.

Srinivas (2016) afirma inclusive que o humor e a atmosfera na sala de cinema são muitas vezes mais importantes para a experiência coletiva do que o filme em si.

De acordo ele, os prazeres do ambiente muitas vezes assumem o primeiro plano nessa experiência. Portanto, nas salas de cinema indianas, há uma experiência coletiva de entretenimento, na qual o lazer situa-se no contexto sociocultural. Assim, o indiano procura no cinema não uma imersão na história, como no caso do espectador do cinema ocidental em geral, mas talvez um adendo floreado de sua vida, que colore com alegria, riqueza e espetáculo sua existência muitas vezes marcada pela pobreza, pela monotonia e pela pouca ou nenhuma perspectiva de melhoria de vida. O universo suntuoso exibido em tela se entrelaça com sua vida real, passando a compor sua vivência quotidiana no mundo.

Isso difere de uma mera experiência ocular com o virtual, em que o espectador “sai” de seu mundo real, “esquecendo-se” dele, e “entra” no universo diegético da história, como é o caso do cinema clássico ocidental, em que há uma separação nítida entre mundo fílmico e o mundo externo. Diferentemente, no caso do público do cinema popular indiano, a experiência com o virtual não “anula” a realidade externa, mas se une a ela, formando uma nova realidade. Assim, por exemplo, o espectador indiano acompanha a dublagem dos atores de canções em playback as quais ele já conhece e que são sucesso na indústria fonográfica. Não estranha a ele a diferença de timbre de voz entre o ator e o cantor, pois como é como se atores e espectadores estivessem juntos cantando a música de um cantor famoso. Além disso, essa diferença é positiva na perspectiva do espectador indiano, pois somam-se a beleza do corpo do ator/atriz com a beleza da voz do cantor/cantora, sendo ambos/ambas apreciadas pelo público como estrelas, como afirma Majumdar (2010). Diferentemente, no caso do cinema clássico ocidental, essa diferença soaria estranha ao espectador, pois tiraria sua atenção do universo diegético para o mundo exterior, quebrando a lógica da imersão.

As salas de cinema indianas atraem o público nacional também por instigar nele o sentimento de pertencimento a um grupo. De acordo com Srinivas (2002, p. 164, tradução nossa): “A socialização com amigos e familiares na sala de cinema tem prioridade sobre o ato de assistir ao filme.” Ir ao cinema é possivelmente uma oportunidade para ver familiares e amigos e conversar de forma mais próxima que pelo celular, por exemplo. Assim, não é necessário que o filme inteiro agrade ao

espectador, mas apenas que ele tenha algum elemento, um condimento do masala, que o atraia, pois o evento social em si já é um grande atrativo – Srinivas (2002) chama essa peculiaridade da audiência indiana de “visualização seletiva”. No divertimento provocado pela participação ativa e pela interação com pessoas próximas, o evento social pode ser o motivo principal da ida ao cinema, em detrimento do filme em si.

Até mesmo os intervalos dos filmes são um momento interessante de partilha com pessoas próximas. Os filmes já são estruturados pensando-se nesses interstícios, os quais não ocorrem apenas por causa da longa duração dos filmes, mas para abrir espaço para uma interação social mais aflorada que contribua para fazer da ida ao cinema uma experiência agradável que se quer repetir. De acordo com Srinivas (2002, p. 164), até os filmes de Hollywood exibidos na Índia com duração de 90 minutos são divididos ao meio por um intervalo. O autor também informa que se o intervalo é atrasado por alguma razão, espectadores começam a ficar inquietos e a abandonar seus assentos. Além disso, o espaço da sala de cinema e dos corredores (nos intervalos, antes e depois do filme) são também espaços para a disseminação de assuntos envolvendo Bollywood, já que grande parte da mídia é dominada por fofocas envolvendo atores, atrizes e profissionais de cinema.

Mais profundamente, pode-se dizer que a coletividade que caracteriza a experiência do filme popular indiano é um desdobramento do senso de coletividade do povo índico, cujas bases são hindus. De acordo com Thomas (1985), as castas hindus, as questões de parentesco e as “ideologias” religiosas hindus, particularmente a crença no destino e no kharma, definem um sujeito social menos individualizado. Além disso, essa experiência coletiva guarda relação com práticas culturais indianas tradicionais de canto, dança e teatro que eram coletivas e por vezes envolvia a participação ativa do público, como no caso da dança kuchipudi (Capítulo 5: Cinema híndi e cultura geral indiana). Por conseguinte, o aspecto coletivo da fruição de filmes marca o cinema popular indiano fortemente e de forma peculiar. Em seu trabalho de campo na Índia, Srinivas (2002, p. 161) entrevistou diversos indianos que não viam o menor sentido em assistir a filmes sozinhos, estranhando a indagação sobre essa possibilidade. Alguns deles chegaram a

questionar se tal situação seria possível. Outros ainda afirmaram que vão assistir aos filmes por entretenimento e, por isso, vão em grupo. Srinivas (2002) concluiu: “Geralmente, a busca de uma experiência fílmica solitária é considerada um ato antissocial e não-natural.” (SRINIVAS, 2002, p. 161, tradução nossa).

A estrutura interior da sala indiana de cinema contribui para essa experiência cinematográfica coletiva peculiar. As salas, como informa Srinivas (2002), são estratificadas em assentos mais altos e distantes das telas, mais caros e ocupados mais por pessoas das classes mais abastadas, e em assentos mais baixos e mais próximos da tela, mais baratos e ocupados mais por pessoas das classes mais pobres. Além disso, nos lugares muito próximos à tela, a presença de homens é predominante (SRINIVAS, 2002). Nessa região, a interação com a tela é mais frequente e envolve mais comumente falas de cunho sexual (SRINIVAS, 2002), o que não condiz com o comportamento esperado de uma mulher pela sociedade indiana. As pessoas situadas ao fundo esperam que quem esteja mais próximo da tela seja barulhento e interaja com a projeção abertamente (SRINIVAS, 2002) e esse comportamento também integra o espetáculo para elas. Assim, como observa Srinivas (2012), o microuniverso da sala de cinema reflete a sociedade indiana como um todo, sendo que cada extrato da sala de cinema é ocupado por grupos de determinada classe social e com características especificas em termos de gênero, de estilo de visualização e de envolvimento estético. Na sala de projeção, a experiência é bastante diferente para grupos distintos de expectadores, em termos de gênero, idade e classe socioeconômica.

A experiência coletiva no ambiente da sala de cinema e em seus arredores extravasa os momentos relacionados ao lançamento e à projeção do filme e passa a impregnar a vivência quotidiana dos expectadores. Assim, por exemplo, há filmes híndi que passam a integrar o quotidiano das pessoas que, conhecendo suas trilhas e diálogos de cor, passam a empregar falas de personagens em sua conversação diária (BALLERINI, 2009). O fato de os indianos reverem seus filmes favoritos repetidas vezes (BALLERINI, 2009; THOMAS, 1985, p. 130) favorece a incorporação deles ao quotidiano das pessoas. De acordo com Thomas (1985, p. 130), o “valor de repetição” é deliberadamente construído pelos cineastas,

sabedores de que os indianos apreciam tanto o “ver” quanto o “escutar” os filmes. Enquanto na cinematografia clássica ocidental, as imagens têm supremacia sobre o som, sendo que a palavra falada e escrita deve ser substituída por imagens tanto quanto possível, no cinema popular indiano, o diálogo e o som como um todo têm importância fundamental. Thomas (1985) informa que gravações de diálogos de filmes por vezes vendem mais que suas coleções de músicas. Não surpreende, pois, que muitos dos diálogos entre casais de apaixonados em filmes indianos sejam poéticos e idealistas. Pode-se dizer, então, que muitos filmes populares indianos são vistos e revistos dezenas de vezes, devido à sua estreita relação com a música (também no ocidente, as pessoas escutam as músicas de que gostam repetidas vezes) e ao seu aspecto espetacular (também no ocidente, as pessoas assistem a um mesmo espetáculo várias vezes).

Pelo que foi dito, nota-se que a prática de “visualização repetida” (termo empregado por Srinivas (2002)), que em princípio parece entediante ao espectador ocidental, pode ser perfeitamente compreendida, quando considerado o contexto sociocultural de exibição do filme. O indiano constrói o filme, enquanto o vê. Cada vez que ele vai ao cinema, a experiência do filme é em, pelo relacionamento que ele estabelece com os outros espectadores e com a tela, inclusive com seu hábito de dançar e cantar acompanhando os atores. Novas companhias, novas conversas, novas danças são possíveis, quando se assiste novamente a determinado filme. De acordo com Srinivas (2016), na sala de cinema, a audiência empreende relações sociais e negociações que produzem e refazem o filme e sua experiência coletiva. Nesse contexto, emoções são instigadas durante a projeção não apenas pelos elementos do filme em si, mas também pelas antecipações que os repetidores fazem dos acontecimentos da trama, de forma que o tom e o impacto emocional de cada cena podem ser reconstruídos pelas suas intervenções em alta voz. Como exemplifica Srinivas (2002), cenas exageradamente melodramáticas podem ser alvo de piadas dos repetidores e, assim, adquirirem um tom cômico, de modo que seu sentido inicialmente proposto pelo cineasta é alterado.

A repetição da visualização de um filme até mesmo pode acrescentar valor a um espectador mais participativo em seu próprio ponto de vista, pois quando mais

ele assiste a um mesmo filme, mais ele tem condições de interagir com a tela e com os demais. De acordo com Srinivas (2002):

Os frequentadores habituais são um tipo de espectador que pode ser descrito como ‘ativo’. O espectador ativo constrói um relacionamento particular com o filme – assim, o filme não é aceito como um produto completo ou finalizado. As audiências utilizam o filme como um material cru para construírem sua própria experiência, no processo de reconstrução do filme. (SRINIVAS, 2002, tradução nossa).

Os espectadores “editam” os filmes não apenas nas salas de cinema, mas também em casa. De acordo com Srinivas (2002), em casa, geralmente uma pessoa assume o papel de fazer avançar o filme, sendo instruída pelos demais a esse respeito. Mesmo nas salas de cinema, é comum que a audiência peça para que certa cena de que gostaram, como é comum no caso de cenas de dança, sejam repetidas (SRINIVAS, 2002). Ora, a estrutura do cinema indiano, com uma narrativa simples e clara, que amarra frouxamente espetáculos emotivos, permite isso. No cinema clássico ocidental, centrado na narrativa mononuclear com início, meio e fim definidos, uma prática similar resultaria em grande dificuldade de apreensão da trama. Isso explicita a relativa oposição do cinema indiano, fortemente voltado para o espetáculo, ao cinema clássico ocidental, centrado na narrativa.

Como os indianos estão interessados no espetáculo emotivo, mais do que na narrativa em si (THOMAS, 1985, p. 130), ver um filme repetidas vezes não lhes parece um problema. Da mesma forma, não lhes parece um problema assistir a filmes com enredos relativamente similares a muitos outros filmes vistos anteriormente e familiares ao espectador. Pelo contrário, quanto mais fácil for a

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 123-136)