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2 A FENOMENOLOGIA DO DELÍRIO MÍSTICO

2.5 O DELÍRIO MÍSTICO NA PSICANÁLISE

Pensamos que a psicanálise, a despeito de não ser o fundamento teórico que privilegiamos neste estudo, deixou também importantes contribuições para o campo da clínica em articulação com questões religiosas e/ou espirituais e que valem ser mencionadas para pensarmos no conceito de delírio místico.

Para chegarmos à concepção psicanalítica acerca do delírio místico, tivemos que percorrer um longo caminho pelas análises de Freud, mas não encontramos um estudo direcionado exclusivamente a este fenômeno. Encontramos modos de funcionamento psíquico com um predomínio de manifestações místicas, como é o caso da paranóia, ou dementia paranoide, bem exemplificada por Freud (1911) no caso do presidente Schreber.

Mencionamos a importância de Deus na teoria freudiana e na constituição do homem em sua inserção cultural, quando vemos este Deus como representante da lei. Geraldo Paiva (2001) tece reflexões a este respeito e acrescenta que este desejo de Deus surge quando este é pessoalizado, ou seja, um Deus que que se mostra e dá a lei.

Na perspectiva freudiana, a religião passa a ser uma reação à castração da primeira infância. Na psicose, estaria em causa a falência da função paterna, que se manifesta por delírios

e alucinações diversos, como uma tentativa de reestruturação psíquica. Assim, quando pensamos pelo viés da psicanálise, temos que, tal qual as reações na religião, em que as pessoas buscam a Deus a fim de tamponar a angústia do desamparo da castração, na psicose, pela falta da castração, há um clamor pelo pai, demonstrado nos delírios e alucinações e que, enquanto lei, passa a ser o próprio sujeito.

Registra-se aqui, um engrandecimento do eu, a ponto do sujeito entrar em contato com seres sobrenaturais, ou mesmo ser este ser sobrenatural. A este respeito, Freud fez longas análises ao longo de sua obra, baseado em suas teorias acerca do aparelho psíquico.

O pai da psicanálise (Freud, 1914) destaca o fundo narcisista contido no engrandecimento do eu na paranóia, que Szondi chama de inflação, como podemos verificar no texto “O eu em processo: Uma viagem ao trem pulsional com Szondi e Schotte”, de Martins (2013 a). Neste estudo, podemos verificar que a inflação enriquece o eu e corresponde à ideia que Schotte chamou de auto-manutenção do eu. Ocorreria aqui um esforço do eu no sentido de duplicar sua potência de ser, a possessão por dois esforços opostos que, apesar de sincrônicos, operam desligados um ao lado do outro, sem se repelir nem fundir.

Estes estudos tornam-se relevantes para pensarmos o processo paranóico atribuído a Yokaanam. Pela sua obra escrita, pudemos ver que Yokaanam foi responsável por muitos cargos e se tornou um profeta, um mestre espiritual guiado pelo espírito de mestres espirituais que existiram ao longo da história. Poderíamos pensar em auto intitulações, auto referências?

Outros modos de processamento do eu, como a projeção e a introjeção, conceitos introduzidos por Ferenczi (1909; 1908), consideramos relevantes para pensarmos um funcionamento mental paranóico na perspectiva da psicanálise. Martins (2013a) traduziu do alemão o conceito de projeção de Freud, da seguinte forma:

Projeção é a exteriorização de percepções interiores no mundo externo. Basicamente, porém, ela é um processo de cura que reverte o recalcamento e reconduz a libido para a pessoa por ela abandonada. Outrossim, essa libido que retorna contém - sob a forma de ódio e perseguição - um sinal negativo. Não foi correto dizer que a sensação recalcada interiormente se projeta para o exterior; parece-nos muito mais que o internamente mantido retorna de fora. (FREUD, Sigmund; GW, Vol VIII, p.423, traduzido por Martins, p.12)

Pensamos aqui nas muitas páginas em que Yokaanam se sente decepcionado com as pessoas que ele prestou ajuda e que depois o traíam, acusando-o de louco, visionário, pessoas que

roubaram sua criação, inventando comunidades religiosas semelhantes às suas, pessoas que falaram mentiras acerca de sua comunidade e a seu respeito. Vemos que Yokaanam refere-se a muitas acusações contra ele e pensamos neste mecanismo projetivo.

A introjeção, conforme definição de Szondi (1963), traduzida do alemão por Martins (2013a), diz que esta é a luta inconsciente originária do eu para apossar-se, incorporar e capitalizar o objeto valorizado, as representações valorizadas e todo o conteúdo valorizado do mundo exterior e interior, numa pressão de tudo ter. (SZONDI, Lipót, 1963, p. 389, traduzido por MARTINS, 2013).

Yokaanam, ao se dizer o profeta, guiado por Lanuh e Emmanuel, por exemplo, poderia ser pensado a partir deste mecanismo de defesa descrito por Freud, presente nas psicoses. Freud (1969) analisou o caso do presidente Schreber convencendo-se de que se tratava de um caso de paranóia devido ao predomínio de formações delirantes, algumas com aspecto místico. Neste estudo, Freud propõe pensar o delírio como uma construção inserida em um processo de tentativa de reorganização do funcionamento mental, ou seja, um esforço que o aparelho psíquico do paciente empreende no sentido de lidar com a desorganização que a doença do fundo produz.

A partir desta perspectiva, consideramos que o delírio não é a psicose, mas a tentativa de cura da mesma. Se fôssemos interpretar a experiência religiosa de Yokaaam por este viés, teríamos a transformação de um homem comum a Mestre espiritual Yokaanam como uma forma bem-sucedida de lidar com seu delírio.

Ao escrever A interpretação dos sonhos, Freud (1900) diz que as representações nos sonhos e nas psicoses têm em comum a característica de serem realizações de desejos, sendo esta característica um primeiro passo para a compreensão psicanalítica dos delírios. Também com este pensamento, poderíamos interpretar a trajetória do Mestre Yokaanam que se realizou em vida, tornando-se profeta, o que poderia ser dito por este discurso como sendo uma representação mental e um delírio bem-sucedido.

Outros textos freudianos, como “O eu e o isso” (1923), “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), “As pulsões e suas vicissitudes” (1915), também contribuem para pensarmos na dinâmica do processo delirante e em sua constituição, mas não nos aprofundamos nestes textos, pois esta não é a perspectiva que adotamos para nos guiar nesta pesquisa, mesmo sabendo de sua relevância para a práxis clínica.

Questionamos este discurso para certas situações em que o que se apresenta a nós são experiências de ordem religiosa e/ou espiritual. Sobretudo Yokaanam, que afirmou ter a mediunidade desde a infância, o que o incluiria então no espectro das psicoses infantis e não teríamos por exemplo, uma psicose exógena decorrente da queda do avião, como Mira e Lopez pensou.

Sabemos da relevância para a clínica deste pensamento freudiano acerca da estruturação psíquica do homem. Mas nosso questionamento é quando este saber torna-se enrijecido e as manifestações religiosas e/ou espirituais não são vistas como um aspecto cultural ou algo da experiência interna da pessoa e sim como algo que caracteriza um sintoma ou um delírio místico.

Destes estudos freudianos, queremos trazer como contribuição para nossa práxis clínica a ideia de que a posição de suposto saber do analista acaba sendo interessante para o estabelecimento do contrato terapêutico, mas é importante se ter como premissa a verdade daquele sujeito e é com esta verdade que o analista irá trabalhar. É a partir desta e de seu funcionamento, que é singular a cada sujeito, que será possível pensar na direção do tratamento, que não é somente técnico, mas também ético e humano.

O suposto saber é importante para o bom vínculo, a transferência, a associação livre, já que com esta posição tem-se a ideia de que o analista é como a esfinge que irá decifrar o paciente. Mas lembremos que este suposto saber é construído no processo de análise, a partir da fala do analisando.

Se pensamos no funcionamento psíquico de Yokaanam e relacionamos este ao funcionamento paranoico, além de reduzir a sua experiência a um discurso da psicopatologia e da psicanálise, nos implicamos em problemas de cunho ético, epistemológico e prático quando pensamos que há também outros discursos acerca de sua experiência, que não condizem com tal classificação, que em si é mórbida e provoca sofrimento.

Quando pensamos as experiências religiosas e/ou espirituais como um sintoma da humanidade, uma neurose obsessiva, uma reação ao desamparo, um delírio místico, tal como Freud propôs ao longo de sua obra, acabamos reduzindo um aspecto considerado sagrado da experiência humana, que traz sentidos existenciais àquele que a experiência e que a ciência não tem meios de instrumentalizar.

Pensamos como Jaspers (1913), que, enquanto saber técnico, o ato de interpretar nas ciências humanas torna-se necessário, mas unido a uma postura que é compreensiva, intuitiva, e que aceita seus limites em se tratando da complexidade da experiência humana.

A seguir, propomos um reencontro com a noção de fenômeno, buscando em certa medida um esvaziamento dos discursos que até aqui foram explicitados, a fim de revermos a experiência religiosa de Yokaanam naquilo que ela tem em sua ontologia.