Capítulo II. Estratégia de investigação e instrumentos metodológicos 47
2.3. Tratamento e análise dos dados 54
2.3.1. Aspectos metodológicos relativos aos Indicadores de Expressão
Para além do discurso manifesto e verbalizado pelas entrevistadas, quisemos com este trabalho, interpretar os sinais emocionais que emergiam nas mulheres vítimas em situação de entrevista. Sendo que a capacidade dos indivíduos em reconhecer as emoções é limitada, aos cientistas sociais cabe a tarefa de tentar analisar o fenómeno através de tantos ângulos e abordagens quanto possível, tantos quantos os que se revelem importantes para a compreensão de determinado fenómeno social. Desta forma, a demanda por respostas aos objectivos deste trabalho implicou uma análise das emoções sociais, nestes contextos, de duas formas: a primeira refere-‐se às emoções que são tornadas conscientes pelas mulheres vítimas, ainda que não se inscrevam em modelos explicativos que sejam evidentes para elas, foram experienciadas, vividas e, posteriormente, admitidas em situação de desconstrução narrativa durante as entrevistas. A outra abordagem alicerçou-‐se numa estratégia de reconhecimento da emoção vergonha, através de alguns Indicadores de Expressão Emocional (I.E.E.) que pudessem emergir durante as entrevistas. Esta detecção fez-‐se ao nível de indicadores corporais, gestuais e faciais, demonstrados pelas mulheres em momentos específicos das entrevistas.
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Toda a produção e análise estatística produzida em SPSS poderão ser consultadas em anexo que acompanhará a presente tese.
Assim, a recolha de informação durante as entrevistas, fez-‐se também ao nível dos indicadores de expressão emocional (corporal, gestual e paralinguísticos). A metodologia desenhada para proceder a este registo teve de ser agilizada para que a entrevistadora se pudesse concentrar em dirigir a entrevista, por um lado, e anotar o momento específico da entrevista em que foi detectado determinado indicador de expressão emocional, por outro. Coube igualmente à entrevistadora a tarefa de anotar qual o indicador de expressão revelado. A demonstração de um determinado indicador de expressão emocional, era registado34 num diário de campo35 com indicação do símbolo a que correspondia cada um desses I.E.E., bem como o exacto momento (minuto e segundo) em que ele se manifestou.
De acordo com os objectivos definidos, propusemo-‐nos identificar e analisar as emoções sociais que se evidenciam nos contextos das relações conjugais violentas, particularmente a vergonha e a culpa. Já anteriormente nos interrogamos sobre a possibilidade destas emoções sociais serem condicionadores da acção, quer elas sejam conscientemente admitidas quer sejam exteriorizadas de uma forma menos evidente, por vezes até negligenciados pelas próprias entrevistadas. Cada vez mais, os investigadores parecem apostar na leitura das posturas corporais e gestuais dos seus entrevistados o que revela a crescente necessidade e a possibilidade de retirar informação pertinente. Tal necessidade parte do reconhecimento de que a experiencia das emoções nem sempre é consciente mesmo quando somos nós a experienciar as emoções. Nesse sentido Ekman, remete-‐nos para os processos de emissão de indicadores emocionais que muitas vezes não se tornam conscientes: “The initial translation of an expression into some meaning is likely to be so immediate that we are not aware of the process we go through” (Ekman, 1997, p.334).
Sabemos que as emoções ou alguns estados emocionais podem facilmente não ser apreendidos pelos outros actores sociais em momentos específicos de interacção.
34 A este propósito é importante referir que foram testadas algumas técnicas diferentes para assinalar
os momentos específicos em que as entrevistadas emitiam estes indicadores de expressão emocional. Uma das técnicas testadas foi a produção de um sinal sonoro, para sinalizar esse indicador. Seguidamente, a investigadora teria apenas de anotar no diário de campo o sinal correspondente ao indicador revelado. No entanto rapidamente se percebeu que a emissão desse sinal sonoro distraia as entrevistadas, comprometendo a narrativa do discurso.
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Para que a investigadora não tivesse que perder muito tempo com a sinalização do Indicador de expressão emocional, fez-‐se corresponder, a todos eles, um símbolo específico de rápida anotação.
Por isso mesmo, Damásio chama-‐nos a atenção para a diferença entre a experiência emocional no corpo e na mente e a consequente diferenciação entre a emoção e o sentimento: “As emoções desenrolam-‐se no teatro do corpo. Os sentimentos no teatro da mente (…) as emoções e as várias reacções que as constituem fazem parte dos mecanismos básicos de regulação da vida” (2003, p.44).
Segundo Damásio, uma emoção propriamente dita é ”uma colecção de respostas químicas e neurais que formam um padrão distinto (…) as respostas são produzidas quando o cérebro normal detecta um estímulo-‐emocional-‐competente, o objecto ou acontecimento cuja presença real ou relembrada desencadeia a emoção. As respostas são automáticas” (Damásio, 2003, p.71). Mas o autor não se resigna ao estudo da emoção apenas através dos processos cerebrais. A passagem da emoção, apenas como processo neurológico, para uma experiência cultural e social (ou seja, da emoção strictu sensu para as emoções sociais) é colocada pelo autor da seguinte forma: “Com efeito, uma das finalidades principais da nossa educação é interpor uma etapa de avaliação não automática entre os objectos que podem causar emoções e respostas emocionais. Essa modulação é uma tentativa de acomodar as nossas respostas emocionais aos ditames da cultura” (Idem, Ibidem).
Mesmo antes de Damásio, também Goffman (1993) nos chamava a atenção para o processo comunicativo e de interacção entre os actores sociais, focando a sua análise nas motivações estratégicas dos indivíduos para manipular gestos bem como todas as suas formas de apresentação ao outro (discurso, disposição corporal e facial, etc.), com o propósito de respeitarem o guião cultural partilhado. Mas nem sempre a comunidade sociológica considerou importante ou significativa a análise da experiencia subjectiva dos indivíduos em relação à experiência emocional vivida em situações de interacção com outros. Sobretudo a análise das emoções foi por demais considerada como demasiado vaga ou carregada de demasiadas variáveis complexas para ser capaz de acrescentar conhecimento à realidade social (Niedenthal, 2007). Talvez por isso a sociologia tenha, até recentemente, afastado as emoções do seu perímetro de análise. Hoje sabemos que a capacidade de interpretação de descodificação das expressões emocionais e corporais dos outros é uma ferramenta capital na interacção quotidiana com os outros actores sociais (Ekman, 1997; Russell, 2003; Navarro, 2010; Turchet, 2011).
Consciente do desafio que esta metodologia representa, uma primeira opção metodológica seria encarar as mulheres entrevistadas como seres sociais mas também biológicos. O biológico e o social não são entidades separadas e a forma como os actores sociais agem, as emoções e sentimentos serão demonstráveis através de reacções ou gestos, muitas vezes inconscientes, mas reflexo de um processo interior biológico que, extravasando estes sistemas, termina com uma actividade ou demonstração corporal, gestual ou fisiológica. De acordo com Tomkins, a forma como as emoções são experienciadas ao nível biológico e cerebral explica a necessidade de se tentar ir mais além na detecção destes mesmos indicadores uma vez que a activação da experiencia emocional produz panóplia de diferentes respostas e manifestações nos indivíduos tais como: «facial and vocal expression, changes in peripheral physiology, subjective experience, and instrumental action. Because they have a single cause, these components tightly cohere in time and are intercorrelated in intensity” (Russell et al., 2003, p.331).
Tentámos uma abordagem que nos permitisse captar informações sobre o contexto emocional destas mulheres e a ocorrência de determinadas emoções in loco. Esta particularidade metodológica assume a necessidade e considerarmos importante analisar outras formas de comunicação entre actores sociais. Este trabalho utiliza uma metodologia que cremos ser aquela que poderá permitir a produção de novo e mais aprofundado conhecimento no domínio da produção científica sociológica. A sua base é decorrente da já utilizada e testada por Scheff & Retzinger36 (1991), no que se refere à detecção de indicadores de expressão emocional, particularmente para a vergonha37. O quadro 7 assinala os indicadores de expressão emocional, que se subdividem em indicadores paralinguísticos, gestos visuais e expressões corporais, seleccionados e detectados em contexto de entrevista.
36Uma explicação mais aprofundada sobre esta metodologia, na sua forma original, será realizada no
capítulo IX.
37 Por rigor científico devemos esclarecer que os indicadores de expressão emocional utilizados nesta
pesquisa se referem explicitamente, e também de acordo com a metodologia testada pelos autores enunciado, à vergonha. No entanto, é importante referir que Scheff e Retzinger consideram que a culpa está directamente relacionada com a vergonha: «Guilt is a shame-‐anger tranformation where anger is directed to the self» (2001, p.xiii). Neste sentido, poderá haver uma aproximação entre as duas emoções sociais. No entanto, exploraremos mais à frente as divergências e similitudes entre as duas emoções bem como debateremos a validade destes I.E.E. para ambas as emoções.
Quadro 7 -‐ Indicadores de expressão emocional detectados em situação de entrevista
Indicadores de expressão emocional
Gestos e expressão corporal
Baixar a cabeça
Afastar-‐se da entrevistadora Tapar cara/boca/olhos Corar
Fechar os olhos prolongadamente Desviar olhar
Esfregar mãos/esconde-‐las no colo Pressionar/morder a boca e/ou lábios
Indicadores paralinguísticos
Pausas longas (indicadas na transcrição) Choro/comoção (voz tremida)
Risos forçados Suspiros
Discurso desorganizado
A construção das bases de dados dos I.E.E. foi semelhante à seguida para a Análise de Conteúdo. Foi construída uma primeira base de dados em Excel que continha todos os parágrafos (8688). Desses parágrafos, apenas foram considerados pertinentes os que continham algum dos detectados I.E.E. anteriormente definidos. Desta forma, no seu formato final, esta base contém 3132 parágrafos nos quais as mulheres manifestaram pelo menos um dos I.E.E. referidos38 no quadro 7.
Esta base de dados contém três tipos de informação importante para perceber o contexto da manifestação dos I.E.E: os parágrafos ou frases nos quais se manifestaram os indicadores emocionais; o tempo preciso em que foram detectados; qual o(s) indicador que ocorreu e as temáticas sobre as quais as entrevistadas falavam aquando dessa manifestação39. Desta forma, foi-‐nos permitido fazer uma análise quantitativa que permitirá salientar os temas específicos em que os I.E.E. foram emitidos e a sua interpretação.
38 As entrevistadas poderiam exibir mais do que um I.E.E. ao mesmo tempo, por exemplo, baixar a cabeça e tapar a
boca/cara/olhos. Nesses casos ambos os indicadores eram assinalados.
39 Estas novas temáticas são, em parte, decorrentes das dimensões traçadas para a Análise de Conteúdo, como será
perceptível pela comparação do quadro 6 e do quadro 8. A criação deste novo grupo de temáticas nasceu sobretudo da necessidade de se produzirem resultados estatísticos para compreender a existência de associações estatísticas entre os determinados I.E.E. e as temáticas a ser abordadas no momento. Este método permitiu-‐nos perceber em que temáticas as mulheres mais sentiam, ou demonstravam sentir, vergonha ou embaraço em falar ou evitavam falar.
O quadro 8 indica as temáticas que foram criadas e que abrangem todos os parágrafos/frases sobre os quais os indicadores de expressão emocional incidiram.
Quadro 8 -‐ Temáticas abordadas no momento de detecção dos Indicadores de expressão emocional
O trabalho que aqui se apresenta pretendeu desconstruir e analisar de forma exaustiva toda a informação recolhida no terreno. No caso do trabalho de campo para a realização das entrevistas, todas as palavras, expressões verbais, corporais ou faciais foram alvo de uma leitura e análise quer permitisse expor algumas das causas da manutenção das relações conjugais violentas.
Estamos conscientes do desafio da aplicação desta metodologia. Sabemos que representa uma forma pouco habitual de recolha de informação em sociologia. Mas é a invenção de novas metodologias que tem permitido às Ciências Sociais avançar com explicações para os fenómenos sociais. Não temos a pretensão de ser pioneiros em termos metodológicos, mas apenas de colocar a “primeira pedra” da fundação de novas formas de recolher informação do mundo social onde vivemos.
40 Entendemos dinâmicas como regularidades, padrões ou alterações de comportamento e os múltiplos
aspectos relacionais entre os actores sociais envolvidos nos contextos da violência no espaço da casa-‐ família. Tal como as dinâmicas sociais, o termo com a acepção que procuramos atribuir-‐lhe, refere-‐se ao comportamento dos actores sociais envolvidos, directa ou indirectamente, nos cenários da violência conjugal.
Temáticas abordadas no momento de detecção dos Indicadores de expressão emocional
Descrição das situações de violência
Dinâmicas40 familiares e/ou amigos durante a relação conjugal violenta Os filhos nos meandros da violência
Problemas saúde psicológica/física como consequência Alienação emocional
Vergonha e culpa Medo Outras emoções O Presente e o futuro O momento de ruptura Razões da manutenção
Capítulo III. Contextos e dinâmicas da violência de género
Com o presente capítulo propomo-‐nos analisar os aspectos que mais se destacam nas dinâmicas da violência de género. Começaremos por analisar os tipos de violência exercidos sobre as mulheres vítimas, ao mesmo tempo que demonstraremos como nenhum tipo de violência é praticada de forma isolada das outras. Interrogar-‐nos-‐ emos em que moldes os três tipos de violência se assemelham e distinguem ao mesmo tempo que nos debruçaremos sobre as consequências da prática destes tipos de violência. Nesse sentido, intitulamos cada ponto do presente capítulo com a característica que melhor qualifica o exercício de cada um dos tipos de violência, de acordo com a desconstrução das narrativas individuais de cada uma das entrevistadas. Em cada um dos em análise, apresentaremos dados estatísticos que identificarão alguns dos indicadores de análise com o qual o exercício da violência física, sexual e psicológica se associam. Com este processo esperamos aprofundar conhecimento sobre a teia complexa dos factores que contribuem para a perpetuação da violência contra as mulheres nos contextos das relações conjugais.
3.1. A tríade da violência de género: sobre a violência física, sexual e psicológica
A já referida Declaração da Eliminação da Violência contra as Mulheres de 1993, define a Violência contra as mulheres como qualquer acto do qual resulte dano ou sofrimento de cariz físico, psicológico ou sexual41. Não se encontra no Código Penal
41 A propósito dos três tipos de violência referenciados em termos internacionais, Claudia Garcia
Moreno refere que a violência contra as mulheres pode ser física, psicológica ou sexual mas não se limita a eles: «It can include, although it is not limited to, physical, sexual and psychological violence, including battering, sexual abuse, dowry-‐related violence, rape including marital rape, female genital mutilation, sexual harassment and intimidation at work, trafficking and forced prostitution and violence related to exploitation» (García-‐Moreno & Riecher-‐Rössler, 2013, p. 2). A autora alerta, assim, para que o espectro de actos de violência relacionada com cada um dos seus tipos, pode ser muito mais alargado. Blanchfield e Margesson, numa obra de 2009, chamam a atenção para outros tipos de violência contra as mulheres menos falados porque ocorrem em regiões do globo onde a violência contra as mulheres é ainda mais naturalizada e são eles: «Honor killings, for example, occur when women are stoned, burned, or beaten to death, often by their own family members, in order to preserve the family honor. The practice is most common in Middle Eastern and South Asian countries, though it has been reported in other parts of the world, such as Latin America and Africa. Dowry-‐related violence, where victims might