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MISTICISMO OU PSICOSE? PERSPECTIVA COGNITIVISTA DE JACKSON E

4 EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS E PSICÓTICAS: UM EXAME CLÍNICO

4.1 MISTICISMO OU PSICOSE? PERSPECTIVA COGNITIVISTA DE JACKSON E

Alguns autores se pronunciam sobre a questão da relação entre experiências religiosas e psicopatológicas a partir da influência do pensamento da filosofia da linguagem. É o caso, por exemplo, dos contemporâneos Mike Jackson e K. W. M. Fulford (1997a), que, no contexto da literatura inglesa, e pautados sobre uma perspectiva cognitivista de solução de problemas, chegaram a construir critérios para distinguir experiência espiritual e psicopatologia. Os autores concluíram que há diferenças entre fenômenos psicóticos e sintomas psicóticos, os primeiros poderiam estar presentes em experiências espirituais, enquanto os segundos estariam mais ligados à psicopatologia.

Estes autores avaliam que a distinção entre experiência espiritual e psicopatológica, mesmo que em termos dos próprios critérios do DSM IIIR, não se apoia somente em fatos científicos objetivos, mas envolve julgamento de valor. Neste sentido, Jackson e Fulford (1997a) mostram que a distinção depende, antes, da maneira segundo a qual os próprios “fenômenos psicóticos” estão inseridos nos valores e crenças da pessoa envolvida. Os autores também demonstram haver implicação disso, por sua vez, para o diagnóstico, para o tratamento e para a investigação em psicopatologia.

Jackson e Fulford (op. cit.) fazem uma interessante distinção destas experiências. Eles argumentam que as experiências espirituais seriam potencializadoras da ação, enquanto as experiências patológicas seriam destruidoras da ação. Argumentam, ainda, que fenômenos patológicos e psicótico-espirituais não podem ser distinguidos por: 1) somente forma e conteúdo (como na psicopatologia tradicional); 2) pelas suas relações com outros sintomas ou com causas patológicas (como na classificação psiquiátrica), ou 3) por referência ao critério descritivo de doença mental, pressuposto no modelo “médico”.

Em seus estudos, são citados alguns autores (e.g., GREELEY, 1974; DEEIKMAN, 1977; WILBER, 1980; PELOSI, 1988) que também têm discutido a relação entre experiência espiritual e psicopatologia. Num extremo, estão aqueles que admitem a justaposição destas experiências; no outro extremo, há aqueles que não reconhecem a distinção, reduzindo toda experiência espiritual

à psicopatologia, como o Grupo para o Avanço da Psiquiatria (1976), ou toda psicopatologia à experiência espiritual, sendo este o pressuposto de grande parte da literatura antipsiquiátrica, por exemplo em Laing (1967, apud JACKSON; FULFORD, 1997a). Lembram ainda que, pela psicopatologia tradicional, por exemplo em Jaspers, os sintomas de doença mental são definidos em termos de sua forma e conteúdo. Mas os autores consideram que a forma é mais significativa, em termos de diagnóstico, que o conteúdo.

Eles ainda afirmam que existe um número de indicações da psicopatologia tradicional, bem como dos trabalhos recentes na filosofia da medicina, de que o fenômeno psicótico envolve capacidades de um tipo mais elevado. Assim, eles se referem a um estudo de Fulford (1989), onde tais análises foram aprofundadas, mostrando que a forma do pensamento delirante compartilha um número de propriedades lógicas com a forma do raciocínio prático e, consequentemente, que a falha da ação é constitutiva e não uma decorrência da desordem psicótica. Nessa avaliação, então, a falha de ação envolvida nos delírios é, portanto, de um tipo particularmente radical.

A seguir apresentamos uma tabela reproduzida deste estudo de Jackson e Fulford, com uma seleção de critérios propostos na literatura para distinguir formas espirituais e patológicas da experiência psicótica, a partir de uma sistematização das concepções da abordagem mais tradicional em psiquiatria e psicopatologia.

Experiência Espiritual Psicose Fontes

Ortodoxia doutrinária – conteúdo aceitável pelo grupo subcultural

Conteúdo bizarro – particularmente reivindicações de status divino ou poderes especiais

1 João 4:2 Wilber, 1980 Elementos sensoriais são

“intelectuais” (experimentados como conteúdo mental)

Elementos sensoriais são “corporais” (experimentados como percepções verídicas)

St Angele de Foligno, 1927, p. 279-93;

Alucinações predominantemente

visuais Alucinações predominantemente auditivas Underhill, 1960, pp.170 em diante; Deikman, 1977

Crenças formadas com possibilidade

de dúvida. Insight presente Crenças incorrigíveis. Insight ausente Arieti, 1976

Duração breve Duração extendida Buckley, 1981

Controle voluntário sobre as

Experiências Experiências são involuntárias Lenz, 1983

Orientada para o outro Auto orientada James, 1902

Auto atualizadora”; potencializadora de vida; frutos espirituais

Desintegradora; deterioração no

funcionamento da vida. Watson, 1982

Campbell, 1982 Greeley, 1974 Wapnick, 1969 Mateus 7:16 James, 1902 Wilber, 1980

Esta tabela ilustra a ampla variedade de critérios propostos para distinção entre experiência espiritual genuína e doença psicótica.

A posição de Jackson e Fulford é discutida por vários outros autores. Marek Marzanski e Mark Bratton (2002b), por exemplo, argumentam afirmando que a experiência espiritual genuína não é psicótica, nem necessariamente potencializadora da ação e nem uma experiência. Estes autores dizem que este modelo de Jackson e Fulford, apesar de seu grande alcance, nem sempre ajuda a distinguir a experiência religiosa da psicótica. Mais adiante veremos melhor o argumento destes autores.

Brett (2002a) aponta, de uma perspectiva fenomenológica que será apresentada em mais detalhes adiante, que o que Jackson e Fulford tentam ressaltar, é que certos fenômenos que parecem benignos e espirituais por seus frutos, são parecidos com experiências psicóticas, que são tidas como malignas por definição. A autora salienta que, durante qualquer tentativa de distinção entre estados místicos e psicóticos, é necessário manter em mente não apenas que ambos os estados podem ocorrer concomitantemente em um indivíduo, mas que a possibilidade de que isto seja verdade tem importantes implicações para a maneira como eles são abordados por profissionais da saúde mental.

Rolland Littlewood (1997) considera que a doença mental e a espiritualidade não são dois fenômenos naturais distintos “lá fora”, mas que elas existem independentemente da vontade humana. E que ambas são designações sociais, culturais. O autor diz que nenhum desses fenômenos têm um núcleo essencial, cuja elucidação por meio de procedimentos psicofisiológicos, fenomenológicos ou ultra-humanos poderia nos habilitar a definir sua essência e, assim, diferenciá-los, mas pode-se definí-los por meio de significados culturalmente compartilhados que, por sua vez, são experiencialmente validados pelos próprios fenômenos biossociais. Neste sentido, qualquer exemplo específico poderia ser diferentemente percebido por indivíduos de acordo com seus interesses e afiliações.

No contexto das reformas do DSM-IV (1994), David Lukoff e Robert Tuner (1997) lembram algumas passagens que devem ser consideradas, como na Introdução do DSM-IV, uma sessão intitulada “Considerações Étnicas e Culturais”, onde se registram inovações acerca de indivíduos culturalmente diversificados. Segue a passagem:

Um clínico não familiarizado com as nuances da estrutura de referência cultural de um indivíduo pode considerar incorretamente como psicopatologia as variações normais no comportamento, crença ou experiência que são específicas da cultura do indivíduo. Por exemplo, certas práticas ou crenças religiosas (por ex., ouvir ou ver um parente falecido durante o luto) podem ser diagnosticadas incorretamente como manifestações de um Transtorno Psicótico. (DSM IV, 1994, XXIV).

Na seção que descreve o Transtorno Psicótico Breve, a seguinte afirmação aparecia:

É importante distinguir entre os sintomas de um Transtorno Psicótico Breve e padrões de resposta culturalmente aceitos. Em algumas cerimônias religiosas, por exemplo, um indivíduo pode relatar que ouve vozes, mas estas geralmente não persistem nem são percebidas como anormais pela maioria dos membros da sua comunidade (DSM IV, 1994, p.303).

David Lukof e Robert Tuner (1997) chamam a atenção para o Plano de Formulação Cultural, um instrumento conciso para especificar a informação que se relaciona ao contexto cultural que é relevante para o cuidado clínico: a identidade cultural do indivíduo, explicações culturais para a sua enfermidade, fatores culturais relacionados ao ambiente psicossocial e níveis de funcionamento, elementos culturais da relação entre o indivíduo e o clínico, e avaliação cultural geral para o diagnóstico e o cuidado. A religião é explicitamente mencionada na terceira seção, de forma a encorajar a avaliação do papel da religião no oferecimento de apoio emocional, instrumental e informativo.

Estes autores ainda destacam uma inovação que já existia no DSM-IV, referente a uma nova categoria de diagnóstico intitulada Problema Religioso ou Espiritual, definida da seguinte forma:

Esta categoria pode ser usada quando o foco da atenção clínica é um problema religioso ou espiritual. Exemplos incluem experiências angustiantes que envolvem a perda ou o questionamento da fé, problemas associados à conversão a uma nova fé, ou o questionamento de valores espirituais que podem não estar, necessariamente, relacionados com uma igreja ou religião institucionalizada (DSM IV, 1994, p.685).

Andrew Sims (1997) considera que na maioria dos casos costuma ser fácil fazer uma distinção entre experiências religiosas e fenômenos psicóticos, mas ocasionalmente isto é extremamente difícil. O autor sugere um checklist prático para diagnosticar a morbidade psiquiátrica que leve em consideração que tanto a experiência subjetiva como o comportamento observado conformem-se aos sintomas psiquiáticos, isto é, que a autodescrição desta experiência particular seja reconhecível como sendo a sintomatologia de uma doença psiquiátrica conhecida (por exemplo, tenha a forma de um delírio); que haja outros sintomas reconhecíveis de doença

mental em outras áreas da vida; outros delírios, alucinações, transtornos de humor, transtorno de pensamento e assim por diante, estejam presentes; que o estilo de vida, comportamento e direção dos objetivos pessoais do indivíduo subsequentes ao evento ou experiência religiosa sejam mais consistentes com a história natural de desordem mental que com a experiência de vida pessoalmente enriquecedora e que a personalidade esteja desordenada quando avaliada sobre outra evidência que não a manifestação do comportamento religioso.

O autor aponta como sugestivos da experiência religiosa: 1) que a pessoa mostre algum grau de reticência para discutir a experiência, especialmente com aqueles que ela acredita não serem simpatizantes; 2) que a experiência seja posteriormente descrita de forma não emocional, com uma convicção substancial, e pareça “autêntica”; 3) que a pessoa compreenda, permita e mesmo simpatize com a incredulidade dos outros; 4) que ele ou ela comumente considere que a experiência implique alguma demanda sobre seu próprio comportamento; 5) que as experiências religiosas estejam em conformidade, em termos bem gerais, com as tradições religiosas do sujeito.

Anthony Storr (1997) se posiciona argumentando que a experiência psicótica pode ser uma solução para os problemas de um sujeito, mas, se isto vai ser considerado espiritual ou psicopatológico, vai depender em parte da natureza da experiência e, mais ainda, do contexto social em que ela ocorre. O autor ainda ressalta que a patologia mental em si mesma deve ser definida de modo outro que não por referência à forma e ao conteúdo da experiência particular. Ainda considera que a distinção espiritual versus patológico deve ser abandonada, já que qualquer um está sujeito a ter experiências irracionais ou abraçar crenças irracionais que podem ser destrutivas ou podem tornar a vida melhor.

Markanski e Bratton (2002b) ressaltam que Jackson e Fulford, ao usarem a forma de expressão experiência espiritual, tiveram o propósito de examinar as limitações das conceituações tradicionais e estreitamente psiquiátricas de psicose, definindo um espectro de experiências anômalas que têm características psicóticas, mas que não levam a consequências psiquiátricas, e são espirituais no sentido de que, ou estão frequentemente associadas com um senso de profundo significado pessoal, uma mudança de valores ou crenças significativas, ou podem ser interpretadas em termos de uma matriz explicativa espiritual ou paranormal.

Dalgalarrondo (2008), ao revisar trabalhos que propõem a distinção entre fenômenos religiosos e psicopatológicos, a partir dos autores: Andrew Sims [1995]; Thalbourne [1994];

Linney; Peters e Ayton [1998]; Peters e colaboradores [1999]; Lawrence e Peters [2004]; Freeman e colaboradores [2005]; considera que tais trabalhos reforçam a hipótese de um continuum entre estados psicóticos e formas de pensar e sentir consideradas não patológicas. Além disso, indicam clara sobreposição entre várias dimensões, sobretudo cognitivas, da experiência de pacientes delirantes e pessoas que tem crenças religiosas intensas e incomuns. O autor nos diz que há indicativos de que a estrutura cognitiva subjacente é semelhante nos dois grupos, entretanto não há um grau de sofrimento e desorganização psíquica e social nos portadores de crenças religiosas como observado em pacientes delirantes. (DALGALARRONDO, 2008)

Ao pensarmos e refletirmos acerca das discussões sobre os fenômenos religiosos e psicopatológicos, aqui apresentados, nos remetemos também a Vergote (1978), o qual nos esclarece que a ciência desmistificou a concepção demonológica da alienação mental, sobretudo com Hipócrates, considerado o pai da medicina, que nos deu uma explicação orgânica acerca da alienação mental. Porém, segundo o autor, desmistificando a antiga interpretação religiosa, a ciência psiquiátrica perde ao mesmo tempo o sentido propriamente humano da alienação mental. O autor então diz que os critérios da patologia são relativos, já que cada cultura dispõe de terapêuticas relativas aos transtornos do espírito e sabem distinguir enfermidade de saúde segundo a ideia que cada sociedade tem. Diz ainda que o homem é julgado como doente ou saudável porque sua vivência e seu comportamento não estão conforme os símbolos essenciais que governam uma comunidade.

Dada a diversidade nas formas de pensar e repensar os critérios para a distinção entre experiência religiosa e psicopatologia, como um sintoma decorrente da inversão de troncos criada pela linguagem psiquiátrica temos que ao invés de se analisar a diversidade de expressões religiosas e, dentre elas, discutir quais se mostram saudáveis ou problemáticas, hoje se discute então as diversas expressões psicopatológicas e, dentre elas, quais seriam benéficas ou doentias, conforme se aproximem mais ou menos da experiência qualificada pelo sujeito como espiritual. Este sintoma e outros sintomas estavam já, de certa forma, previsto por Husserl (Traduzido por Alves, 2006), em sua “Crise da Humanidade Européia”, quando denunciava o preço de um conhecimento que busca se alienar de suas próprias raízes.

Num outro contexto histórico, Vergote (1969) nos disse, sabiamente, que não devemos tomar o transcendente como objeto de investigação. Neste território, segundo o autor, está a

natureza íntima da religião, mas seria uma insensatez a esperança de uma revelação psicológica desta natureza. O autor nos diz que este sentido último e profundo não é um problema de ordem psicológica, mas de ordem metafísica ou teológica e, portanto, somente a filosofia está chamada a pensar o ser transfenomênico e a desvelar as estruturas essenciais e necessárias ao mesmo.

Tendo esta prerrogativa como princípio no trato aos fenômenos religiosos e psicóticos, apresentamos o pensamento da fenomenóloga Caroline Brett, já que esta autora parece ter proposto um rompimento desta perspectiva ocidental que vimos examinando, pautada em juízos de valor e na forma e conteúdo da experiência.

4.2 O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO DE CAROLINE BRETT: UMA