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As castas e sua representação no cinema hínd

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 140-144)

4 CINEMA HÍNDI, SOCIEDADE E IMAGINÁRIO

4.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CINEMA HÍND

4.2.1 As castas e sua representação no cinema hínd

A discriminação por castas foi proibida pela Constituição de 1950 (ARRIGUE JÚNIOR; MARTINEZ, 2014, p. 176; KLINE, 2010, p. 192). Contudo, a tradição das castas está enraizada na cultura da população indiana, extremamente religiosa, configurando-se como uma divisão social que estrutura a sociedade hindu índica. Na Índia atual, a tradição das castas não é algo que está na conversação diária das pessoas, sendo considerada uma espécie de tabu (O SISTEMA..., 2015ª). Além disso, é possível ver pessoas de todas as castas trabalhando juntamente, de forma que essa diferença não é muito sentida no quotidiano profissional nas cidades (O SISTEMA..., 2015ª). Nos centros urbanos e nas grandes cidades, a tradição das castas é mais amena que nas cidades interioranas, no que se refere ao ambiente de trabalho (O SISTEMA..., 2015ª). O que se percebe é a diferenciação entre as pessoas devido ao seu nível de instrução educacional e à sua situação econômica, similarmente ao que ocorre no Brasil (O SISTEMA..., 2015ª). Esses aspectos, contudo, não significam que as pessoas não se importam com as castas umas das outras. Geralmente, quando uma pessoa quer saber a casta de outra, ela lhe pergunta pelo seu sobrenome – por ele, é possível saber a que casta e a que grupo étnico ela pertence (O SISTEMA..., 2015ª).

A tradição das castas se faz sentir mais intensamente em dois campos específicos: a política e a família; no segundo caso, especificamente no que se refere ao casamento (O SISTEMA..., 2015b). A maioria dos indianos são bastante tradicionais e prefere se casar com pessoas da mesma casta, devido ao fato de cada casta ter seus próprios costumes, estabelecidos ao longo de gerações (PILLAI, 2010, p. 169). Como afirmam Raeann Hamon e Bron Ingoldsby (2003, p. 214,

tradução nossa): “Na Índia, ainda é costume dos indivíduos se casar dentro de sua religião, casta e subcasta.” Nos anúncios de jornais impressos de pais que procuram por esposas para seus filhos ou anunciam suas filhas como potenciais esposas, eles apresentam suas preferências em termos de casta, religião, profissão etc. (ÍNDIA..., 2015b). Os anúncios em busca de esposas apresentam as exigências em relação a elas, no que se refere à beleza e nível de instrução, por exemplo, além de mostrar atributos do noivo, tais como a universidade em que ele se formou e a casta da família (ÍNDIA..., 2015b). Nas cidades interioranas, a propaganda em prol de um casamento arranjado ocorre mais por meio do boca a boca (ÍNDIA..., 2015b). O casamento arranjado, que é a regra na Índia e que ocorre na grande maioria das uniões (JAISWAL, 2014), indica a grande força que ainda tem atualmente a tradição das castas. Como informa Tulika Jaiswal (2014), estima-se que, na Índia, cerca de 90% de todos os casamentos são arranjados pelos membros familiares dos noivos e os adultos jovens se sentem satisfeitos com esse sistema de uniões arranjadas (JAISWAL, 2014).

Não há correlação direta entre castas e riqueza econômica. Em seu princípio, as castas se referiam a grupos de profissões similares. Pertencer a determinada casta não implica necessariamente ser rico ou pobre. Assim, é possível que um brâmane, pertencente à casta mais alta, seja pobre. O oposto também pode ocorrer: uma pessoa de casta baixa pode adquirir elevada posição social e econômica – o 14° primeiro ministro indiano, Narendra Damodardas Modi (1950-), por exemplo, veio de uma subcasta baixa, a Modh-Ghanchi, pertencente à casta Modh-Bania, à qual pertencia também Mahatma Gandhi. Contudo, a casta a que um indivíduo pertence geralmente é determinante em todos os aspectos de sua vida: o local de moradia, a profissão e o casamento são definidos pela casta a que ele pertence.

A casta de um indivíduo indica o grupo de profissões a que seus ancestrais se dedicavam. Originalmente, o sistema de castas estava relacionado à divisão da sociedade indiana em grupos de profissões (KUIPER, 2011, p. 42). Segundo esse sistema, o pertencimento de cada indivíduo a determinada casta seria parte de uma realidade espiritual (KUIPER, 2011, p. 43). Cada casta constitui-se como um grupo social, em princípio, endógeno (membros de uma casta só podem casar-se entre si) (KUIPER, 2011, p. 42). O aspecto endógeno não é absoluto, pois, por exemplo,

algumas pais indianos ignoram as castas na escolha de cônjuges para seus filhos (ÍNDIA..., 2015b).

Originalmente, haviam quatro castas e a literatura hindu atribui a cada uma delas uma origem: (1) os brâmanes (sacerdotes-mestres), que teriam nascido da boca de Purusha (“homem cósmico”); (2) os xátrias (reis e líderes políticos e militares), que teriam nascido dos braços de Purusha; (3) os vaixás (comerciantes), que teriam nascido das coxas de Purusha; (4) os sudras (servos: camponeses, artesãos e operários), que teriam nascido dos pés de Purusha (KUIPER, 2011, p. 43; LONG, 2011, p. 236; RADHAKRISHNAN; MOORE, 1957, p. 27-28). Havia ainda um grupo sem casta, chamados dalits ou “intocáveis”, que teriam se originado da poeira sob os pés de Purusha (KUIPER, 2011, p. 15). Cada casta é subdivida em numerosa quantidade de subcastas (KUIPER, 2011, p. 15). Há castas que existem em regiões da Índia e inexistem em outras (KUIPER, 2011, p. 22-42). Os estrangeiros e os não-hindus seriam piores que os intocáveis, pois seriam poluidores o hinduísmo (JAMMANNA; SUDHAKAR, p. 17), mas há estrangeiros na Índia que afirmam que, em seu quotidiano no país, eles não sentem a existência dessa categorização (O SISTEMA..., 2015).

Existem diversas teorias que tentam explicar a origem do sistema de castas. Uma das mais aceitas e propagadas é a teoria histórica social que fornece uma explicação para a criação das varnas (castas) e dos intocáveis (PRUTHI, 2004, p. 2). Essa teoria associa a origem do sistema castista à chegada dos arianos, povo de pele clara vindo do sul da Europa e do norte da Ásia, na Índia, por volta do ano 1.500 a.C. (PRUTHI, 2004, p. 2). As comunidades já estabelecidas no território indiano eram descendentes de povos tais como os negritos (fisicamente semelhantes aos povos africanos), os mongoloides (parecidos com os chineses), os australóides (parecidos com os aborígenes australianos) e, a maior delas, descendentes dos dravidianos (vindos do mediterrâneo) (PRUTHI, 2004, p. 2). O principal contato dos arianos foi com os dravidianos e os australóides (PRUTHI, 2004, p. 2). Os arianos tomaram o controle sobre o norte da Índia e expulsaram os povos locais para o sul e para as florestas e montanhas do norte do país (PRUTHI, 2004, p. 2).

Os arianos organizaram a si mesmos em três grupos: (1) o grupo dos guerreiros, chamados rajayana e, posteriormente, kshatria; (2) o grupo dos sacerdotes, chamados brahmans; (3) o grupo dos agricultores e artesãos, chamados vaisia (PRUTHI, 2004, p. 2). Os dois primeiros grupos lutaram politicamente entre si pela liderança da sociedade ariana e os brahmans acabaram prevalecendo (PRUTHI, 2004, p. 2). À medida em que os arianos foram tomando o controle de regiões do norte indiano, os vaisia se tornaram senhores de terra e os povos locais subjugados se tornaram camponeses e artesãos (PRUTHI, 2004, p. 2). Para assegurar seu status, os arianos estabeleceram normas religiosas e sociais que preconizavam que apenas eles poderiam ser sacerdotes, guerreiros e homens de negócio – em Maharashtra, por exemplo, os mahars, de pele escura, eram considerados um povo sem casta (PRUTHI, 2004, p. 3). Entre os párias e as três varnas arianas, havia a varna sudras, trabalhadores simples da sociedade, que, por sua vez, se dividiam em duas comunidades: uma composta por povos subjugados por arianos e outra descendente da miscigenação entre arianos e povos locais (PRUTHI, 2004, p. 3).

Além de a Constituição de 1950 declarar que a prática de 1.500 anos do sistema castista constitui discriminação ilegal, ela também definiu que aproximadamente um quinto de todas as vagas de empregos públicos e de cursos em universidades públicas está reservado para pessoas das até então chamadas castas inferiores. (AGUIRRE JÚNIOR; MARTINEZ, 2014, p. 176) Essas medidas, contudo, não implicaram na eliminação da segregação de indivíduos devido às suas antigas castas, sendo necessário o combate sistemático ao problema, por meio de políticas governamentais específicas que envolvam programas de conscientização.

A organização social baseada em castas foi amplamente criticada pelo cinema, inclusive por Bollywood (PEREZ JÚNIOR, 2012). Como se percebeu na análise das superproduções sucesso de público analisadas, muitas vezes, o sistema de castas é criticado diretamente no cinema híndi. Contudo, a estrutura baseada no sistema de castas ou em sistemas similares quase nunca é rompida pelos indivíduos, como é o caso de Mughal-e-Azam33 (1960) e Devdas (2002). Em ambos

33

Em Mughal-e-Azam (1960), não há propriamente uma divisão da sociedade em castas, mas uma divisão entre nobres e criados no governo do imperador mogol muçulmano Jalaluddin Muhammad

os filmes, o mocinho e a mocinha apaixonados, por pertencerem a castas diferentes, não conseguem se unir em um casamento, apesar do grande esforço de ambos, e o resultado de sua paixão é a degradação e/ou a morte de um deles.

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 140-144)