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CARACTERÍSTICAS GERAIS DO CINEMA INDIANO

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 46-54)

2 O CINEMA INDIANO

2.1 CARACTERÍSTICAS GERAIS DO CINEMA INDIANO

O cinema é uma arte extremamente popular na Índia. De acordo com Bose (2007, p. 89), lá, o cinema normalmente é o entretenimento mais barato disponível e, com frequência, é a única forma disponível. Além de ser acessível, o cinema tem enorme apelo de público no país. Bollywood é, juntamente com o críquete, a grande paixão nacional da Índia (COSTA, 2012; SRINIVAS, 2016). Em termos de popularidade, o cinema é para a Índia o que o futebol é para o Brasil. Entrevistado pelo jornalista Franthiesco Ballerini (2009), Kishore Namit Kapoor, professor fundador da Kishore Namit Kapoor Acting Institute, associou o cinema indiano a esse esporte no Brasil. Como ele afirma, na Índia, “em vez do fanatismo pelo futebol, existe o fanatismo pelo ator(atriz) idolatrado(a)” (KAPOOR apud BALLERINI, 2009).

Na Índia, como afirma Srinivas (2002), o cinema é o lugar principal que abriga encontros coletivos entre amigos e parentes. De acordo com o autor: “As salas de cinema na Índia são lugares de articulação de cultura pública e são vistos como um microcosmo da sociedade indiana.” (SRINIVAS, 2002, p. 62, tradução nossa). Os números referentes às salas de cinema dão ideia da presença do cinema indiano no quotidiano da população da Índia. O país, que tem três polos cinematográficos principais, Mumbai, Madras e Bangalore, tem cerca de 20.000 salas de projeção, a maioria com mais de 1.000 lugares (BAVA, 2011).

A indústria cinematográfica da Índia influencia amplos setores da sociedade, tem forte intercâmbio com outras indústrias do país e, além disso, o cinema popular indiano se comunica intensamente com várias outras manifestações culturais índicas, tais como a música e a dança indianas. A indústria cinematográfica da Índia tem estreita relação com a indústria fonográfica do país. Também, grande parte da programação televisiva indiana se relaciona a esse cinema. Considerável fração do noticiário, por exemplo, se dedica a expor a vida pessoal e artística de atores e atrizes do cinema (BALLERINI, 2009). Ainda, a força do cinema na Índia se faz vigorosamente presente na política. Por exemplo, como informa Ballerini (2009), o

fato de uma estrela de cinema apoiar ou não determinado candidato pode ter impacto decisivo no resultado de pleitos eleitorais no país. Mais amplamente, Srinivas (2016) afirma que os profissionais do cinema e da mídia na Índia são tipicamente identificados como um grupo que, por meio de seu poder social associado ao seu poder de mídia, dirigem e manipulam audiências.

O grande apelo de público do cinema indiano e sua influência poderosa sobre amplos setores da sociedade indiana foram construídos ao longo de décadas de história. Surgido no final do século XIX e com mais de cem anos de história, o cinema indiano é um dos mais antigos do mundo. Sua indústria se desenvolveu desde os seus primórdios de forma independente do Estado e, atualmente, ele se constitui como um complexo cinematográfico robusto e estável. Ballerini (2009) destaca o fato de que a Índia é um país subdesenvolvido que mantém a posição de maior indústria de cinema em número de produções do mundo, “ao passo que nem países desenvolvidos (...) conseguem manter a indústria do cinema sem parcerias internacionais e, principalmente, sem ajuda do governo”. Presentemente, a indústria de cinema indiana é a maior do mundo em número de produção de longas- metragens, a qual gira em torno de 800 a 1000 títulos anuais (SARAN, 2012; SRINDHAR; MATTOO, 1997). Além disso, para os padrões indianos e considerando-se o orçamento empregado, o cinema índico em geral é altamente rentável. No ano 2015, o cinema indiano obteve uma rentabilidade de US$1.500.000.000, 1.000 vezes o orçamento empregado, US$1.500.000 (BAUER, 2015). Para que se tenha dimensão mais nítida da força da adesão do público índico a esse cinema, cabe mencionar que a principal fonte de renda do mesmo é principalmente a bilheteria nacional (BOSE, 2007; GOVARDAN; UNNIKRISHNAN, 2007; SARAN, 2012).

Além de ser uma exceção de país que mantém uma indústria cinematográfica independente do Estado (juntamente com os Estados Unidos), a Índia é uma exceção de país em que o cinema de entretenimento sempre resistiu com sucesso ao domínio de Hollywood. Essa resistência exitosa ocorre em grande parte devido a fatores culturais (BALLERINI, 2009; THOMAS, 1985). O cinema nigeriano é outro cinema que resiste pela mesma razão ao domínio de Hollywood (BARBER, 1997) e tem se destacado recentemente pelo número alto de produções e pela rentabilidade (BAUER, 2015), muito expressiva em relação aos investimentos empregados e para

os padrões da Nigéria. Mas, enquanto a indústria de cinema nigeriana realiza geralmente produções de relativo baixo orçamento, com o emprego de vídeos de forma extensiva, e frequentemente amadoras (LOBATO, 2012, p. 57), a indústria de cinema indiana realiza comumente número considerável de superproduções ao longo de cada ano, como dito. Além disso, o cinema indiano alcança frequentemente excelência técnica em suas produções, sendo que muitos de seus filmes são recepcionados, reconhecidos e premiados em nível internacional.

De acordo com o site ThisIsNollywood, apud Bauer (2015), a produção média do cinema nigeriano, conhecido popularmente como Nollywood, leva apenas dez dias e custa cerca de US$15.000. Um dos filmes de maior bilheteria do cinema nigeriano, Ije: the journey (“Ije: a jornada”, 2010), de Chineze Anyaene (1984-), rendeu em seu lançamento US$500.000. Para fins de comparação, cita-se que Bollywood tem custos médios de produção de cerca de US$1.500.000 por filme e Hollywood, de cerca de US$47.700.000 por filme, sendo que a produção de cada filme nas duas últimas indústrias leva cerca de um ano em média (BAUER, 2015).

No contexto mundial, a indústria indiana de cinema é a maior em número de produções e de bilhetes vendidos (BOSE, 2007; GOVARDAN; UNNIKRISHNAN, 2007; SARAN, 2012). A produção de filmes da Índia é enorme em comparação com a produção europeia. De acordo com a Screen Digest, apud CHITRAPU (2013, p. 18), no ano 2005, a Índia produziu mais filmes que os países da União Europeia juntos. Na década de 1970, o cinema indiano ultrapassou os Estados Unidos em número de produções (COSTANZO, 2014, p. 160). Nesse ponto, produzindo uma média de dois filmes por dia, um quinto da produção mundial, a Índia havia superado todos os países (COSTANZO, 2014, p. 160). Atualmente, por ano, o país produz o dobro do número de filmes dos Estados Unidos (BAUER, 2015; GOVARDAN; UNNIKRISHNAN, 2007; SRINDHAR; MATTOO, 1997) e vende entre três e quatro bilhões de bilhetes – cerca de um bilhão a mais que Hollywood (MAHMOOD; MITRA, 2011). De acordo com Bose (2007, p. 91), entre os cineastas índicos do cinema popular indiano, o método mais comum e bem-sucedido é investir em vários filmes simultaneamente, prevendo que pelo menos um funcionará e compensará as perdas dos outros. O autor acrescenta que “a lei da probabilidade raramente decepciona um

cineasta que tem os recursos e a coragem para apostar em vários projetos”. (BOSE, 2007, p. 92).

Cabe comentar que apesar de a Índia produzir muito mais filmes que os Estados Unidos, Bollywood tem uma rentabilidade modesta (embora expressiva para os padrões indianos) em relação a Hollywood – cuja complexa e dispendiosa indústria se sustenta pelas receitas das várias atividades comerciais que giram em torno das atividades diretamente ligadas ao cinema, pois o lucro com a venda de bilhetes não cobre os elevados orçamentos dos filmes (GRÁFICO 1 – Nollywood, Bollywood e Hollywood). Na Índia, os lucros também são auferidos pela aliança do cinema com outras indústrias, como as empresas de telefonia móvel e a indústria fonográfica (BOSE, 2007). Mas a distribuição desorganizada (BOSE, 2007) e a limitação de internacionalização imposta pelas barreiras culturais e de idioma contribuem para que a lucratividade da indústria indiana seja muito menor. Além disso, o preço dos ingressos na Índia não chega a um décimo do cobrado nos Estados Unidos e na Europa (BOSE, 2007). A suma é que países muito mais ricos que a Índia produzem muito menos filmes, mas lucram muito mais em termos percentuais.

Hollywood, com uma indústria mais organizada e complexa e com um vasto público internacional, domina o mercado mundial de filmes, com receita de cerca de US$11.000.000.000 por ano (BAUER, 2015). Hollywood tem a vantagem de fazer filmes em inglês, língua internacional. Já os cineastas indianos produzem filmes em um país com vários idiomas, o que tende a limitar o público doméstico, e medidas como dublagem e legendas elevam os custos de produção relativos à banda sonora. Como a resistência da audiência indiana às legendas é muito alta (também por causa da sua forma de apreciar os filmes, interagindo com a projeção e com os presentes, com falas, cantos e danças), muitos filmes são dublados ou até mesmo recebem duas ou mais versões, cada qual em um idioma. Em resumo, afirma-se que, em escala mundial, o cinema indiano domina uma fatia muito menor de mercado que Hollywood, em grande parte por causa de fatores culturais e de limitações relacionadas a idioma; mas, na Índia, o cinema nacional vende mais ingressos que Hollywood, como dito.

Gráfico 1 – Nollywood, Bollywood e Hollywood (2012)

O cinema da Índia não é uno. O vasto e multicultural país tem várias indústrias de cinema regionais, as quais produzem filmes principalmente no idioma mais falado na região em que estão estabelecidas (GARG, 1996). De forma geral, as diversas indústrias se distinguem entre si conforme a região em que estão sediadas, o idioma em que os filmes são feitos, as temáticas mais recorrentes deles, o público- alvo e seu alcance, podendo este último ser regional, nacional e internacional.

De acordo com Perez Júnior (2013), a principal barreira entre as várias indústrias é a língua em que os filmes são produzidos, o que implica (já que o público não gosta de legendas e já que nem todos os filmes são dublados) em circuitos plurais de produção e circulação, com filmes com características e referências culturais muito peculiares. Cada circuito regional é influenciado pelo meio cultural no qual está inserido, absorvendo parte do variado legado de narrativas e dos diferentes modos de trabalho dos atores, dos dançarinos, dos músicos e dos artistas visuais (PEREZ JÚNIOR, 2012).

Embora em cada polo cinematográfico do país prevaleça um estilo cinematográfico singular em linhas bem gerais, há filmes que alcançam a audiência em nível nacional, como é frequente no caso da indústria de cinema híndi, cujo estilo é seguido frequentemente por outras indústrias regionais. Dessa forma, o cinema popular indiano se configura como um fator de integração nacional, em meio à diversidade cultural do povo índico. Nesse sentido, Bollywood tem contribuído para a homogeneização cultural indiana, sob a égide dos valores da família tradicional hindu, para quem o cinema híndi se volta em linhas gerais.

Contribui para a enorme popularidade do cinema de entretenimento indiano, além do seu alinhamento fino com as demandas culturais do público índico, o preço baixo dos ingressos9, vendidos a uma população extremamente numerosa10 e cuja grande maioria tem renda baixa e pouco acesso a alternativas de entretenimento. O fato de o cinema popular indiano ser sustentado tradicionalmente pela bilheteria é uma combinação de público numeroso e preço altamente acessível. Atualmente, porém, como afirma Bose (2007), nenhum produtor ou diretor indiano, grande ou

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De acordo com o UNESCO Institute for Statistics (2016, p. 26), em 2013, enquanto o preço médio estimado dos ingressos na Índia era de US$0,81, o preço médio nos Estados Unidos era de US$8,13.

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A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, com 1.352.617.330 habitantes, atrás apenas da China, com 1.392.730.000 habitantes, de acordo com dados de 2018 do World Bank Group (S.D.).

pequeno, depende exclusivamente da bilheteria, doméstica ou externa, para recuperar seus investimentos, podendo compensá-los de outras formas, tais como: alianças com a indústria fonográfica, direitos de exibição de filmes na televisão, o que geralmente produz renda substancial; dublagem e legendagem para outras línguas; merchandising e lançamento de material promocional; propaganda embutida no filme; acordos de coprodução e distribuição dos benefícios advindos do uso de plataformas multimídia. Bose (2007) afirma ainda que todos os retornos vindos de fontes que não a bilheteria somados superam o valor antes auferido nas salas de cinema, de forma que depender apenas da renda obtida na estreia se tornou uma prática do passado. Nada obstante, dada a importância da recepção para este trabalho, é fundamental considerar a bilheteria dos filmes.

Destaca-se que a popularidade do cinema indiano se refere principalmente ao cinema híndi, voltado para superproduções de entretenimento, e, secundariamente, às indústrias regionais de entretenimento, muitas das quais seguem os parâmetros básicos de funcionamento do polo cinematográfico híndi. O chamado “cinema de arte”11

, voltado para o experimentalismo artístico e que funciona de forma mais independente de companhias produtoras, recebe menos investimentos financeiros e tem um público mais restrito, formado principalmente pelos grupos mais intelectualizados do país.

Ressalvada essa diferença de popularidade entre o cinema de entretenimento e o “cinema de arte”, cabe comentar que o cinema indiano de forma geral, além de ser popular em seu próprio país, alcança o público internacional – no sul e no sudeste da Ásia, no Oriente Médio, em países nos quais as comunidades indianas são expressivas, como é o caso da Inglaterra. No Gráfico 2, observa-se a

11Sempre que o termo “cinema de arte” aparece neste trabalho, ele está entre aspas. Isso foi feito

devido à consciência de que também pode haver arte no chamado “cinema popular indiano”, assim como também pode haver espetáculo no “cinema de arte”. A autora empregou o termo “cinema de arte” – comumente utilizado para se referir ao cinema voltado para experimentação artística e reflexão crítica, com preocupação apenas secundária com bilheteria e lucratividade – para fins de clareza, de forma a opô-lo em linhas gerais ao cinema popular indiano, voltado para o entretenimento de massa. Contudo, sabe-se que cineastas desse cinema popular podem estar preocupados com questões artísticas mais profundas e com reflexões críticas sobre a sociedade, ainda que manifestem essas preocupações de forma sutil. Da mesma forma, o “cinema de arte” não exclui necessariamente o espetáculo. A famosa sequência de kathak dançada por Roshan Kumari em Jalsaghar (“A sala de música”, 1958), de Satyajit Ray, é um exemplo de cena espetacular. Assim, a divisão entre “cinema de arte” e “cinema popular indiano” não é estanque.

distribuição mundial de público do cinema indiano. O numeroso público indiano faz com que a quantidade de espectadores dos demais países elencados nesse gráfico pareça pequena, mas destaca-se que a escala está em milhões.

O cinema indiano tem alcance considerável entre as comunidades indianas diaspóricas no exterior, saudosistas da terra natal (VERSTAPPEN; RUTTEN, 2007, p. 211), mas encontra dificuldades de inserção no mundo, fora das fronteiras da Índia, devido a aspectos culturais (DWYER, 2013, p. 410). É relativamente grande a distância entre cinema indiano e público externo à Índia. De um lado, o público mundial, em sua maior parte ocidentalizado, foi historicamente formado para receber filmes hollywoodianos. De outro lado, os filmes indianos de entretenimento estão focados em geral em atender demandas culturais específicas do povo índico. Portanto, aspectos culturais índicos são tanto fatores de força do cinema popular indiano dentro da Índia, quanto fatores de fraqueza desse cinema fora do país.

Gráfico 2 – Audiência do cinema indiano no mundo (2012)

Como se percebe pelo que foi supraescrito, além da classificação do cinema indiano em indústrias regionais, pode-se 53iolenta5353-lo em cinema comercial de entretenimento, por um lado, e “cinema de arte”, por outro. Algumas indústrias mesclam características do cinema comercial e do “cinema de arte”. Dentre os vários polos cinematográficos indianos, a indústria de cinema híndi é a mais rentável e a mais abrangente em termos de público, em nível nacional e internacional.

A mais prestigiada cerimônia de cinema da Índia é o National Film Awards, criado em 1954 (DISHA EXPERTS, 2018, p. 147). Nela, é entregue a honraria relacionada a cinema mais prestigiada do país, o prêmio Dadasaheb Phalke, instituído pelo governo indiano em 1969 (DISHA EXPERTS, 2018, p. 147), em reconhecimento às contribuições consideradas significativas para o cinema índico feitas ao longo da vida por um indivíduo (DISHA EXPERTS, 2018, p. 147). O nome Dadasaheb Phalke Award se refere a Dhundiraj Govind Phalke (1870-1944), popularmente conhecido como Dadasaheb Phalke, que é considerado “o pai do cinema indiano” (VĀTAVE, 2004).

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 46-54)