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2 A FENOMENOLOGIA DO DELÍRIO MÍSTICO

2.6 O REENCONTRO COM A NOÇÃO DE FENÔMENO

Procurar entender um fenômeno, antes de entregar-se à sua sensação interior, à repercussão dele no ponto central místico de todos nós, é o mesmo que querer descobrir a vida estripando cadáveres. (YOKAANAM, p.21, 2011)

Para compreendermos um fenômeno específico, propomos o resgate de concepções vindas da filosofia e da fenomenologia, sobretudo por estarmos tratando de fenômenos religiosos tão pouco compreendidos no campo da ciência psicológica, como veremos no decorrer deste estudo.

Retomamos agora o filósofo e fenomenólogo Merleau–Ponty (1945), que, ao apresentar a noção de fenômeno, inspira-nos a compreender a percepção como uma abertura sobre as coisas, orientando-se a uma verdade em que estaria a razão de todas as coisas. Esta verdade, para o filósofo, apresenta-se, portanto, na experiência, e não na metafísica, como propunha Kant. Assim, o fenomenológo acentua que a reflexão acerca de um fenômeno é sempre dada para si mesma em uma experiência.

Assim, vemos que a percepção de um fenômeno não consegue alcançar sua figura e fundo ao mesmo tempo, de maneira que temos que considerar os prejuízos que Merleau-Ponty (op.cit.) menciona no ato de perceber. Mas vemos que estes prejuízos que o filósofo menciona não implicam necessariamente na busca desmedida de se encontrar aquilo que um fenômeno esconde e, sim, a valorização do que se mostra em sua ambiguidade.

Para pensarmos acerca dos prejuízos da percepção, remontamos a Franz Brentano, precursor da fenomenologia, que qualificou a observação interna, a própria experiência individual e o aspecto intuitivo no ato de observar e conhecer. Ele dizia que toda consciência é intencional, ou seja, toda consciência é consciência de algo. Sendo assim, só é possível conhecer algo a partir

de uma intencionalidade dirigida àquilo que se apresenta à consciência. Este pensamento teve desdobramentos, o que culminou na fundação da fenomenologia, como vertente filosófica, por um de seus discípulos, Edmund Husserl, oferecendo elementos consistentes para uma profunda reflexão acerca do conceito de Erlebnis, ou seja, o mundo da vida.

Para chegar ao conceito de Erlebnis, Husserl (1931) considerou-o como tendo uma dupla direção: ele é compreendido a partir do interior do sujeito, analisando as experiências vivenciais e a vida da consciência com as suas modalidades, e a partir da investigação da intersubjetividade que leva à análise das concepções do mundo. E para melhor entendermos esta dupla direção de que fala Husserl acerca do fenômeno, trazemos as considerações de Bello (1998), que nos diz que a fenomenologia em Husserl funda uma estética transcendental através da relação entre percepção e apercepção. Nesta concepção, a percepção é definida como a apresentação da coisa tal como ela é na sua realidade. Segundo a autora, o que a caracteriza é a modalidade da visão prospectiva, no sentido em que a vemos, tocamos, etc., pois se nos oferece sempre uma parte da própria coisa, sem termos de pronto a possibilidade de vermos a totalidade do objeto na sua tridimensionalidade.

Bello (op.cit) nos diz que, no interior da perspectiva científica de Husserl, identificada como o conhecimento radical do que se realiza a tomada de posição consciente, a filosofia tende para a universalidade. A autora diz que Husserl parte deste ideal e o utiliza para descobrir a ontologia do mundo-da-vida, a partir uma mudança radical de perspectiva pela suspensão do juízo, a epochè, com relação a tudo o que é já oferecido. Vemos que este conceito propõe colocar entre parênteses os pré-juízos e as crenças, a fim de chegar a uma leitura estrutural do próprio mundo como mundo em que vive cada eu e no qual nós próprios vivemos. Husserl (1931) sustenta um método que é descritivo. Para ele, todas as coisas do mundo aí estão, percebamo-las ou não. Neste sentido, Husserl nos diz que a consciência é constituída por atos (noesis) que visam algum componente deste mundo (noema). Assim, diversas noesis podem referir-se a um único noema.

Husserl (op.cit.) não se contenta com as palavras, mas deseja retornar as próprias coisas. Sendo estas últimas dadas em vivências, isto é, atos intuitivos, o mundo psíquico manifesta-se como instância à qual os objetos são dados de diferentes modos e a consciência torna-se instância constitutiva do mundo objetivo. Assim é que o filósofo considera que, para que o mundo se apresente a nós e nós nos apresentemos a ele, é preciso realizar a epoqué, que se dá em dois

movimentos: no primeiro, há a redução eidética, que busca essências ou significados e, no segundo, a redução transcendental, que busca a essência1 da consciência enquanto constituinte das essências ideais.

Para captar esta dupla percepção, Husserl (op.cit) nos diz que a sua evidência chega pelo espírito no modo dela mesma e com a certeza absoluta de que esse ser existe. No entanto, o filósofo salienta que a evidência não exclui a possibilidade de seu objeto tornar-se, em seguida, objeto de dúvida; já que o ser pode revelar-se uma simples aparência. O filósofo nos diz que essa possibilidade sempre aberta ao objeto da evidência de tornar-se, em seguida, objeto de dúvida, de poder não ser - apesar da evidência, pode ser prevista por nós por meio de uma reflexão crítica.

A evidência, em Husserl (op.cit.), é o modo de consciência de uma distinção particular. Nela, uma coisa, um estado de coisa, uma generalidade, um valor, etc. apresentam-se, oferecem- se e mostram-se na pessoa. Nesse modo final, a coisa está, ela própria, presente, dada na intuição imediata, originalmente. Neste sentido, o filósofo nos diz que a experiência é um caso especial da evidência. Podemos até mesmo dizer que a evidência tomada em geral é experiência, em um sentido muito amplo e, no entanto, especial.

Assim é que Husserl afirma que o ser do mundo é transcendente à consciência, mesmo na evidência originária, e nela permanece transcendente. Qualquer transcendência, nesta linha de pensamento, constitui-se na vida da consciência, como algo ligado a essa vida. Sendo assim, Husserl pensa que devemos desvelar a intencionalidade implicada na própria experiência e explicitar os horizontes desta. Assim, os objetos só existem para nós e só são o que são como objetos de uma consciência real ou possível. Estas reflexões são possíveis, para o filósofo, a partir de uma experiência transcendental, que consiste em examinarmos o cogito transcendentalmente reduzido e o descrevermos sem efetuar a posição de existência natural implicada na percepção espontaneamente executada.

1 Importante ressaltar que a noção de essência, em Merleau-Ponty, não é pensada a partir de um idealismo

transcendental, conforme vemos em Husserl, mas considerada a partir da percepção, da consciência e também da existência, a partir da sua facticidade. O filósofo nos diz que a fenomenologia como estudo das essências é uma filosofia transcendental, que põe em suspenso, para compreendê-las, as afirmações da atitude natural. Mas Merleau Ponty destaca que esta é uma filosofia para a qual o mundo já está sempre lá, antes da reflexão, como uma presença inalienável. O reencontro com o contato ingênuo com o mundo é que pode lhe dar, enfim, um status filosófico”. (Merleau-Ponty, 1945)

Husserl (op.cit) nos diz que um estado essencialmente diferente vem substituir o estado primitivo, e pode-se dizer, nesse sentido, que a reflexão altera o estado primitivo. A alteração é essencial, pois o estado vivido, ingênuo de início, perde sua espontaneidade primitiva precisamente pelo fato de que a reflexão toma por escopo o que de início era estado e não objeto. Assim, o filósofo propõe que a tarefa da reflexão não é reproduzir uma segunda vez o estado primitivo, mas sim observá-lo e explicar seu conteúdo. A passagem para essa atitude reflexiva faz surgir um novo estado intencional, estado que, na singularidade que lhe é própria de se relacionar ao estado anterior, torna consciente, até mesmo evidente, não qualquer outro estado, mas esse mesmo. Somente deste modo torna-se possível essa experiência descritiva, à qual devemos todo saber e todo conhecimento concebíveis relativos à nossa vida intencional.

O filósofo nos diz da necessidade de atermo-nos aos dados puros da reflexão transcendental, tomá-los exatamente como se apresentam na intuição da evidencia direta e afastar deles todas as interpretações que ultrapassem essa afirmação. Com este pensamento, temos que as descrições pertencem ao objeto intencional como tal, e às determinações que o eu lhe atribui, em modalidades determinadas da consciência e nos modos próprios, que aparecem ao olhar investigador quando este pousa sobre essas modalidades.

Vemos que essa direção da descrição, como já mencionamos, é chamada por Husserl (op.cit.) de noemática. A esta, se opõe a direção noética, que se refere às modalidades do próprio cogito, por exemplo àquelas da consciência, como percepção, lembrança, memória imediata, com as diferenças modais que lhe são inerentes, como a clareza e a distinção. Assim, o objeto, para Husserl, é um polo de identidade, apresentado somente com um sentido preconcebido e a ser realizado. Ele é, em cada momento da consciência, o indicador de uma intencionalidade noética que lhe pertence por seu sentido.

O autor esclarece que, quando o fenomenologista estuda qualquer entidade e tudo o que nela possa descobrir, exclusivamente como correlatum da consciência, ele a observa e a descreve não somente em si mesma, e não somente relacionando-a ao ego cogito do qual ela é o cogitatum. Ao contrário, diz ele, seu olhar reflexivo penetra a vida anônima do pensamento, descobre as fases sintéticas determinadas dos diversos modos de consciência e os modos mais recuados ainda da estrutura do eu, que permitem captar o sentido do que é intuitivamente ou não significado pelo eu ou presente para ele.

Vale notar, no entanto, que a descrição fenomenológica do que é percebido como tal não está ligada à explicação perceptiva dessa mesma coisa percebida quanto às suas propriedades, da forma como se completa no curso da percepção real. A perspectiva fenomenológica, para Husserl (op.cit), elucida o que está implicado pelo sentido do cogitatum sem ser intuitivamente dado, representando-se as percepções potenciais que tornariam visível o não visível. Trata-se, portanto, não somente dos estados vividos atuais, mas também dos estados potenciais, que estão implicados, desenhados, pré-traçados na intencionalidade dos estados atuais e carregam o caráter evidente de explicitar o sentido implícito delas.

Assim, representamos a fenomenologia sob a forma de ciência intuitiva apriorística, puramente eidética, em que suas análises apenas desvelam a estrutura do eidos universal do ego transcendental, que por sua vez abrange todas as variantes possíveis do meu ego empírico e, portanto, esse próprio ego como possibilidade pura (HUSSERL, 1931). Com Husserl (op.cit), vemos então que a fenomenologia eidética estuda o a priori universal.

Posto que toda universalidade essencial tem valor de uma lei inviolável, o autor nos diz que a fenomenologia estuda as leis essenciais e universais que determinam de antemão o sentido possível (com seu oposto: o contra sentido) de toda asserção empírica relativa ao transcendental.

Ao ego transcendental concreto de Husserl (op.cit.) corresponde então o eu do homem, a alma, captada puramente em si mesma e por si mesma, alma polarizada num eu, polo do meu habitus e dos meus traços de caráter.

Eu encontro a mim mesmo como homem no mundo e, ao mesmo tempo, como tendo experiência do mundo, assim como um conhecimento científico, incluindo-se aí eu mesmo. Então digo a mim mesmo: tudo o que é para mim o é em virtude da minha consciência: é o percebido da minha percepção, o pensado do meu pensamento, o compreendido da minha compreensão, o intuído da minha intuição.

Reconhecemos com Husserl (1931) que toda espécie de existência, aí incluída qualquer existência caracterizada, seja em que sentido for, tem sua constituição própria. Todo sentido e todo ser imagináveis, quer sejam chamados de imanentes ou transcendentes, fazem parte do campo da subjetividade transcendental, já que constituem todo sentido e todo ser. Assim, segundo o filósofo, cada um tem suas experiências, suas unidades de experiências e de fenômenos, seu fenômeno do mundo, enquanto o mundo da experiência existe em si, por oposição a todos os sujeitos que o percebem e a todos os seus mundos fenômenos.

Nesta linha de pensamento, temos que a percepção não é um raciocínio nem um ato do pensamento. Segundo Husserl (1931), toda percepção, pela qual concebemos e percebemos de maneira imediata os objetos que nos são mostrados, contém uma intencionalidade que remete a uma criação primeira, em que o objeto de sentido análogo era constituído pela primeira vez. Mesmo os objetos desse mundo que nos são desconhecidos são, falando em termos gerais, conhecidos segundo seu tipo. Deste modo,

Todo elemento de nossa experiência cotidiana oculta uma transposição por analogia do sentido objetivo, originalmente criada, no novo caso, e contém uma antecipação do sentido desse último como o de um objeto análogo. Por toda parte, em qualquer lugar onde há dado objetivo, existe uma transposição; e aquilo que na experiência posterior revela-se como tendo sentido realmente novo, pode ter a função de criação primeira e servir de fundamento a todo objetivo de sentido mais rico. (HUSSERL,1931, p. 125)

Husserl nos esclarece assim que todo fenômeno mostra-se e esconde-se simultaneamente, num desvelar constante. Ele considera importante a elucidação da comunidade que se forma em graus diferentes e que, graças à experiência do outro, logo se estabelece entre mim; ego psicofísico primordial que age no meu corpo primordial e por meio dele; e o outro, mostrado na experiência da apresentação; da comunidade que se estabelece entre mim e o ego monádico do outro. O que se constitui em primeiro lugar sob a forma de comunidade e serve de fundamento a todas as outras comunidades intersubjetivas é o ser comum da natureza, aí incluído o do corpo e o do eu psicofísico do outro, emparelhado com o meu próprio eu psicofísico. Neste sentido, a apresentação, como tal, pressupõe um núcleo de apresentações. Ela é uma reapresentação que, fundida com a percepção, exerce a função específica de co-apresentação.

No objeto mostrado em pessoa por uma percepção desse tipo, é preciso distinguir, do ponto de vista noemático, o que é realmente percebido nela, e o adicional que não é, mas que coexiste para e na percepção. Dessa forma, diz Husserl (1931), cada percepção desse tipo se transcende, coloca como presente em pessoa mais do que ela realmente faz presente. Com as palavras Husserl:

O que vejo, verdadeiramente, não é um signo ou um simples analogon, não é uma imagem, seja qual for o sentido; é o outro e aquilo que é apreendido sobre ele na originalidade verdadeira; esse corpo-ali (e mesmo somente uma de suas partes superficiais) é o próprio corpo do outro, ele somente é visto do lugar onde me encontro e desse lado; é, conforme o sentido constitutivo da percepção do outro, um organismo corporal que pertence a uma alma que, na essência, é inacessível diretamente, sendo os dois mostrados na unidade da realidade psicofísica. (HUSSERL, 1931, p. 138)

A partir disso, todo objeto natural, do qual tenho e posso ter a experiência na minha camada profunda, recebe uma camada apresentativa. Isso forma uma unidade sintética de identidade com a camada mostrada na originalidade primordial e constitui, assim, o objeto natural idêntico mostrado nos modos de representação possíveis do outro. Isso se reproduz, segundo o filósofo, para as objetividades de graus superiores, constituídos no mundo objetivo concreto, tal como ele está sempre presente para nós como mundo dos homens e da cultura.

Pensamos que o reencontro com estas reflexões nos possibilita uma aproximação mais aprofundada com aquilo que um fenômeno específico nos mostra e questionamentos acerca das implicações dos discursos da psicopatologia e da psicanálise, em especial em suas definições acerca do delírio místico e em suas investigações psicodiagnósticas.

Esta perspectiva está mais próxima do modo como buscamos descrever a experiência de Yokaanam, pois sabemos que alguns problemas se colocam quando relacionamos sintomas psicopatológicos com manifestações religiosas. Pensando nestes impasses colocados ao clínico em saúde mental, buscamos nesta próxima sessão compreender a fenomenologia da experiência religiosa.