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A influência de questões étnicas no cinema hínd

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 144-147)

4 CINEMA HÍNDI, SOCIEDADE E IMAGINÁRIO

4.2 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS NO CINEMA HÍND

4.2.2 A influência de questões étnicas no cinema hínd

Como derivação das invasões do povo ariano na Índia, que disseminou a ideia de que os claros arianos eram superiores aos escuros dravidianos (PROLONGEAU, 2015) e, posteriormente, do sistema de castas, em que tradicionalmente as pessoas das castas mais prestigiadas tinham a pele mais clara (PRUTHI, 2004, p. 2-3), nota-se na sociedade indiana uma forte predileção pela cútis clara. Como afirma a psicanalista Sudhir Kakar e a antropóloga Katharina Kakar, a obsessão indiana pela tez clara relaciona-se à tradição das castas, de acordo com a qual “um brâmane será mais claro que um intocável” (O PESADELO..., 2017). Comentando sobre a importância da cor da pele na criação do sistema de castas e sobre sua sedimentação na mitologia hindu, R. K. Pruthi (2004) afirma:

Nas histórias religiosas hindus, há muitas guerras entre deuses arianos, de um lado, e demônios e espíritos maus de pele escura, de outro. Os diferentes deuses também têm escravos de pele escura. Há estórias de demônios mulheres tentando seduzir deuses arianos homens de formas enganosas. E também histórias de casamentos entre heróis arianos e demônios mulheres. Muitos acreditam que esses incidentes realmente ocorreram e que os deuses e heróis eram pessoas de origem ariana. E os demônios, espíritos maus e escravos de pele escura eram, de fato, os moradores originais da Índia, a quem os arianos cunharam como monstros, espíritos maus, demônios e escravos. (PRUTHI, 2004, p. 3, tradução nossa).

Mesmo no caso de deuses hindus descritos nos escritos mitológicos como seres de pele escura, eles são geralmente retratados com a pele clara. Como lembra o cineasta Bharadwaj Sundar, apud Pandey (2018), Krishna, que é descrito

Akbar. Nada obstante, essa divisão e suas implicações na sociedade retratada são similares ao sistema de castas e às restrições sociais que ele provoca.

como um ser de pele escura nesses escritos, é retratado com a pele clara, assim como Ganesha, elefante retratado com a cabeça branca. O cineasta afirma:

Todas as imagens dos deuses e deusas populares que vemos ao nosso redor, em nossos templos em casa ou salas de oração, on line, em calendários, adesivos e cartazes em lojas e coladas atrás de auto-riquixás, todas mostram eles de pele clara. (...) se nós olharmos em volta, perceberemos que em 99,99% das vezes, os seres mitológicos são retratados com pele clara. (BHARADWAJ SUNDAR apud PANDEY, 2018).

Um caso notório de predileção pela cútis clara na tradição mitológica hindu, é o mito de Krishna e Radha. De acordo com a British Broadcasting Corporation (BBC, 2019), é comum que Krishna seja retratado com a pele azul clara, embora, no mito hindu, ele seja descrito com a pele azul escura. No mito, Krishna revela à sua mãe, Yashoda, que ele não gostava de sua pele azul escura e queria ser mais claro, assim como sua amada, Radha, era (BBC, 2019). Yashoda, então, sugeriu que ele pintasse o rosto de Radha da cor que ele quisesse, para que se sentisse melhor, e ele o fez (BBC, 2019). Mesmo depois da brincadeira de Krishna, ele e Radha estavam apaixonados um pelo outro (BBC, 2019). Acredita-se que esse é o motivo pelo qual as pessoas jogam pó colorido umas sobre as outras no Holi (BBC, 2019), que também é chamado Kamamahotsava (“Celebração para o deus do amor”) (MELTON, 2011 et al., p. 401).

O colonialismo britânico preservou e reforçou a predileção pela cútis clara na Índia, enfatizando a contraposição entre governantes de pele clara e trabalhadores pobres de pele escura (ABRAHAM, 2017; PROLONGEAU, 2015). Atualmente, na sociedade indiana, os indivíduos de pele escura sofrem pressão para clarearem sua cútis de familiares, de amigos e da indústria midiática, que reforça (e lucra) com a obsessão cultural índica pela tez clara (ABRAHAM, 2017; LIU, 2018; PROLONGEAU, 2015). A Índia é um dos países em que as pessoas mais consomem produtos para clareamento de pele, muitos dos quais de eficácia duvidosa e potencialmente danosos à saúde (ABRAHAM, 2017; LIU, 2018). De forma ampla, esses indivíduos são pressionados pela própria estrutura social do país, em que o tom de pele geralmente é um fator importantíssimo no que se refere ao sucesso pessoal, às possibilidades de se conseguir uma vaga de emprego e de encontrar um cônjuge (ABRAHAM, 2017). Os sites voltados para casamento

retroalimentam a ideia de que os tons de pele mais claros são melhores que os escuros (PROLONGEAU, 2015). Nos concursos indianos de miss, a notória diferença entre o tom de pele das candidatas, muito claro, e o tom de pele médio do povo indiano tem chamado a atenção do mundo (JOHN; GUPTA, 2019; PANDEY, 2019).

O cinema popular indiano absorve essa predileção da sociedade e a alimenta. Nos filmes de Bollywood em geral, nota-se a forte palidez dos atores e atrizes em comparação com o tom de pele da média do povo indiano. Nas superproduções analisadas neste trabalho, esse aspecto foi identificado. Há rumores de que atrizes de Bollywood clareiam sua pele, o que elas fariam não apenas por questões de padrão de beleza, mas também para conseguir os principais papéis na indústria e para ter uma aparência apelativa para o público formado por meninas jovens obcecadas pela tez clara (8 BOLLYWOOD…, 2015; ACTRESSES…, S.D.). Cremes clareadores são frequentemente propagandeados por atores e atrizes influentes de Bollywood, tais como Shah Rukh Khan, Katrina Kaif, Deepika Padukone, Sonam Kapoor, Preity Zinta (PANDEY, 2019; PROLONGEAU, 2015). A estilista de Bollywood Archana Walavalkar, apud Prolongeau (2015, tradução nossa), afirma: “Quando filmamos ao ar livre, os atores ficam no sol o menor tempo possível; então, correm para o abrigo de seu guarda-sol ou trailer. (...) E, claro, a iluminação é plena, para acentuar esse traço.”

A maior parte dos principais atores e atrizes de Bollywood têm a aparência de descendentes de povos indo-arianos, que habitam principalmente no norte do país, mais claros em média que as pessoas do sul, que descendem em geral de povos dravídicos, mais escuros. Contudo, isso não reduz o fato de que a discriminação pelo tom de pele que se verifica no cinema popular indiano é um reflexo do racismo do país (ROFBAUER, 2015; O PESADELO..., 2017), que tem raízes em conceitos religiosos hindus inclusive (ROFBAUER, 2015), que Bollywood absorve e retroalimenta, desde seu início – boa parte da abertura para a atuação de mulheres judias no cinema híndi em seus primórdios devia-se ao tom de pele mais claro delas (ROBBINS, 2016). O tom de pele mais claro dos atores de Bollywood não pode ser atribuído à região que o sedia, até mesmo porque atores e atrizes de outras

indústrias indianas mais ao sul, onde o tom de pele da população é, em média, mais escuro, podem ascender para Bollywood, por seu talento e carisma, como foi o caso de Aishwarya Rai (1973-), que inciou sua carreira de atriz de cinema na indústria tamil e posteriormente se tornou uma das atrizes com maior destaque na indústria híndi (KESAVAN, 2006, p. 328; SARAN, 2012). Além disso, no sul, a maioria das atrizes são do norte do país e fazem sucesso justamente por terem a pele clara (ÍNDIA..., 2015ª).

Embora a obsessão cultural pela cútis clara como algo associado à beleza e ao sucesso esteja amplamente disseminada na sociedade indiana com um todo, há resistências a essa noção dominante. Assim, por exemplo, Shah Rukh Khan recebeu uma petição de 15.000 assinaturas contra seu endosso ao clareamento de pele, em uma propaganda na qual ele atribuía em certa medida seu sucesso na carreira cinematográfica ao seu clareamento de pele (PROLONGEAU, 2015). Já a atriz Nandita Das está envolvida ativamente na campanha Dark is beautiful (“O escuro é bonito”), lançada em 2009, e se voltou para o cinema independente, que é menos obcecado com estereótipos (ABRAHAM, 2017; PROLONGEAU, 2015). Das, apud Prolongeau (2015, tradução nossa), comenta sua experiência em Bollywood: “Sempre que me maquiam, eles tentam clarear minha pele. (...) Se você trabalha em Bollywood com uma pele escura, você está condenado a interpretar apenas personagens como camponeses ou moradores de favelas. (...) Personagens da cidade de sucesso devem ter a pele clara.”

No documento Cinema híndi: cultura hindu e recepção (páginas 144-147)