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Cinema indiano e colonização

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 75-81)

2 O CINEMA INDIANO

2.2 BREVE HISTÓRIA DO CINEMA INDIANO

2.2.4 Cinema indiano e colonização

O território onde atualmente se encontra a Índia foi, na maior parte de sua história, habitado por reinos muito diversos entre si, com culturas, religiões e idiomas diferentes, no decorrer de uma longa história de invasões de povos, conquistas e reconquistas, resistências e assimilações. O resultado foi a enorme diversidade cultural que caracteriza a Índia atual. Em seu processo de independência da Inglaterra, a Índia reuniu seus diversos povos como se fossem um só, para fazer frente ao poderio britânico. Nada obstante, a grande diversidade cultural e linguística do país permaneceu – geralmente, as mudanças relativas à cultura ocorrem muito lentamente e não podem ser alteradas em curto espaço de tempo por medidas políticas deliberadas. As diversas regiões da Índia têm culturas, costumes, religiões, idiomas, culinárias, vestimentas distintas entre si, apesar da possibilidade de se fazer generalizações bastante rasas.

Historicamente, o período de colonização da Inglaterra na Índia vai de 2 de agosto de 1858, com o estabelecimento do Império Britânico no país, até 15 de agosto de 1947, com sua independência. Nesse período, o cinema indiano foi utilizado tanto como instrumento de dominação da Inglaterra sobre a Índia, por um lado, como instrumento de luta pela independência da Índia, por outro. Os

colonizadores britânicos utilizaram o cinema como meio sutil de legitimar o domínio dos ingleses sobre os indianos, por meio da “demonstração” de sua suposta superioridade, o que era feito principalmente por meio da censura, controlada pelos ingleses. Ballerini (2009) relata um incidente que mostra como a censura contribuiu para o fortalecimento da ideia de superioridade da sociedade branca ocidental. Como informa o autor, nos anos 1920, o governo de Bengala sugeriu mecanismos de censura mais fortes aos filmes importados de Hollywood, quando percebeu que havia quantidade considerável de produções que mostravam personagens brancos embriagados. Outro exemplo dado pelo autor é o fato de que os censores ingleses proibiam cenas que mostrassem envolvimento sexual de mulheres brancas com homens nativos, embora não se preocupassem muito com cenas que mostravam nativos se beijando.

Infere-se daí que a atual “proibição” do beijo18

no cinema popular indiano e a forte predileção por atrizes e atores de pele mais clara nesse cinema guardam alguma relação com a antiga censura feita pelo Império Britânico na Índia. A “proibição”19

do beijo nesse cinema é, em certa medida e em sua origem, resultado de uma busca nacionalista e patriótica pela valorização do povo indiano. Na época em que a censura era controlada pelos ingleses, “entre os anos 1920 e 1940, as cenas de beijo [entre os indianos] eram longas e muito comuns” (BALLERINI, 2009). Considerando-se esse fato, Emília Teles da silva (2015) afirma que a elite indiana considerou necessário reconstruir sua identidade, combatendo as noções britânicas de que os indianos e suas culturas seriam imorais, por meio do apagamento de qualquer vestígio daquilo que poderia ser considerado obsceno, na literatura e na cultura popular e, depois, no cinema. Os indianos passaram a acreditar que havia

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Atualmente, a censura feita pelo Estado indiano ao cinema é muito rígida, em comparação com a postura dos Estados nos respectivos países ocidentais, nos quais a arte sequer é censurada, de forma geral. Na Índia, além da censura oficial, feita pelo Estado, há uma forte censura informal feita pela própria população, ainda hoje muito ligada a valores tradicionais. Assim, os censores, oficiais ou não, contribuem para a permanência da raridade do beijo e de cenas de sexo nos filmes do cinema popular indiano. Ainda hoje, são pouquíssimos os filmes do cinema híndi que têm cenas de beijo e mais raros ainda os filmes que têm cenas de sexo. Nos casos em que essas cenas estão presentes, elas em geral são mais sutis que cenas do tipo nos filmes dos cinemas de países ocidentais e ocidentalizados.

19O termo “proibição” é empregado entre aspas, porque não há uma proibição no sentido literal do

termo, mas uma censura oficial e informal a cenas de intimidade sexual explícita, como abordado na nota supraescrita.

uma conexão entre a moralidade e a força da nação, de modo que o controle da sexualidade seria fundamental para conquistar a independência (SILVA, 2015). De acordo com a autora:

[...] a ausência do beijo aproximadamente entre o final dos anos 30 e o final dos anos 80 está relacionada a uma reação da elite indiana ao desprezo demonstrado pelos colonizadores em relação à cultura, aos costumes, aos princípios e sobretudo à moral dos indianos. Em reação, a elite indiana hindu fez um esforço considerável para “moralizar” a cultura e as pessoas, especialmente as mulheres, e reprimir castas mais baixas, em um processo que se intensificou quando a luta pela independência progrediu. (SILVA, 2015).

A obsessão pela cútis clara no cinema popular indiano, por sua vez, apesar de ter certa relação com a colonização britânica na Índia, que reforçou a associação entre pele clara e status social (GLENN, 2009, p. 149; NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11), tem suas raízes em passado mais remoto, quando se originou o antigo sistema de castas20, o qual a colonização britânica fortaleceu (JEFFREY; HARRISS, 2014; NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11). Historicamente, as castas mais altas estão associadas a povos de tez mais clara, cujos pensadores foram responsáveis pela criação do sistema castista. Até os dias atuais, de forma geral, o indiano tem grande predileção pela cútis clara. De acordo com Glenn (2009, p. 149, tradução nossa): “Quaisquer que sejam suas origens, a cor da pele como legado do passado do subcontinente [indiano] moldou e continua a moldar a percepção cultural do sul da Ásia sobre beleza, identidade e diferença.” Ainda hoje, nos anúncios de jornais

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De acordo com Kimberly Jade Norwood e Violeta Solonova Foreman (2014, p. 11, tradução nossa): “A relação entre cor da pele e classe na Índia é complexa e frequentemente é atribuída erroneamente ao sistema de castas.” Originalmente, cada casta estava associada a uma cor (o termo sânscrito correspondente à casta é varna, que significa “cor” (GLENN, 2009, p. 149): servos estavam associados ao preto; camponeses, ao amarelo; guerreiros, ao vermelho; sacerdotes, ao branco (NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11). Há evidências de que pessoas com pele escura poderiam pertencer a castas altas (NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11). Com o passar do tempo, entretanto, o sistema de castas incorporou percepções negativas sobre a pele escura, devido ao fato de guerreiros e camponeses trabalharem expostos ao sol e, consequentemente, terem a pele mais escura que os sacerdotes (NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11). Por volta dos séculos XV e XVI, sob a influência dos contatos comerciais com a Europa, que tinham se intensificado, a associação entre sistema de castas e cor se fortaleceu (NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11). Quando os ingleses colonizaram a Índia, eles utilizaram a tonalidade da pele para distinguir a si próprios física, social e culturalmente dos indianos, assim como para distinguir a região norte do país e as castas altas da região sul e das castas baixas, aproveitando-se da conquista dos arianos, de pele clara, sobre os indianos e sobre os dravidianos, de pele escura (NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11). Consolidaram-se, assim, ideias de teoria racial de casta e de dominação de pessoas de pele clara sobre pessoas de pele escura (NORWOOD; FOREMAN, 2014, p. 11).

em que pais procuram por noivas para seus filhos, geralmente se busca mulheres mais claras (GÖRKE, 2014, p. 11). Quando pais anunciam suas filhas, muito frequentemente elas são apresentadas como mulheres claras, ainda que não o sejam (ÍNDIA..., 2015b). Atualmente, a mídia reforça enormemente essa predileção por uma tonalidade de pele mais clara. Em geral, nos filmes do cinema híndi, a tonalidade da pele dos protagonistas é geralmente bem mais clara que a tonalidade média de pele do indiano. Banhi Jha (2016, tradução nossa) afirma: “Na Índia, a pele branca é geralmente considerada uma marca social de herança e classe aristocráticas. A mídia de massa está contribuindo significativamente para firmar a larga aceitação de paradigmas de beleza.”

Como reflexo de uma sociedade altamente racista, cuja discriminação pela cor da pele está assentada em crenças religiosas hindus relativas ao sistema de castas, o cinema híndi retroalimenta essa configuração social discriminatória. Isso ocorre inclusive porque os protagonistas dos filmes frequentemente são representações de deuses e atores e atrizes são considerados literalmente como deuses por parte considerável da audiência indiana. Há rumores de que muitos atores e atrizes de Bollywood adotam a prática de clarear sua pele e que essa prática é demandada pela própria indústria (ABRAHAM, 2017; LIU, 2018; PROLONGEAU, 2015). Ainda de acordo com Jha (2016, tradução nossa): “Os endossos da eficácia de cremes de branqueamento feitos por alguns dos principais atores de Bollywood tornam-se significativos na perpetuação da obsessão pela pele clara.” Neha Mishra (2015, tradução nossa) exemplifica: “Até a propaganda de vaselina para homens mostra Shahid Kapoor, um famoso herói de Bollywood, tendo sua pele transformada de um tom mais escuro para um mais claro.”

Cabe ressalvar que o fato de Bollywood ter uma produção fílmica voltada para a família tradicional hindu do norte indiano também tem implicações na alta valorização de atores de pele clara. Isso porque a tonalidade média da pele dos indianos varia conforme a região da Índia. Os indianos do norte, que compõem a grande maioria dos atores e atrizes de Bollywood, em geral tem a pele mais clara, são mais altos, tem cabelos lisos e tem traços faciais mais próximos das feições médias dos europeus ou dos povos do oriente médio, devido ao fato de

descenderem em grande parte dos invasores arianos (AHLOOWALIA, 2009, p. 160; MOTWANI, 2010, p. 114). Já os indianos do sul em geral têm a pele mais escura, são mais baixos, têm feições mais próximas dos africanos e alguns têm cabelos crespos, pois a grande maioria descende dos nativos dravidianos (AHLOOWALIA, 2009, p. 160; MOTWANI, 2010, p. 114). Apesar de alguns indianos terem a pele bastante escura, muitos deles ficariam extremamente ofendidos se comparados aos negros africanos (ÍNDIA..., 2015) – o racismo na Índia é acentuado e suas manifestações ocorrem de forma explícita muitas vezes (EXAME, 2017). Na Índia, como afirma Glenn (2009, p. 104), há uma forte tradição de divisão bipartida entre “ariano iluminado/civilizado/nortista”, de um lado, e “dravidiano escuro/não civilizado/sulista”, de outro. Nesse contexto, nas indústrias cinematográficas do sul do país, há muitas atrizes do norte e elas geralmente fazem muito sucesso por terem a pele mais clara (ASIA NET NEWS, 2018; ÍNDIA..., 2015).

Tendo comentado a respeito da influência da colonização inglesa sobre o cinema popular indiano, comenta-se sobre a utilização do cinema como instrumento de luta pela independência por parte da Índia. Já na época da Índia colonial, a luta pela independência do país ocorreu de forma subterrânea no cinema, apesar da censura oficial promovida pelos ingleses. De acordo com Rajadhyaksha (2016), a administração colonial britânica mesmo em seus primórdios tinha dificuldade em administrar a produção de espetáculos na Índia, pois os fotógrafos e os cineastas vestiam as pessoas com pouca atenção a qualquer verossimilhança. De acordo com o autor, com a entrada dos indianos nas equipes de produção de filmes, os empresários índicos não só começaram a imitar essa tendência, mas também trouxeram para ela uma roupagem política, desejosos de uma colônia revestida de elementos propriamente indianos.

No decorrer dos anos, a luta nacionalista pela independência se tornou mais forte e explícita. Kismet (1943), de Gyan Mukherjee, exibe a canção patriótica Door hato aye duniyawalon hindustan humara hai (“Vão embora, estrangeiros; a Índia é nossa”). Quando os censores ingleses perceberam que a música era uma ameaça ao domínio britânico sobre a Índia, eles quiseram eliminar o filme (SARAN, 2012). O letrista da canção, Kavi Pradeep, se escondeu para não ser preso (SARAN, 2012).

Após a independência, em 1947, o país estava dominado pelo fervor nacionalista, que foi bastante expresso nos filmes do Novo Cinema Indiano (BALLERINI, 2009).

Após a Independência, o Comitê Central de Censores Cinematográficos trocou de dono, passando das mãos dos ingleses para as dos indianos, que trocaram a palavra “censores” pela palavra “certificadores” (BALLERINI, 2009). A censura continuou forte, mas desde aquele momento visava atender aos interesses nacionais indianos, ao invés de buscar atender aos interesses dos antigos colonizadores britânicos.

Após a independência da Índia, as tensões entre hindus e muçulmanos aumentaram, devido à perspectiva de compartilhamento de poder dentro de um país livre do domínio britânico (GREEN, 2014, p. 55). A antiga colônia se fragmentou, formando a Índia propriamente dita, de maioria hindu, e o Paquistão, de maioria muçulmana. Atualmente, a rivalidade entre Índia e Paquistão se reflete no cinema híndi. Muitos filmes desse cinema transmitem mensagens mais ou menos sutis que favorecem a imagem da população hindu, em detrimento da imagem da população islâmica. Assim, por exemplo, é comum que os vilões dos filmes híndi sejam muçulmanos.

Em relação à antiga colonizadora, a Inglaterra, os filmes do cinema híndi mostram, ao mesmo tempo, admiração e necessidade de autoafirmação. É comum, por exemplo, o uso de cenários que fazem referência à Inglaterra, muitas vezes mostrada como lugar de avanço tecnológico e de oportunidades. Em Dilwale dulhania le jayenge (1995), Baldev vive na Inglaterra devido à oportunidade de trabalho que ela lhe proporciona. Em Devdas (2002), o protagonista Devdas forma- se em Direito em Londres. Ao mesmo tempo, é comum que hábitos ingleses (e ocidentais), como o de usar indistintamente ambas as mãos para comer e para higienizar o corpo, sejam reprovados. Em Devdas, Devdas afirma que não cumprimentava ninguém com aperto de mãos em Londres.

O patriotismo é uma característica geral do cinema híndi e aparece de forma nítida em vários de seus filmes. Aspectos do hinduísmo, acontecimentos históricos da nação, as vestimentas típicas do país, sua bandeira, seu mapa etc. são costumeiramente valorizados. Mais profundamente, a própria estrutura narrativa do

filme é baseada geralmente em épicos clássicos hindus e a narrativa vai comumentemente ao encontro da mentalidade do indiano (BOSE, 2007), moldada em grande parte pelas tradições hindus.

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 75-81)