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ASPECTOS CULTURAIS BASILARES DO CINEMA HÍND

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 160-162)

5 CINEMA HÍNDI E CULTURA GERAL INDIANA

5.1 ASPECTOS CULTURAIS BASILARES DO CINEMA HÍND

Como território que recebeu diversos povos que, durante maior ou menor período, passaram por ele ou nele se estabeleceram, a Índia contemporânea tem uma cultura ecumênica, sincrética e híbrida. Kumar (2014, tradução nossa) afirma: “A diversidade, pluralidade e multiplicidade infinitas são as principais características que marcam a cultura visual popular indiana.” De acordo com o autor, as formas e o conteúdo das modalidades de arte contemporâneas índicas, inclusive as que incluem tecnologia digital, ao mesmo tempo em que se adaptaram às demandas das novas tecnologias de mídia, continuaram enraizadas nas tradições clássicas e populares das práticas e das artes visuais de tempos remotos.

Essa diversidade cultural indiana, tanto inter-regional quando intrarregional, se reflete no cinema popular indiano, sendo visível tanto no conjunto dos polos cinematográficos, quanto no interior de cada um deles. A multiplicidade cultural que caracteriza esse cinema também resulta de sua gênese a partir de várias manifestações culturais anteriormente já populares na Índia. Perez Júnior (2013) atribui a peculiaridade da linguagem cinematográfica indiana ao íntimo relacionamento entre o cinema indiano e as outras manifestações artísticas indianas desde os seus primórdios. Para efeitos de comparação, sabe-se que o cinema ocidental em seu princípio era exibido como uma novidade tecnológica, sendo que muitas vezes era feito por pessoas sem formação artística e era geralmente desprezado pelos intelectuais e artistas das modalidades tradicionais, como o teatro. Os inventores do cinema, os irmãos franceses Lumière, eram empreendedores e estavam interessados em propagar o cinematógrafo enquanto novidade tecnológica. Quando os filmes eram exibidos no chamado “teatro de variedades”, nos primórdios do cinema, ele era visto frequentemente como uma curiosidade tecnológica de pouco valor artístico. Mais tarde, o mágico francês George Meliès utilizaria a câmera para fazer trucagens e possibilitar, assim, o ilusionismo no cinema. Posteriormente, o cineasta D. W. Griffith desenvolveria a linguagem cinematográfica de forma

consistente, inspirando-se em obras literárias. Já o cinema indiano surge também integrado a salas de teatros já existentes, sendo que os filmes muitas vezes eram exibidos nos intervalos das peças, sendo considerados desde o princípio como um produto cultural. Srinivas (2016) afirma que o cinema indiano tem raízes na tradição performática e na cultura popular. Segundo Perez Júnior (2013):

Quando o cinema chegou à Índia, logo após a invenção pelos irmãos Lumière, os artistas que já atuavam em outras áreas foram os primeiros a se interessar por pensar e realizar o novo meio de expressão. Nos grandes centros urbanos, as primeiras salas exibidoras foram os teatros que já estavam em funcionamento. Isso propiciou a criação de um ambiente no qual as artes indianas contribuíram para a elaboração da linguagem do cinema nascente, desde a própria origem e invenção, nas primeiras décadas do século XX. Isso também explica a natureza diferenciada da linguagem cinematográfica do cinema indiano no contexto da história do cinema mundial. (PEREZ JÚNIOR, 2012).

De acordo com Bava (2011), o cinema indiano nunca foi visto como uma novidade pela população indiana, mas como um prolongamento natural das artes tradicionais, marionetes, kathakali (um tipo de teatro-dança clássico indiano), lanterna mágica e outras. Segundo o autor – que define o cinema indiano como a “cultura do excesso, da mistura e da transformação” –, o sucesso desse cinema se deve ao seu não purismo, ao fato de ele mesclar representação e narração, romance e narrativa épica, canções e danças. Assim, esse cinema está alinhado à multiplicidade cultural que caracteriza a Índia.

Na Índia, a influência de outras modalidades artísticas tradicionais sobre o cinema é uma via de mão-dupla, em um processo contínuo de retroalimentação. A respeito dessa relação, o psicanalista Sudhir Kakar (1983) afirma:

Quando uma dança popular regional, ou uma figura musical particular, como o bhajan [música com tema religioso hindu ou ideias hindus] ou canto clássico, entram pela porta da frente de um estúdio de Madras, elas são transformadas em dança de filme ou em bhajan de filme, ganhando motivos musicais ou coreográficos de outras regiões, inclusive, eventualmente, de países ocidentais. Retransmitido em seguida em technicolor e som estereofônico, o original já está totalmente modificado. Da mesma forma, as situações, diálogos e cenografias de cinema começaram a colonizar o teatro popular indiano. Mesmo a iconografia tradicional das imagens presta homenagem às representações de ‘deuses’ e ‘deusas’ do cinema. (SUDIR KAKAR, 1983, tradução nossa).

A divisão entre modalidades artísticas com fronteiras bem delineadas, música, artes cênicas (teatro/dança), pintura, escultura, arquitetura, literatura, cinema, não se aplica propriamente à cultura indiana. Em geral, a arte indiana é um conjunto que envolve elementos do que se chama no ocidente “modalidades artísticas”. José Luiz Martinez (2001) afirma: “Na Índia, desde a antiguidade, a representação artística é realizada pela conjugação das artes.” Segundo o autor, música vocal e instrumental, dança e teatro constituem uma unidade multimidiática englobada pelo termo sangita. Assim, na Índia, as fronteiras entre as chamadas modalidades artísticas são muito mais porosas que no ocidente, em geral. No cinema híndi, esse aspecto está presente: música, dança, diálogos poéticos etc. ocorrem como uma unidade multimidiática. As performances musicais do cinema híndi não são meramente pausas na narração feita com diálogos falados e ação. Elas fazem parte da trama, se unindo com essa narração no mesmo nível de relevância de forma contínua. Muitas vezes, as performances musicais no cinema híndi configuram-se como uma forma peculiar de dar sequenciamento aos acontecimentos da trama – quando isso ocorre, essas performances se constituem como narrações cantadas e dançadas.

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 160-162)