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4 EXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS E PSICÓTICAS: UM EXAME CLÍNICO

4.2 O PENSAMENTO FENOMENOLÓGICO DE CAROLINE BRETT: UMA

Caroline Brett (2002 a), baseada em suas análises acerca das distinções e conexões de estados de experiências místicos e psicóticos nos diz que as experiências psicóticas decorrem de alterações na forma da experiência, mas resultam em uma interação patológica entre o indivíduo e o mundo. Assim, fenômenos ocorridos em um contexto espiritual podem ser idênticos àqueles tradicionalmente vistos como sintomas de psicose, mas não podem ser vistos como psicóticos em si mesmos.

Brett (op. cit.) indica que a comparação do conteúdo das crenças de um indivíduo também não pode distinguir uma ideação espiritual de psicótica. Porém, ela sugere algumas diferenças no tipo de experiência a partir de Greenberg (1992), que diz que os místicos evitam a grandiosidade e os delírios de onipotência, os quais podem caracterizar a psicose; delírios de perseguição e alucinações auditivas também são notórias em experiências psicóticas, mas não nas místicas. A autora cita ainda Chadwick (2001), ao argumentar que, nos místicos, as intuições que ocorrem no estado alterado parecem emanar do self para o mundo, enquanto nos psicóticos, as intuições tendem a girar em torno das intenções do mundo para o self. Deste modo, o místico está preocupado com o modo como o self se encaixa no universo, e o psicótico está preocupado com o sentido dos eventos em relação ao self.

Segundo Brett (2002), citando Chadwick e Birchwood (1994), esta distinção não pode ser feita puramente pela avaliação negativa ou positiva da experiência por parte do indivíduo, porque alguns pacientes psicóticos têm uma atitude positiva em relação a suas experiências. A autora

acentua o pensamento de Jackson e Fulford (1997a) quando estes concluem que a psicose não pode ser diferenciada da experiência mística pela forma ou conteúdo, mas depende da maneira com que os fenômenos estão inseridos nos valores e crenças da pessoa em questão. Com isto, ela diz que a visão clássica da psicose presume que a relação da mente com o mundo é dada, e que os delírios podem ser identificados a partir da falsidade, incorrigibilidade e certeza.

Porém, a autora lembra também que a patologia que diferencia o estado psicótico do estado místico benigno não reside no conteúdo das crenças, ou mesmo na forma ampla da experiência, mas numa inabilidade para retornar ao sistema ontológico da realidade consensual; no isolamento psicológico e na inabilidade para se acomodar à subjetividade de outrem; num foco de interesse na esfera mental e na perda das preocupações práticas que conduz a uma escassez de ação e à negligência com o cuidado pessoal. Deste modo, a autora preocupou-se mais em identificar o ponto em que uma experiência ou a resposta dela se torna patológica do que em distinguir estados místicos e psicóticos, tendo como objetivo ver em que medida uma certa forma de experiência pode ser entendida dentro de uma estrutura epistemológica específica, e as implicações disso.

Ela nos apresenta o alcance de sua análise incluindo as contribuições dos outros autores, destacando que os aspectos místicos e psicóticos não precisam ser dicotomizados em experiências separadas, mas podem ser vistos como fios intimamente tecidos nas narrativas subjetivas de pessoas reais. O argumento da autora centra-se em questionar se, através da manutenção das estruturas do ego, da inabilidade para controlar a atenção, e da serenidade pobre, certos estados alterados podem levar ou a um modo patológico de interagir com o mundo, ou a um modo de fato patológico de interpretar eventos no mundo. A autora diz que talvez o resultado benigno seja a situação em que o indivíduo abstêm-se de tentar agir em seu mundo (subjetivado), como se ele correspondesse ao mundo percebido pelos outros que o cercam.

A autora argumenta que no humor delirante parece haver uma perda ou enfraquecimento da identificação automática e não-examinada entre o corpo físico e os pensamentos da pessoa e, freqüentemente, uma debilitação da independência mental do mundo material. De modo similar, as epistemologias budista e vedântica também envolveriam uma visão em que a identificação automática entre as experiências corporais, mentais e emocionais da pessoa, possa ser sistematicamente liberada. Um aspecto desse processo é que a dualidade inerente na

independência do mundo material em relação à consciência que a pessoa tem dele muda para uma perspectiva na qual as coisas e a percepção participam na criação de uma consciência do mundo.

A autora fez longas análises acerca dos sistemas tântricos do budismo tibetano e da ioga vedanta advaíta, que nos fornecem modelos de estados místicos e patológicos, em termos do desenvolvimento e possíveis desequilíbrios das energias espirituais. Esta análise de Brett (op.cit.) enfoca um subtipo específico de experiências místicas, já que a fenomenologia dos estados místicos na tradição oriental parece corresponder à do humor delirante, tanto na intensidade como na especificidade de suas características. Estas comparações feitas por Brett acabam por sugerir possíveis fatores causais que podem contribuir para os processos da reorganização cognitiva geradores de condições psicóticas patológicas ou místicas benignas, para empregarmos a terminologia dada por Jackson e Fulford.

Algumas contribuições de Brett num viés fenomenológico são aqui ressaltadas, mas chamamos a atenção para a noção de juízo da realidade do ocidente que, ao ser comparado por Brett com a epistemologia budista, é colocada em xeque, já que a concepção de falso e verdadeiro tem como parâmetro o julgamento via percepção. Após ter analisado em detalhes alguns sistemas espirituais orientais, a autora conclui que a atenção nestes sistemas é voltada para dentro, afastando-se do envolvimento em assuntos práticos ou mundanos, de modo que o próprio processo de percepção seja o foco da atenção. Também os pensamentos e percepções que surgem são experienciados passivamente, levando a uma não-identificação com esses eventos mentais.

Brett (2002 a) ressalta que o aspecto discriminativo da mente percebe que o self como sujeito não é idêntico a nenhum evento mental, mas é uma abstração da consciência pura, que ilumina todo evento mental. Em consequência disso, diz a autora, tem-se as percepções de que a verdadeira natureza da realidade transcende a dicotomia sujeito/objeto; que o self não é uma entidade separada e que não tem fronteiras definitivas com o mundo; e que a divisão do mundo em entidades é uma função da mente. Essa postura existencial constitui, para Brett (op. cit.), uma alteração radical da estrutura da experiência, de modo que a antiga ontologia do mundo material em oposição a um self que existe independentemente é insustentável.

Sob este ponto de vista apontado pela autora, vemos que as similaridades entre esse estado e o estado psicótico ou o humor delirante são aparentes: o distanciamento da atenção dos mundos social e prático e da atividade sensório-motora; a perda da distinção entre os mundos objetivo e subjetivo; a erosão da experiência do self, e o enfraquecimento da ontologia anterior,

que depende do sistema estrutural cognitivo de tempo, espaço, substância, identidade e assim por diante.

Segundo Brett (2002a), a epistemologia budista está baseada fundamentalmente na categoria de relatio, em contraste com a ontologia do sistema platônico-aristotélico, que pode ser descrita como baseada na categoria de substantia. Na epistemologia budista, a mente e o mundo são vistos como intimamente inter-relacionados. Esta noção budista do self contrasta drasticamente com o conceito ocidental. A autora nos diz que tanto a tradição platônico- agostiniana, quanto a aristotélica-tomista, afirmam a existência de uma alma individual. Já o Buda proclamou que a noção de self é falsa e que não há self individual ou permanente separado de um grupo de fatores. Segundo a autora, o budismo afirma que a única linha contínua é bhava, ou a continuidade da consciência através do tempo. Nesta perspectiva, há apenas estados mentais: pensamentos, emoções, memórias, sensações e percepções. Não há nenhum eu por trás deles, e também não há sentido de eu sem eles. A autora compreende o eu como o resultado da tendência básica de unificação da vida (principium individuatines), ou seja, todo ser vivo tende a organizar uma unidade e, no caso dos humanos, isso lhes confere autoconsciência. Esse princípio, para Brett (op. cit.), constrói um ego separado e durável, que está em contraste com o resto do mundo, mas o self separado pode ser visto também, na verdade, com uma ilusão.

Brett (op. cit.) propõe uma abordagem alternativa que é examinar a forma ao invés do conteúdo do estado psicótico, que é entendido como um estado alterado de consciência que pode demonstrar uma estrutura específica de experiência. Sob este ponto de vista, os delírios podem ser vistos como esquemas ou estruturas de crenças que representam tentativas de interpretar e organizar as percepções que surgem no estado psicótico. Embora os delírios possam ser um dos principais sinais observáveis de patologia, a autora destaca que, nesta visão, eles não são a fonte primária da patologia - a fonte pode ser o estado, ou a estrutura da experiência psicótica, que podem ser refletidos nas crenças delirantes. A autora nos diz que essa mudança de paradigma evita as distorções introduzidas quando se assume que os delírios são simples exemplos de erros obstinados em relação a algum estado objetivo do mundo.

Brett (2002a) conceitua o humor delirante como aquele em que o mundo perceptivo parece ter sofrido algumas mudanças sutis, porém totalmente abrangentes. Neste humor, segundo a autora, o mundo pode parecer sem substância, ou mutável, e banhado em um tipo de aura de particularidade, significação ou entendimento. Os eventos e características do mundo podem

parecer intimamente relacionados ao sujeito, seja no sentido de que são sinais dirigidos ao sujeito ou no sentido de que foram causados, ou afetados, pelos pensamentos ou intenções do sujeito. Assim, então, o mundo delirante envolve transformações fundamentais nas estruturas conceituais de espaço, tempo e identidade, na natureza e realidade percebidas da consciência em si. Este estado, segundo a autora, resulta em uma situação de insegurança ontológica, uma vez que a Urdoxa é abalada, e as características necessárias e invariantes da experiência são percebidas como dissolvidas ou não-confiáveis, ou seja, a ontologia fundamental da realidade se tornou obscura.

Vemos então, com Brett (op. cit.), que as definições do humor delirante que descrevem o mundo como ilusório, cenário vazio, ou impregnado de conhecimento, se harmonizam com essa visão do mundo fenomenal como uma manifestação da pura consciência. A autora aponta que, apesar de exibirem uma estrutura conceitual muito similar, um estado psicótico difere de um estado místico nos seguintes aspectos:

 uma manutenção da estrutura do ego, embora de modo fragmentado ou distorcido, e uma concomitante manutenção de algumas distinções sujeito/objeto;

 Menor habilidade de controlar a atenção; e

 Menor habilidade para manter a serenidade, demonstrada pela emotividade, confusão e ansiedade. Esses fatores segundo a autora afetam a experiência subjetiva do indivíduo de maneiras tais que se pode entender que conduzam à formação dos tipos de delírios aos quais é atribuído o rótulo de “psicótico”.

O que a autora nos mostra é que se, quando a estrutura do ego é ameaçada pela experiência de percepção indiferenciada, o intelecto tenta restabelecer objetos e, consequentemente, reifica o self, a unificação das percepções por referência a um self pode ocorrer, conduzindo à percepção ou de que o mundo consiste do self, ou que o self constitui o mundo. De maneira alternativa, a autora nos diz que, ao tentar encontrar o self como sujeito na percepção e esta tentativa falhar, o intelecto pode dicotomizar a experiência em um self negado ou vazio e um mundo ativo. Neste sentido, se o indivíduo tenta interpretar a experiência com base

no esquema mundano, é possível ver como os delírios de grandiosidade e onipotência de um lado, e os de passividade, controle ou observação de outro, poderiam emergir.

Entendemos que, com estas formulações de Brett para se distinguir estados psicóticos de estados místicos, estamos mais próximos de pensar a experiência de Yokaanam tal como ela se apresentou à nossa consciência, a partir do conceito de mundo da vida, proposto pela fenomenologia, que abordaremos a seguir.

5 O RETORNO AO MUNDO DA VIDA: UMA ABERTURA PARA UM MODO