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As demandas do público e a indústria de cinema hínd

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 136-140)

4 CINEMA HÍNDI, SOCIEDADE E IMAGINÁRIO

4.1 O CINEMA HÍNDI E SEU PÚBLICO NA ÍNDIA

4.1.3 As demandas do público e a indústria de cinema hínd

Nos termos da estética gustativa indiana, o masala híndi é um tempero composto por diversos condimentos: condimentos de performances musicais, condimentos de sequências de ação fortemente emotivas, condimentos de melodrama, condimentos de comédia etc., todos unidos frouxamente por um enredo raso, simples e familiar, que se move do trágico ao cômico, do diálogo à canção, em uma flutuação de emoções diversas instigadas no espectador. De acordo com Rajadhyaksha (2016), o filme popular indiano é como um amálgama, definido mais como um conjunto de diversas mercadorias discretas frouxamente costuradas do que como uma única mercadoria. Esse aspecto, como afirma o autor, marca um contraste nítido com Hollywood, que, em sua era de estúdio, adotava uma linha de montagem linear voltada para a produção do filme final, pré-definido com clareza. Diferentemente, no cinema popular indiano, que, desde seus primórdios amalgama diferentes espaços culturais, a transformação desses espaços em uma história coerente ocorre de modo muito diferente (RAJADHYAKSHA, 2016). Assim, por exemplo, muitos dos filmes populares indianos são produzidos sem planejamento sistemático prévio, a partir de uma música de sucesso, e os atores frequentemente recebem o roteiro somente no momento da gravação (BALLERINI, 2009).

Esse modo peculiar de funcionamento da indústria de cinema híndi se formou de modo a atender às demandas culturais específicas do povo indiano, por meio da construção de filmes enquanto união de espaços culturais vários. Como se observou pelo estudo da arte indiana empreendido neste trabalho, a estrutura do cinema híndi deriva de modalidades artísticas e populares que precederam o cinema na Índia, as quais o cinema posteriormente absorveu. O filme popular indiano é uma união espetacular formada por elementos dessas modalidades, que visa atender um público heterogêneo, em termos de gosto, idade, gênero, classe social etc., com elevado apelo popular. De acordo com Srinivas (2016, tradução nossa): “As tensões entre heterogeneidade e o anseio por um amplo apelo afeta todos os ramos de produção e entrega de filmes para as audiências.”

A estrutura industrial do cinema híndi fabrica um produto cultural caracterização não pela customização típica de Hollywood, que oferece filmes de gêneros cinematográficos específicos para grupos relativamente homogêneos de espectadores, mas pela diversidade de espetáculos oferecidos, com o fim de alcançar um público tão amplo quanto possível. Por conseguinte, é um produto não especializado, oferecido a preços baixos às massas, de forma que o lucro é auferido não pelo valor da unidade, mas pela quantidade total vendida de ingressos. Já o cinema hollywoodiano é uma indústria que se especializou conforme nichos de mercado específicos, fazendo produtos customizados por cliente: filmes de comédia, filmes de ação, filmes de drama etc. Sua complexa indústria não aufere receita pelo volume de público simplesmente, mas pelo valor relativamente alto do conjunto de seus produtos; não apenas a bilheteria do filme, mas também os produtos relacionados ao filme. Portanto, os gêneros cinematográficos de Hollywood estão para públicos homogêneos segmentados em nichos específicos, assim como o masala híndi, com elementos de diversos gêneros, está para um público heterogêneo. Essa diferença entre Hollywood e Bollywood se relaciona à complexidade primeira em comparação com a segunda. Quando mais uma indústria se complexifica, mais ela tende a customizar seus produtos para públicos específicos e, como desdobramento, os custos de produção e, portanto, os preços aumentam. Sobre a tendência do cinema híndi de buscar atender vários gostos, Rosie Thomas, apud Unny (2014), afirma:

Eu vim para Bombaim da Inglaterra na década de 1970 e passei muito tempo com Manmohan Desai tentando entender a mentalidade dos cineastas. Lembro-me distintamente de uma sessão de história na qual eu estava, em que eles estavam segregando caracteres hindus, muçulmanos e cristãos com giz de cores diferentes no quadro-negro. Foi surpreendente o modo como as histórias foram deliberadamente direcionadas para setores da multidão, de modo que elas atingissem o máximo de pessoas. (THOMAS apud UNNY, 2014).

No que se refere ao funcionamento da cadeia produtiva, os trabalhadores de Hollywood têm funções mais específicas, sendo que as tarefas de produtor, diretor, roteirista e ator são claramente definidas, enquanto na Índia há sobreposições entre as funções e as tarefas na produção fílmica e desfoques das fronteiras entre elas (Srinivas, 2016). Em Bollywood, são comuns casos de atores que dirigem e outros casos de funções distintas acumuladas pela mesma pessoa. Como afirma Srinivas (2016, tradução nossa), “onde a filmagem não é controlada por um roteiro, vários indivíduos podem influenciar e moldar o filme e suas cenas.” Isso é reflexo, em grande parte, da relativa desorganização de Bollywood, em comparação com Hollywood. Há vantagens e desvantagens na forma de divisão de tarefas de ambos os lados. Por um lado, a especialização permite a maximização da qualidade de cada tarefa. Por outro, as fronteiras borradas entre as funções permitem que os trabalhadores tenham uma visão mais completa de todo o processo de construção do filme.

Cabe comentar que a desorganização que caracteriza o conjunto das indústrias indianas de cinema popular é um aspecto que está mudando recentemente, conforme informa Bose (2007). De acordo com o autor, estabeleceu- se recentemente um método sistemático para a produção cinematográfica na Índia, de forma que: (1) os filmes seguem cronogramas, de modo que levam apenas semanas para serem produzidos e não meses ou mesmo anos, como antes; (2) o destino dos filmes é decidido antes do lançamento, não sendo mais relevante que um filme fique muito tempo em cartaz; (3) os tempos de completa anarquia, com astros sobrecarregados coordenando os trabalhos, com falta de responsabilidade financeira e/ou intelectual e com produções estourando o orçamento findaram (BOSE, 2007, p. 90). A respeito desse último ponto, cabe comentar que a indústria não está plenamente livre da anarquia (SRINIVAS, 2016). O caminho rumo ao

planejamento e organização envolve mudança na cultura da prática cinematográfica indiana, caracterizada pela oralidade e improvisação (SRINIVAS, 2016), que ainda dá muita voz às estrelas.

De acordo com Bose (2007, p. 90-91), duas razões principais explicam a institucionalização do cinema popular indiano. A primeira delas é o reconhecimento do cinema como indústria pelo governo da Índia, o que ocorreu em 2001 (BOSE, 2006, p. 22; MISHRA, 2019, p. 151), como resultado da pressão da Film Federation of India (Federação de Cinema da Índia) e de outras associações, que faziam lobby para conferir status de legalidade à indústria, utilizando como instrumento o Industrial Disputes Act (Lei de Disputas Industriais), de 1947 (BOSE, 2006, p. 22). Esse reconhecimento atraiu investimentos privados legais no cinema indiano e instigou sua institucionalização, contribuindo para a derrocada do esquema de utilização do cinema para a lavagem de dinheiro advindo do tráfico de drogas e de armas, antes muito comum no cinema popular indiano (BALLERINI, 2009; BOSE, 2007). A participação do dinheiro sujo nesse cinema era um dos fatores que limitavam a aceitação do mesmo em festivais internacionais. O financiamento legal de bancos e outras instituições financeiras ao cinema implicou na necessidade da adoção de procedimentos contábeis e de planejamento de produção organizados e claros pelos cineastas empreendedores, o que eliminou cineastas presos a antigos procedimentos.

A segunda razão que explica a maior ordem na indústria indiana de cinema popular é o processo de transformação de empresas de capital fechado em grandes organizações de capital aberto (BOSE, 2007, p. 91). Isso permitiu o acesso a grandes somas de dinheiro e enfraqueceu a opressão de agiotas e chefes mafiosos sobre a indústria, possibilitando maior experimentação de ideias e emprego de formas não convencionais a jovens diretores talentosos (BOSE, 2007, p. 91). O resultado é que o perfil da indústria mudou, tornando-se mais institucionalizada, menos arbitrária e menos sujeita a grupos mafiosos. Antes, esses grupos tinham atitudes como, por exemplo, insistir na colocação de cenas eróticas ou de estupro, por exemplo, nos filmes que financiavam com dinheiro sujo (BOSE, 2007, p. 91). O resultado dessa maior estruturação é que o sucesso na indústria deixou de ser um acaso. Os maiores produtores se tornaram hábeis administradores de suas finanças.

Esses produtores, em geral, são adeptos da distribuição de prejuízos – o método mais comum e exitoso é investir em vários filmes simultaneamente, intencionando que pelo menos funcione e compense as perdas dos demais (BOSE, 2007, p. 91).

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 136-140)