Capítulo V. Dinâmicas familiares: entre a (re)produção e a vitimização das famílias 127
5.1. As famílias das vítimas nos meandros da violência 127
5.1.2. A família: entre o apoio, a pressão social e o afastamento 136
Já nos referimos anteriormente ao afastamento das vítimas das suas redes sociais de apoio mas é incontornável nova convocação para reflectirmos sobre os motivos da manutenção da relação. Embora consideremos que nenhum aspecto, por si só, contribui isoladamente para a decisão da ruptura, e reconhecendo que nos deparamos com uma multiplicidade de factores, admitimos como hipótese que a sua concretização será facilitada quando as mulheres dispõem de suporte familiar, algo comprovado por alguns estudos (Johnson, 2005; Patton, 2003; Chung, Kennedy, O´Brian, Wendt, 2000; Heggie, 1995). Assim sendo, o isolamento ao qual o agressor sujeita a mulher é um factor crucial para condicionar uma decisão de ruptura, isto porque, quando a mulher tenta abandonar a relação, muitas vezes o afastamento da família é já uma realidade, sendo-‐lhe difícil recorrer à sua ajuda.
Uma das entrevistadas refere mesmo que, muitas vezes, quando as mulheres necessitam de recorrer a amigos ou à família, a distância imposta, dificilmente permite essa reaproximação:
“Muitas vezes quando as mulheres decidem que querem sair e já querem ser ajudadas, já estão isoladas de amigos, muitas vezes a própria família gosta dele, depende da família, não estou a falar, muitas vezes nem do lado da própria família elas não têm apoios nenhuns, e custa muito mesmo depois quando saem a pessoa sai das casas está sozinha, não tem raízes nem pode contactar com a família por questões de segurança…”
(Inês, 45 anos)
Mesmo quando a família apoia a ruptura, as situações de reincidência, ou seja, situações em que algumas delas voltam para o agressor, põem em risco a continuação do apoio familiar, uma situação que pode indiciar um sentimento de frustração da família em relação ao apoio e, por vezes, tem como resultado um desinvestimento no
apoio às vítimas. A ajuda prestada resulta imponente, com o regresso das mulheres para o agressor. Luana descreve-‐nos essa mesma situação:
«Ainda saí de casa, ainda fui para a casa do meu irmão, grávida, entrei e o meu irmão disse para ficar, mas disse-‐me “mas eu não quero que tu voltes para aquele homem, foste avisada, estás grávida se precisares de ajuda eu ajudo-‐te quando o bebé nascer”. Mas eu não… A irmã dele, do meu marido, telefonou a dizer que ele estava muito mal por causa de eu ter ido embora e não sei quê, e eu como tive muita pena, fui…
Entrevistadora: E o seu irmão como é que reagiu depois? Luana: Nunca mais entras na minha casa (choro)».
(Luana, 53 anos)
O fenómeno da violência doméstica não é um drama apenas das vítimas. Ele estende-‐se às suas famílias e pode resultar em processos de desestruturação familiar, em parte, criados pela incapacidade da família ajudar as vítimas, uma vez confrontados com as situações de regresso para o agressor. Parece-‐nos que nestas situações A família procura no afastamento uma forma de se proteger emocionalmente de uma situação que pode manter-‐se durante muitos anos.
Por vezes, a reacção familiar pauta-‐se por uma incapacidade de lidar com a situação ou de confrontar a própria vítima, muitas vezes reflexo das concepções tradicionais de preservação da privacidade do casal. Multiplicaram-‐se os exemplos de famílias que não se encontravam cientes de que devessem intervir. O modelo patriarcal perspectiva o poder do marido/companheiro sem admitir intervenções na esfera doméstica. Esta situação pode ser percepcionada pelas vítimas como falta de apoio para a saída da relação conjugal violenta:
«A minha irmã dizia: “Pois tu és parva e estás com ele, ainda por cima contas-‐me estas coisas e não sei que, e larga-‐o”. Quando discutíamos muita das vezes a minha mãe sabia pelas vizinhas, que as vizinhas depois iam contar à minha mãe por isso é que eu digo… e eu sabia que as minhas vizinhas iam contar e por isso é que eu já disse que a minha mãe sabia, os
meus pais sabiam, mas nunca não, nunca tocaram no assunto, ou nunca perguntaram o porquê é que discutíamos ou prontos, não nunca…»
(Joana, 29 anos)
Como referimos no preâmbulo deste capítulo, o apoio que a família pode conceder, ou não, para a mulher romper, deverá ser analisado à luz das concepções de género perpetuadas pelas famílias, transmitidas de pais para filhos. Nesse sentido, a sociologia adverte para a eficácia da assimilação inter-‐geracional dos papéis de género, para a forma como estes se manifestam, como se produzem e reproduzem e como são essenciais no desenvolvimento do quadro referencial de todos os agentes sociais das concepções da identidade masculina e feminina. A forma como esses estereótipos de arquétipos de género se relacionam como a violência é expressa por Bourdieu quando nos diz que a probabilidade da ocorrência da violência aumenta quanto maior tiver sido a assertividade com que as mulheres assimilaram os papéis de género e os subjacentes mecanismos de submissão (Bourdieu, 1999). Também Lisboa reforça esta ideia referindo que, “No caso da violência doméstica, é frequente que ocorra uma articulação entre os papéis de género com os que estão associados ao desempenho das funções familiares, nomeadamente, o do marido e de esposa. De facto, a violência doméstica pode estar relacionada com os papéis de género que se associam à vida doméstica, mas também às relações de poder que se estruturam no seio da relação conjugal” (Lisboa et al.,2006, p. 133).
De acordo com a reprodução e assimilação familiar dos papéis de género, assentes em fortes desigualdades de poder segundo as quais o homem assume o papel de domínio e controlo do universo familiar, Dias (2010) remete-‐nos para a noção de “doing gender80”, importante porque “nos levou a considerar o modo como certos
80 “Doing Gender", refere-‐se a uma rotina do quotidiano e que em cada prática ou interacção social
estaria presente, sendo inevitável aos indivíduos a representação de valores, atitudes e praticas associadas com o masculino ou com o feminino. O conceito de génenro é definido pelos autores supracitados como «(…) the activity of managing situated conduct in light of normative conceptions of attitudes and activities appropriate for one's sex category. Gender activities emerge from and bolster claims to membership in a sex category» (West e Zimmerman, 1987, p. 127). Assim, o “doing gender” significa «creating differences between girls and boys and women and men, differences that are not natural, essential, or biological. Once the differences have been constructed, they are used to reinforce the "essentialness"of gender» (Idem, ibidem, p. 137). Ao mesmo tempo que se “faz o género” criam-‐se
comportamentos agressivos contribuem para a reprodução social das relações de género (assimétricas), apesar de poderem ser considerados como comportamentos de género (masculino e feminino) supostamente normais ou naturais” (Dias, 2010:226). Estas considerações do foro teórico permitem analisar as situações em que as mulheres vítimas são pressionadas pelas famílias a manterem a sua relação conjugal. O papel social das mulheres continua a assentar na responsabilidade pela manutenção da harmonia familiar o que poderá explicar as pressões efectivas para a manutenção das relações conjugais protagonizadas pelas suas famílias. A ruptura da conjugalidade, quando protagonizada pelas mulheres, ainda não deixou de parte todos os estigmas a ela associados. Por exemplo, o estigma da mulher divorciada ou da mulher que “abandona” o lar e o marido, continua a ter peso na identidade feminina, socializada para ser o principal bastião do cuidar, do afecto, da maternidade, em suma, o bastião da união do lar, ideologia que empurrou a mulher para a casa, como salienta Lupton «Women were represented as possessing the appropriate innate capacities – gentleness, attention to others, empathy, lack of aggression, tenderness, love – for playing this role that men did not have (…) viewed as important to maintaining home as a place of Comfort (…) This tended to position women well within the home context» (1998, p. 110).
A família, apresentando aqui um papel crucial, aconselha muitas vezes as vítimas a manterem a relação ainda que esta seja pautada por um «quotidiano de violência. Os resultados deste trabalho81 apontam precisamente neste sentido: a pressão familiar82 para permanecer na relação conjugal violenta foi referida 92 vezes e em apenas 10 das entrevistas não foi detectada qualquer tipo de pressão familiar para a manutenção da relação conjugal. O que significa que a maioria das entrevistadas encontrou na família mais um obstáculo à ruptura.
práticas sociais que os «membros responsaveis de uma sociedade» cumprem e que ao faze-‐lo estabelecem «fundamental and enduring differences seemingly supported by the dvision of labor into women's and men's work and an often elaborate differentiation of feminine and masculine attitudes and behaviors that are prominent features of social organization» (Idem, Ibidem:128)
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Todos os resultados que se apresentam ao longo deste capítulo, poderão ser consultados no Anexo II (da página 352 à página 355).
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A pressão familiar para a manutenção da conjugalidade, será também abordada quando nos referirmos às razões dadas pelas vítimas para terem mantido o laço conjugal com o agressor.
Mas mais do que uma mera quantificação da pressão familiar para a manutenção, foi necessário perceber se essas famílias seriam as mesmas que transmitiram a estas mulheres visões estereotipadas e tradicionais dos papéis de género. Nesse sentido, encontrou-‐se uma associação entre a variável “Pressão familiar para aguentar a relação conjugal” com a variável “Pais com valores e papéis de género baseados em modelos de poder assimétrico entre homens e mulheres” (𝑅ij=22,983). Este permite-‐nos ultrapassar a barreira das hipóteses teóricas e considerar que, quando as concepções de género das famílias das vítimas assentam nas visões estereotipadas do género, em que ao masculino e feminino cabem atributos e responsabilidades diferentes, as pressões exercidas sobre as mulheres serão sempre para que elas não abandonem o lar, ainda que isso signifique uma perpetuação da violência.
Mas pretendíamos também perceber se a inculcação de valores relacionados com o género foram suficientemente eficazes a ponto de influenciarem as próprias concepções e papéis de género das entrevistadas. Para isso, trabalhámos com a variável que nos dava informação sobre as “Alusões ao cumprimento dos papéis de género tradicionais/referências ao bom desempenho feminino no lar”. O que encontrámos foi uma associação entre a variável acima assinalada e a variável “Pressão familiar para aguentar” (𝑅ij=7,784) e que consideramos comprovar como estes modelos, valores, códigos de conduta e referenciais, relacionados com os papéis sociais reservados ao masculino e ao feminino são (re)produzidos ao longo das trajectórias de vida das mulheres, num processo que se inicia nas suas socializações familiares e que se estende no tempo.
Uma entrevistada fala-‐nos da influência que a visão tradicional dos pais, no que se refere à diferença nos papéis de género, teve na ponderação das suas alternativas. Esta citação permite perceber como essa transmissão influenciou Lua na decisão de continuar a sua relação conjugal violenta:
83 Associação entre “Pressão familiar para aguentar a relação conjugal” e “Pais com valores e papéis de
género baseados em modelos de poder assimétrico entre homens e mulheres” expressa por: χ2(1)=522,403; p<0,001.
84 χ2
(1)=60,036; p<0,001.
«Como eu ia ser mãe e depois acho que também têm aquele pensamento também da aldeia, antigamente não era, uma mãe solteira, ui deus me livre, mesmo a minha avó e as minhas tias ainda têm esse pensamento. Mas eu por acaso também tinha este pensamento eu sempre desde miúda quando me casasse ou juntasse era para toda a vida, agora acho que é também um bocado por aí. (…) Eu acho que aguentei mais porque queria que o meu filho tivesse um pai… Os meus pais já sabiam mas a única pessoa que tocava nesse assunto era a minha irmã».
(Lua, 53 anos)
Repare-‐se como Lua começa por referir que hoje o ideal da conjugalidade e da família já não é igual ao da sua mãe, tias e avó, onde a figura da mãe solteira parece ser persona non grata, não correspondendo pois, ao referencial de mãe/mulher/companheira. No entanto, rapidamente confessa que também o seu ideal da mãe/esposa não era imaginado fora do espaço da conjugalidade. A conjugalidade, quando acontecesse, era para Lua algo para “toda a vida”: um ideal romantizado e idílico da vida em casal, muito mais presente nas mulheres do que nos homens, fruto das socializações de género (Giddens, 1997; Kaufman, 2002).
Muitas vezes, a pressão familiar, para manter a relação conjugal, é fruto da experiência das mães com a violência e das formas que foram encontrando para lidar com essa situação. As mães aconselham as suas filhas transmitindo conselhos, que lhes pareciam adequados para irem superando a violência contra elas exercida. O que as mães tentam assegurar é a correspondência das suas filhas aos padrões da vivência feminina, ainda hoje baseados no que Anne-‐Marie Sohn apelidava de "O estereótipo da mulher, «anjo da casa»" e que se na segunda metade do século XIX se cimentava sobretudo através da «a exaltação da «natureza» feminina e da sacred womanhood, é usado para definir um estatuto inferior. (…) A esfera pública é reservada ao homem, o home, sweet home à mulher». (Sohn,1995, p. 117).
Vejamos o que nos conta Magda quando é inquirida sobre as características que melhor assentam à mulher/esposa e que no seu caso foram transmitidos pela mãe:
«Entrevistadora-‐ Que ideal, que representação do que é ser mulher ou ser mãe, ou ser esposa, é que a sua mãe lhe passou?
Magda-‐ Olhe… não foram, não foi o melhor que ela passou e aquilo que eu presenciei também nela, na vida dela, acho que, acho que eu estou a repetir um bocado, a minha vida é um bocado a repetição da vida dela…Ela também não, não foi bem tratada pelo meu pai. A minha mãe era naquele, falava muito “ah, temos que aguentar, é assim e o casamento é para toda a vida”, e eu interiorizei isso um bocado… (…)…Olhe a minha família também dizia, muitas vezes dizia-‐me “então, cada um tem a sua cruz, o teu já sabes!”»
(Magda, 52 anos)
Nalguns casos, a oposição das famílias era tão forte que mesmo após a separação tiveram ainda de lidar com o afastamento e crítica da família por discordarem da ruptura. Algumas famílias dificilmente aceitaram a ruptura apesar de saberem dos contextos de violência exercida sobre a mulher. Raquel foi questionada sobre o papel que a sua mãe lhe passou sobre o que significava ser mulher e conta como a sua mãe representava as relações entre homens e mulheres e como a sua família ficou revoltada com a sua decisão:
Raquel: «Uma pessoa tem que obedecer ao marido…para a minha mãe foi um choque eu, eu sair, eu tive que sair sem me despedir da minha mãe, do meu pai, da minha filha, nem ninguém. (…) Lidaram muito mal, muito mal, tanto que ainda chegaram a ir à APAV saber onde é que eu estava, onde é que eu não estava isso tudo. Liguei para eles pelo natal e a minha mãe disse: “Ligaste-‐me para dar os parabéns e então, estás contente pelo que fizeste?”…Um bocado difícil...não sei…mas tento…pronto, tento não pensar muito nisso não é? gosto muito deles isso gosto não é mas…tento…sinto-‐me magoada…»
Pensamos que os resultados produzidos através da análise das entrevistas realizadas nos permitiram acrescentar conhecimento novo sobre as dinâmicas relacionais entre a família e as mulheres vítimas bem como a sua importância no contexto da manutenção ou ruptura das relações. Essa dinâmica caracteriza-‐se pela sua complexidade e necessita, sem dúvida, de futuros aprofundamentos. Se, por um lado, temos lógicas de apoio e de “resgate” da violência a que estas mulheres estão sujeitas, por outro, temos situações em que a própria família, por via da inculcação dos papéis de género e consequentes mecanismos de poder a estes subjacentes, influenciam a vítima a manter a sua relação conjugal violenta, contribuindo para o que, por demais vezes, são longas trajectórias de vitimação.
5.2. Os Filhos: as vítimas esquecidas
Um relatório das Nações Unidas da responsabilidade da Secratary-‐ General’s study on Violence against Childrean, de 2006, descreve os filhos como “as vítimas esquecidas da violência praticada dentro de casa” (UN, 2006) ao mesmo tempo que refere que cerca de 275 milhões de crianças em todo o mundo estão expostas a situações de violência nas suas casas e no seio das suas famílias.
Nos Estados-‐Unidos, por exemplo, o último estudo sobre a exposição de crianças à violência85 perpetrada em casa pelos pais86, retira as seguintes conclusões:
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A World Health Organization define as tipologias de mau-‐trato contra as crianças da seguinte forma: «All forms of physical and/or emotional ill-‐treatment, sexual abuse, neglect or negligent treatment or commercial or other exploitation, resulting in actual or potential harm to the child’s health, survival, development or dignity in the context of a relationship of responsibility, trust or power. (…) The perpetrators of child maltreatment may be: parents and other family members; caregivers; friends; acquaintances; strangers; others in authority – such as teachers, soldiers, police officers and clergy; employers; health care workers; other children. A mesma organização descreve que a violência praticada contra as crianças no espaço doméstico, o que inclui a presença durante qualquer tipo de abuso físico ou psicológico de um dos pais sobre o outro é, ainda, a forma mais oculta da violência contra as crianças dado que se passa na intimidade familiar. (WHO, 2006, p. 7)
86 De referir, a este propósito que as Nações Unidas, através da Convention on the Rights of the Child
(UNCRC) em 1989, concede às crianças o direito a serem protegidas de negligencia e maus-‐tractos perpetrados pelos pais (Artº 19). O artigo 3º da referida convenção destaca a importância de accionar todos os meios legais, em casos de violência doméstica entre os pais, para que a intervenção seja imediata e que se tenha em consideração os melhores interesses da criança.