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A censura no cinema hínd

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 155-160)

4 CINEMA HÍNDI, SOCIEDADE E IMAGINÁRIO

4.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CINEMA HÍND

4.2.8 A censura no cinema hínd

Em termos de censura, Bollywood é uma indústria bastante tradicional, comparada à Hollywood, como se observou nos filmes sucesso de público analisados. Até presentemente, cenas de beijo são raras em filmes de Bollywood e cenas de sexo só são permitidas pela censura oficial, em geral, na representação de narrativas consideradas sagradas pelos hindus, como as histórias mitológicas de deuses hindus, ou de acontecimentos considerados sagrados por eles, como as núpcias. Os lençóis se mexendo nas cenas que retratam núpcias se tornou um clichê do cinema híndi. O maior clichê do cinema popular indiano em relação a cenas de relacionamento íntimo são performances musicais do casal de protagonistas que substituem as cenas de beijo. Um dos meios empregados pelos cineastas para exibir cenas de sexo sem serem barrados pela censura é, além de retratar narrativas mitológicas e acontecimentos considerados sagrados, exibir cenas de estupro (BALLERINI, 2009). Ainda assim, cenas que mostram sexo e mesmo beijo são raras no cinema híndi. Geralmente, nas cenas de sexo, a relação íntima é apenas sugerida ou parcialmente ocultada por objetos e/ou pela montagem cinematográfica.

O cinema indiano é controlado por um órgão oficial de censura, o Central Board of Film Certification (CBFC), e pela censura informal, porém contundente, da parte da própria população indiana, muito conservadora. O CBFC inspeciona os filmes e retira partes deles, conforme julga que tal parte esteja inadequada, ou rejeita o filme por completo. A censura do CBFC recai principalmente sobre as cenas de sexo e de violência (DEVASUNDARAM, 2016, p. 128; LOBATO, 2019, p. 123). Algumas cenas, de filmes e de vídeos, que exibem decotes, gestos obscenos,

palavrões, bebidas alcoólicas e cigarros são cobertas parcialmente com mosaicos, emudecidas parcialmente ou são completamente cortadas, tanto nos cinemas, quanto nos canais de televisão (LOBATO, 2019, p. 123). Os filmes aprovados recebem um selo do CBFC. Diretores fazem vários ajustes em seus filmes para obter a aprovação – muitos filmes ficam congelados por meses esperando a aprovação (BALLERINI, 2009). Portanto, a censura do CBFC interfere no conteúdo dos filmes, não apenas por causa das ocultações de partes que considera inadequadas nos filmes, mas também porque os cineastas procuram abordar temas que permitam que eles mostrem cenas de sexo sem serem censurados.

O CBFC faz a censura não apenas de filmes e vídeos nacionais, mas também de produções estrangeiras, algumas das quais são proibidas de serem exibidas na Índia. Isso ocorreu, por exemplo, com Fifith shades of grey (“Cinquenta tons de cinza”, 2015), de Sam Taylor-Johnson (FIFTY..., 2015), e com o documentário da BBC India’s Daughter (“Filhas da Índia”, 2015), de Leslee Udwin (BBC NEWS, 2015). Esse último aborda o caso mais famoso de estupro em Déli, no qual uma estudante de medicina de vinte e três anos foi espancada e estuprada por um grupo de seis homens em um ônibus, incluindo o motorista, acabando por falecer alguns dias depois (BBC NEWS, 2015). Vários canais a cabo dos EUA que operam na Índia, como o Fashion TV, foram recentemente retirados temporariamente do ar pelos censores indianos, por estarem em desacordo com suas normas para exibição. (LOBATO, 2019, p. 123).

No caso da censura feita pela própria população, infere-se que isso deriva em parte da experiência coletiva de se assistir aos filmes. No cinema ocidental, a apreciação do filme se caracteriza pelo isolamento e, em geral, os filmes são subdivididos em gêneros cinematográficos e se destinam cada qual a públicos de faixas etárias específicas. Já na Índia, as pessoas vão assistir aos filmes em grupos com amigos e com vários membros da família e de diversas faixas etárias. Tal fato pode resultar em constrangimento no que refere à exibição de cenas que envolvem nudez, beijo e sexo. Srinivas (2002, p. 162) afirma que os cineastas de Bangalore receiam afugentar a audiência de mulheres e de famílias com filmes que tenham cenas vulgares e obscenas. De acordo com o diretor bollywoodiano Yash Chopra,

apud Srinivas (2002, p. 162), deve-se fazer entretenimentos decentes, pois ele se sentiria envergonhado com a presença de membros da sua família na sala de cinema onde estivesse sendo exibido um filme indecente de sua autoria. A censura da população a filmes considerados indecentes afeta não apenas cineastas, mas também atores. De acordo com Srinivas (2002), exigências de entretenimentos que sejam considerados adequados para a família podem paralisar a carreira de um ator. O ator Kannada, apud Srinivas (2002), afirma recebeu cartas de espectadoras revoltadas, as quais o interrogaram sobre o porquê de ele ter se tornado indecente, tirando sua blusa em cenas em um quarto em um dos filmes que fez. Nota-se pelos exemplos de censura informal relatados que a censura da população pode ter grande impacto econômico em Bollywood. Considerando-se essa situação, infere-se que a censura oficial do CBFC, que corta cenas de filmes, seja em determinada medida tolerada pela indústria por evitar que a censura informal ocorra.

Ocorre que o público tem se cansado de clichês como as performances musicais que substituem o beijo do casal e o lençol que cobre a relação íntima entre recém-casados. Particularmente as gerações mais jovens, principalmente aquelas que têm acesso a filmes ocidentais, costumam achar estranhas cenas clichês como essas (BALLERINI, 2009). A tendência é que o cinema híndi mude com o passar do tempo, de acordo com mudanças culturais e comportamentais da população indiana. Cabe comentar que, apesar de a sexualidade explícita ser em geral fortemente reprimida no cinema híndi, a sensualidade permeia os filmes em geral desse cinema, em que quase sempre o romance é um dos elementos-chave da trama. Essa sensualidade aparece notoriamente nas danças. Também são muito eróticas as cenas de “quase-beijo”, nas quais os apaixonados não tocam os lábios um do outro, mas suas ações sugerem o beijo, quando, por exemplo, um deles acaricia com uma pena os próprios lábios e o lábio do amado.

Antes do domínio colonial britânico, a Índia era uma nação que apregoava a sexualidade explícita, como sugerem o Kamasutram e os templos com esculturas eróticas de Khajuraho, pequena cidade do estado Madhya Pradesh, norte da Índia. O comedimento da sociedade indiana atual em relação ao sexo relaciona-se à resistência da Índia ao domínio colonial britânico. Os colonizadores ingleses estereotipavam o povo indiano como pessoas depravadas e dadas à libertinagem

sexual (ROJAS, 2017; SILVA, 2015), o que justificaria a colonização. A censura dos britânicos ao que eles consideravam excesso sexual era também parte de uma tentativa deles de impedir envolvimentos íntimos entre indianos e britânicos que comprometessem o domínio dos últimos sobre os primeiros. Os censores britânicos não se incomodavam muito com cenas em que indianos praticavam ações sexuais entre si, mas se incomodavam em ver homens indianos beijando ou praticando contato sexual com mulheres britânicas (SILVA, 2015, p. 335).

Segundo Sandhya Mulchandani (2006), a celebração da sexualidade é parte da cultura indiana, mas acabou sendo mais apreciada apenas no âmbito privado, enquanto a sensualidade é algo mais difícil de ocultar e se expressa continuamente na Índia. A sociedade indiana permite que o indivíduo seja muito sexual, mas não que ele demonstre isso publicamente (MULCHANDANI, 2006). A negação da sexualidade explícita ao lado de uma sensualidade acentuada é notória nos filmes do cinema híndi em geral. A reprovação da exposição pública da sexualidade ocorre em vários dos filmes sucesso de público do cinema híndi analisados. Em Mother India (1957), Shamu e Radha, mesmo casados, são repreendidos pela mãe de Shamu por trocar carícias entre si, ocasião em que ela alerta à nora sobre o perigo de seu filho ficar mal falado na vila. Em Padmaavat (2018), o rei Ratan Singh atira uma faca em Raghav Chetan, pelo fato de ele espiar seu romance com sua esposa, a rainha Padmaavat, e o bane do reino por causa disso. Essa negação da sexualidade explícita não impede, contudo, o forte teor sensual de algumas cenas em filmes híndi, como dito. Como os filmes híndi são comumente baseados em mitos hindus, muitos dos quais tem forte sexualidade implicada, as narrativas são carregadas de sensualidade, apesar da forte censura oficial e informal sobre o cinema no que se refere à sexualidade.

Atualmente, a sociedade indiana é bastante retraída no que se refere a relacionamento amoroso e isso se refle no cinema híndi. Nessa sociedade, não é comum a expressão de afetividade amorosa entre casais em público. Não é comum ver casais de mãos dadas na rua e muito menos se beijando. Na Índia, é comum ver homens se abraçando e se beijando como expressão de amizade, mas não um homem e uma mulher se abraçando e se beijando. Em entrevista concedida à Oprah

Winfrey, durante a promoção de seu primeiro filme hollywoodiano, Bride and prejudice (“Noiva e preconceito”, 2004), dirigido por Gurinder Chadha, a estrela Aishwarya Krishnaraj Rai-Bachchan comentou sobre a quase ausência de cenas de beijo no cinema híndi:

Em todos os filmes que fiz até agora, não há beijos. Nós não vemos beijos nos filmes, assim como geralmente as pessoas não fazem isso comumente nas ruas. Não é verdadeiramente algo que se vê comumente [aqui, Aishwarya responde à indagação da entrevistadora sobre o beijo em público com um tabu na Índia]. Quero dizer, sim, as pessoas se beijam sim, mas isso não acontece como uma norma que se observa comumente em qualquer esquina das ruas. É mais privado. É uma expressão mais privada de emoção. Eu penso que a arte imita a vida e isso também ocorre no nosso cinema. (RAI-BACHCHAN, S.D., tradução nossa).

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 155-160)