• Nenhum resultado encontrado

2 A FENOMENOLOGIA DO DELÍRIO MÍSTICO

2.1 DA POSSESSÃO AOS TRANSTORNOS MENTAIS

A instauração do saber psiquiátrico no século XVIII trouxe uma perspectiva técnica e categorial de entendimento de fenômenos humanos até então considerados incompreensíveis, como podemos constatar pelas mudanças nas nomenclaturas ao longo dos tempos. O que era considerado possessão na Idade Média foi tendo outras designações no período renascentista como loucura, insensatez, insanidade, desrazão, até o que conhecemos atualmente como doença mental, transtorno mental.

Como mostra Folcault (1961), o louco nem sempre representou a desrazão ao longo da história e a experiência com a loucura nem sempre foi considerada algo negativo, muito menos uma doença. Na Grécia antiga, por exemplo, a loucura foi considerada até mesmo um privilégio, sendo que filósofos como Sócrates e Platão ressaltaram a existência de uma forma de loucura tida como divina e, inclusive, utilizavam a mesma palavra (manikê) para designar tanto o "divinatório" como o "delirante". Ou seja, era através do delírio que alguns privilegiados podiam ter acesso a verdades divinas. Mas, a partir do século XVIII, o fenômeno da loucura é praticamente varrido da sociedade, ficando, em sua grande maioria, sob tutela e controle do saber médico, que passou a caracterizá-la como doença mental e, portanto, passível de cura, desde que confinada. Assim, vemos com o nascimento da clínica psiquiátrica um discurso explicativo acerca do humano, fundamentado na observação morfológica e na descrição formal dos distúrbios psicopatológicos.

Este movimento foi se consolidando com uma higiene mental sanitarista, que propunha um tratamento moral aos loucos (FOUCAULT 1961), o que posteriormente foi sendo substituído pelo tratamento medicamentoso. Assim, estas pessoas reconhecidas como loucas acabavam sendo retiradas do convívio social, sendo enclausuradas nas santas casas e posteriormente nos hospícios, já que provocavam a desordem social e os fenômenos que ali se manifestavam eram muitas vezes incompreensíveis e fugiam ao controle do discurso psiquiátrico.

Destarte, vemos que o paradigma da loucura não foi resolvido totalmente com o surgimento da psiquiatria. Dentre os aspectos que desafiavam este discurso positivista estão

certamente muitos fenômenos de ordem religiosa ou espiritual, que acabam confrontando o seu poder, veracidade e eficácia.

Destacamos aqui um problema de ordem epistemológica, o qual nos parece estar no cerne desta pesquisa. Como lembra Vergote (1998), na Idade Média só existiam as experiências religiosas e/ou espirituais e aquele que tinha alguma desordem mental era visto como possuidor de um dom especial de ordem espiritual ou, muitas vezes como alguém influenciado por seres sobrenaturais. Não havia então distinção entre a experiência religiosa e a loucura. Após a instauração do saber psiquiátrico, ocorre uma inversão desta perspectiva. Se em James (1902), o tronco ainda continuava sendo a experiência religiosa e ele então discute as suas variedades, posteriormente será a patologia a ser discutida em sua variedade, dintinguindo-se suas diferentes manifestações, como ilustram os trabalhos de Jackson e Fulford (1997a). Ou seja, a experiência religiosa e a experiência da loucura foram, na grande maioria dos casos, postas numa mesma dimensão de categorias nosográficas, de modo que não mais se falou em experiências religiosas e/ou espirituais no discurso racional positivista, com receio da nova ciência perder seu estatuto científico, herança do século das luzes.

Lembremos, entretanto, que o próprio Immanuel Kant (1781), no início da “Crítica da razão pura” faz uma advertência para os dois tipos de conhecimentos humanos que se dão no campo da experiência: sensibilidade e razão, reconhecendo os limites da psicologia se tornar científica, já que a ciência, para ele, só se fundamenta nas coisas que podem ser pensadas e que nos chegam pela via da razão e não pela via da sensibilidade. Desta maneira, Kant questiona a possibilidade da existência de um conhecimento independente da experiência. A estes, ele chama de conhecimento a priori, que são distintos do conhecimento empírico. Diante de tal questionamento, Kant reconhece a impossibilidade de conhecer a coisa em si ou aquilo que não está no campo fenomenológico da experiência.

Vemos que a filosofia crítica de Kant pergunta quais as condições a priori para que o nosso conhecimento do mundo se possa concretizar. O filósofo considera que os fenómenos dependem das condições da sensibilidade, espaço e tempo para que possamos conhecê-los. Assim, a percepção não é o critério da existência dos objetos. Kant (op.cit.) afirma, em síntese, que não somos capazes de conhecer inteiramente os objetos reais, visto que o nosso conhecimento sobre os objetos reais é apenas fruto do que somos capazes de pensar sobre eles.

O filósofo diz que há uma coisa ainda mais importante que o que precede: certos conhecimentos por meio de conceitos, cujos objetos correspondentes não podem ser fornecidos pela experiência, emancipam-se dela e parece que estendem o círculo de nossos juízos além dos seus limites. Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos quais a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as investigações de nossa razão, investigações que, por sua importância, nos parecem superiores, e por seu fim muito mais sublimes a tudo quanto a experiência pode apreender no mundo dos fenômenos. Deste modo, as investigações, segundo Kant, são extremamente importantes e abandoná-las por incapacidade intelectual revela pouco apreço ou indiferença.

Para o filósofo, esses conhecimentos da razão pura são: Deus, liberdade e imortalidade. A ciência cujo fim e processos tendem à resolução dessas questões denomina-se metafísica. Sua marcha é, no princípio, dogmática, quer dizer, ela enceta confiadamente o seu trabalho sem ter provas na potência ou impotência de nossa razão para tão grande empresa. Neste pensamento, Kant (op.cit.) nos diz que as matemáticas fornecem um brilhante exemplo do que poderíamos fazer independentemente da experiência, nos conhecimentos “a priori”, que podem ser representados pela intuição, porém nos mostra os riscos do conhecimento que abandona o mundo sensível ou o mundo das ideias.

Este breve retorno à filosofia kantiana, que inclusive esteve presente na fundação da psiquiatria, teve o intuito de mostrar o reconhecimento do conhecimento sensível pelo discurso racional, mas também as dificuldades com que ainda hoje nos deparamos ao incluirmos tal conhecimento como necessário nas ciências humanas, já que tem-se a ideia de que este conhecimento estaria num nível além da experiência. Mas como veremos mais adiante, pensamos como Husserl de que este conhecimento sensível se dá na própria experiência. Nesse sentido, quando nos deparamos com as mudanças nas nomenclaturas acerca da loucura ao longo dos séculos, consideramos que a mudança que culminou em sua institucionalização foi tratá-la como desrazão, já que a partir de então, tudo que era contrário ao modelo racional era visto com certa estranheza, ficando a margem, como exclusão e anormalidade.

Bercherie (1985) nos diz que é o olhar que parece constituir a metáfora obsedante dessa prática e que deixa transparecer a relação que a estrutura, pois, aplicar ao outro o modo de observação que habitualmente reservamos as coisas, aos objetos do real, não deixa de suscitar alguns problemas. Estes problemas acabaram por tornar a clínica suspeita de participar da

alienação daqueles cujos distúrbios ela pretendia descrever, analisar objetivamente e classificar racionalmente.

Para atingirmos um maior aprofundamento acerca do que a psiquiatria chama de delírio religioso, faz-se necessário apresentarmos suas definições conceituais, partindo da noção de juízo, conforme exposto a seguir.