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A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NA PSICOLOGIA E SENSO RELIGIOSO: UMA

3 A FENOMENOLOGIA DA EXPERIENCIA RELIGIOSA

3.2 A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NA PSICOLOGIA E SENSO RELIGIOSO: UMA

Propomos, neste subitem, apresentar os pressupostos da psicologia da religião e algumas concepções de experiência religiosa, para que possamos nos aprofundar nas discussões acerca do trato aos fenômenos religiosos no campo psicológico, sobretudo da saúde mental.

Retornando ao pensamento de William James, um dos pioneiros a iniciar os estudos em Psicologia da religião e que descreveu as variedades da experiência religiosa (1902), nos deparamos com questões que ainda hoje nos colocam numa situação um tanto incômoda que é a reprodução de modelos de se fazer ciência que não condizem com a realidade das coisas e da experiência vivida.

James entende a religião como o conjunto de sentimentos, atos e experiências do indivíduo humano, em sua solidão, enquanto se situa em uma relação com seja o que for por ele considerado divino. Temos também, em James (1902), um pensar pragmático, no sentido em que é compreendido a partir do mundo da vida da própria pessoa, ou seja, o que ela significa e o impacto disso na vida pessoal e relacional, em que é dada atenção ao indivíduo e às suas variadas formas de comportamento religioso. O autor considera que, como estados mentais concretos, as emoções religiosas são entidades psicológicas distinguíveis de outras emoções, estando em regiões diferenciadas da consciência, com as seguintes características: inefabilidade, dimensão noética, transitoriedade e caráter de passividade. Segundo o pioneiro, a inefabilidade para quem a experimenta desafia a expressão, pois não se pode fazer com palavras nenhum relato adequado do seu conteúdo. Disso se segue que a sua qualidade precisa ser experimentada diretamente; não pode ser comunicada nem transferida a outros.

A qualidade noética, para o autor, diz respeito aos estados de conhecimento para quem tem experiências místicas. São iluminações, revelações cheias de significado e importância. Via

de regra, carregam consigo um senso curioso de autoridade pelo tempo sucessivo. A transitoriedade refere-se aos estados místicos que não podem ser sustentados por muito tempo. A não ser em casos raros, meia hora, ou, quando muito, uma ou duas horas, parecem ser o limite além do qual eles se desfazem gradualmente à luz do dia. Por último, a passividade. Segundo James (op. cit.), depois que a espécie característica de consciência se impõe, o místico tem a impressão de que a sua própria vontade está adormecida e, às vezes, de que ele está sendo agarrado e seguro por uma força superior. Esta última particularidade liga os estados místicos a certos fenômenos definidos de personalidade secundários ou alternativos, tais como o discurso profético, a escrita automática ou o transe mediúnico. Entretanto, segundo o autor, quando estas últimas condições são bem pronunciadas, pode não haver nenhuma recordação do fenômeno, e pode não haver significação alguma para a vida interior usual do sujeito, para a qual, por assim dizer, ele representa uma simples interrupção.

James (1902) nos alerta que a divergência mostra o quanto é importante não desprezar nenhuma parte das conexões de um fenômeno, pois nós o fazemos parecer admirável ou medonho de acordo com o contexto no qual o estudamos. O autor ressalta que o conhecimento de Deus não pode ser discursivo, mas tem de ser intuitivo, isto é, tem de ser construído, mais segundo o padrão do que em nós mesmos se chama sensação imediata, do que segundo a proposição da proposição e do julgamento. Esta perspectiva é condizente com o que viemos tratando acerca da noção de experiência.

Ao se referir à experiência religiosa, Edênio Vale (1998) considera que qualquer experiência, fato, fenômeno ou objeto pode ser hierofânico, isto é, revelador do divino, para os seres humanos em busca de transcendência, seja qual for essa. Mas ao mesmo tempo, o mistério inefável, presente no fenômeno, essa última e sempre oculta dimensão da fé religiosa, jamais é atingido, não pode ser explicado, apenas tangenciado. Assim é que o autor nos diz que a experiência religiosa é atingida, de modo muito especial, por essa ambiguidade radical, constituindo-se como uma noção equívoca.

Esta noção equívoca nos remete a pensarmos nas diferenciações sugeridas por alguns autores contemporâneos acerca da vivência da religião e da religiosidade. Mario Aletti (2012), por exemplo, diz que, para muitos estudiosos, a religião faria referência às crenças formais e estáveis, às práticas exteriores de grupo, às instituições culturalmente relevantes, enquanto o termo espiritualidade se prestaria mais a uma definição em termos de funcionalidade, com o

objetivo de auto realização existencial, de potencial interno, de facilitação das relações com os outros.

O conceito de espiritualidade, em alguns autores americanos, refere-se ao conceito de experiência religiosa, sobretudo nos seus componentes emotivos, motivacionais, internos (psicológicos). A religião indicaria aquilo que é externo, exterior, visível. Mario Aletti (op.cit.) observa que, em quase todas as línguas européias, como também em italiano, para designar a dimensão subjetiva da adesão a uma religião, usa-se mais os termos vivência religiosa e religiosidade, como também os termos experiência religiosa.

Mencionamos uma outra perspectiva acerca de experiência religiosa com Rudolf Otto (1917), que em seu clássico livro “O sagrado”, questiona se haveria algo comum ou universal em toda experiência religiosa, um estado de alma que Otto nomeia de numinoso. Este autor propõe que o caráter específico do fenômeno religioso seria a contraposição de duas dimensões da vida: a sagrada e a profana. Para Otto, antes da religião, a experiência religiosa em si implica um estado que ele chama de mysterium tremendum, o mistério que causa arrepios. Mesmo com questionamentos se haveria ou não este sentir numinoso, temos muitos autores que se posicionaram acerca do que seria este sentimento. Selecionamos alguns que aqui apresentamos suas concepções, para nosso entendimento em termos conceituais e práticos.

Dalgalarrondo (2008), de formação psiquiátrica, define o aspecto sagrado contido na experiência mística como a percepção socialmente influenciada de um ser divino ou de um senso de verdade e realidade última. Também considera serem importantes as noções de transcendência e conexidade. A transcendência, segundo o autor, refere-se à ideia de um campo experiencial fora da existência material do dia a dia, e a conexidade tem a ver com a percepção e a experiência de ligação com as pessoas (vivas ou mortas), com a natureza, com o cosmos, ao longo do tempo e do espaço. (DALGALARRONDO, 2008, p.24).

Numa perspectiva fenomenológica, Ales Bello (1998) lembra que a palavra alemã Heilig, para exprimir o conceito de sagrado, tem a mesma raiz de Heil, que significa saúde e poder, correspondendo a palavra semítica qãdes, à latina sanctus e à expressão primitiva tabu. Em seu conjunto, a autora nos diz que tais palavras significam separado, segregado, exprimindo o significado da experiência religiosa, e levam a entender que um poder estranho, totalmente diferente se insere na vida e que, diante deste poder, há inicialmente o espanto e, em seguida, a fé. (BELLO, 1998).

Enquanto isso, Hélio Pelegrino (1988), numa vertente psicanalítica, considera que, com a ideia de Deus, o sujeito da religião não busca negar a falta ou castração do sujeito da psicanálise. O imperativo da crença no sagrado está além de qualquer princípio do prazer ou de qualquer gozo narcísico. O encontro com Deus, para quem crê, dá-se na revelação do mistério. O sagrado, segundo o autor, emerge quando o espírito humano chega ao auge de sua potência, enquanto criador.

E o escritor Rubem Alves (2009) poeta e psicanalista, considera que o sagrado se instaura ao poder do invisível. Segundo o autor:

[...] é ao invisível que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos céus, o desespero do inferno, os fluidos e influências que curam, o paraíso, as bem-aventuranças eternas e o próprio Deus. (ALVES, Rubem, 2009, p.27).

Consideramos as contribuições da psicanálise e a importância da religião em praticamente toda a obra de Sigmund Freud, sobretudo pela influência desta no campo da saúde mental. Mas também problematizamos esta perspectiva, que acaba tendente à patologização da religiosidade. Isto porque Freud, mesmo reformulando seu pensamento com o passar dos anos acerca da religião, não retirou-lhe o status de um sintoma, seja do homem, enquanto indivíduo, ou de toda humanidade, enquanto cultura.

Em “Atos Obsessivos e práticas religiosas” (1907), Freud qualifica a religião como uma neurose obsessiva universal. Posteriormente, em suas elaborações a partir do mito da horda primitiva, que trouxe à tona discussões acerca dos elementos simbólicos presentes nos rituais e ícones religiosos, Freud concluiu que as religiões que se seguiram ao totemismo estão fundadas na devoção ao pai assassinado, elevado à categoria de Deus. Fucks (2003) nos diz que o valor conceitual do mito freudiano foi o de ter estabelecido a noção psicanalítica do pai como vetor de passagem do homem da natureza à cultura.

Em O Futuro de uma ilusão (1927), Freud pensa a religião como uma neurose infantil da humanidade. Este momento do pensamento freudiano foi marcado também pelos diálogos entre Freud e Roman Rolland, que dizia que a verdadeira fonte de religiosidade seria o sentimento oceânico, uma sensação de eternidade e de algo ilimitado, sem fronteiras. Freud discorda de Roman Rolland admitindo que o sentimento oceânico apenas corresponderia ao momento mítico

em que o recém-nascido vivencia, sem se distinguir do mundo externo, experiências precoces de satisfação e de gozo ilimitado.

Porém, mais tarde, em Moisés e o Monoteísmo, conforme nos mostra Fucks (2003), Freud reconhece ter formulado um juízo negativo sobre a religião e começa a pensar que seu poder descansa sobre seu conteúdo de verdade, sendo que esta verdade não é material, mas histórica, designando-a como uma multiplicidade de traços e de inscrições que se reatualizam. O significante Deus ganha então um novo estatuto, aquém e além do religioso. Fucks (2003) nos diz que a religião de Moisés, o egípcio, o estrangeiro que funda o povo judeu, revela a ideia de um Deus pura ausência e que remete os homens ao eco de suas próprias vozes.

Estas concepções freudianas nos mostram desejos dirigidos para a divindade vistos como ilusões produzidas pela combinação de duas causalidades: as necessidades e a lembrança inconsciente do pai. Adotamos nesta pesquisa uma postura que não pretende buscar causalidades para a experiência humana com esta dimensão transcendental, como propõe a psicanálise.

Também não pretendemos desvelar uma essência ou verdade de conteúdos da religião ou um sentido inato desta dimensão dita sagrada, tomando-a como algo além da experiência, tal como vemos por exemplo em Rudolf Otto.

Pretendemos, mais, o estudo empírico e descritivo de Yokaanam diante da religião. Mas um empírico feito de razão e sensibilidade, qualificando uma percepção mais humana e condizente ao que se mostra em nossa consciência.

O próximo capítulo reservamos para apresentarmos algumas considerações teóricas e clinicas que contribuem para pensarmos a experiência de Yokaanam, na tentativa de discutirmos como os fenômenos chamados psicóticos se distinguem, mas, ao mesmo tempo, também se aproximam das experiências religiosas.