Capítulo III. Contextos e dinâmicas da violência de género 63
3.3. A violência naturalizada: contornos da violência física 77
1998, p.30).
3.3. A violência naturalizada: contornos da violência física
A violência física não foi o tipo de violência mais referida na Análise de Conteúdo, contando apenas com 439 referências, de entre os 4148 parágrafos válidos. No entanto ela perpassou todas as mulheres entrevistadas para este trabalho.
A violência física é vivida pelos actores sociais, pela primeira vez, no seio da família e praticada por aqueles que se encontram unidos por laços de sangue e amor, adquirindo desses laços o seu caracter universal e comum. A sua prática é usada, por exemplo, como forma de disciplinar as crianças, cimentando nelas a ideia de que algumas situações justificam o uso da violência física. Mas o reflexo que essa naturalização pode ter no desenvolvimento da sua personalidade individual é preocupante, dado que tem a potencialidade para se tornar numa dimensão de interacção legítima e generalizável em muitas das relações sociais e/ou familiares: pais/filhos; marido/mulher. Experiências precoces com o abuso físico parecem abrir caminho para a legitimidade normativa do uso da violência no cenário intrafamiliar e por isso «the family teaches approval of the violence» (Gelles, 1979, p.553).
Este é também o tipo de violência mais facilmente identificada e identificável, levando alguns autores (Stark, 2007, Dobash e Dobash, 1991) a criticar o excessivo protagonismo conferido ao abuso físico nos primeiros estudos relacionados com a temática e como esse excesso terá, inclusivamente, prejudicado os avanços conceptuais na temática, dado que limitava a efectivação de uma abordagem e conceptualização mais abrangente52.
Assistimos hoje a uma mudança de abordagem, o que significa que, para além da violência física, a face mais visível e de mais fácil detecção da violência de género, a violência sexual (cujas dificuldades de percepção e detecção foram já abordadas) e a
52 Gelles, por exemplo, define, no seu primeiro estudo sobre a violência nas famílias da América do
Norte, há 15 anos atrás, a violência como estritamente relacionada com o abuso físico: «an act carried out with the intention, or perceived intention, of causing physical pain From Spankings to Murder: Defining and Studying Intimate Violence or injury to another person. The physical pain could range from the slight pain of a slap to murder (1988, p.55).
violência psicológica (cujos actos se poderão perder na própria percepção das vítimas em os considerar violência ou não), são hoje alvo de igual atenção na análise e compreensão da violência contra as mulheres.
No contexto português, o último Inquérito Nacional à violência de género (2007) que abarca 62 actos reflecte precisamente esta multidimensionalidade da violência de género: apenas 1553 actos se referem à sua dimensão física e 12 à sexual. A violência psicológica está representada num número superior de actos (26 no total)54. Nesse sentido, ao mesmo tempo que os autores salientam o exercício e a expressão da violência física, pretendiam encontrar ferramentas conceptuais para uma melhor definição da violência psicológica e sexual, até então em Portugal as menos exploradas tendo em conta todas as possíveis formas em que poderão manifestar-‐se.
De acordo com os dados que obtivemos para a construção do presente estudo, e para além da já discutida violência sexual, a presença da violência física, nos discursos, confirma a respectiva importância. A exposição destas mulheres a abusos físicos e corporais é frequente, de resto foi a descrição deste tipo de violência que mais motivaram choro ou comoção por parte das entrevistadas, tendo muitas vezes ocorrido interrupções nas entrevistas. Estes contornos revelam a capacidade da violência física se perpetuar no tempo, com reflexos no sofrimento das vítimas, mesmo em situação de afastamento físico do agressor.
De facto a descrição de alguns dos actos de violência física, apontam para a sua gravidade e, sobretudo, para a sua capacidade de potenciar consequências dolosas e de longa duração para a saúde das vítimas.
Filipa, por exemplo, descreve-‐nos um episódio particularmente dramático de violência física. Nele refere como o companheiro a agredia fisicamente na cabeça, onde já tinha sofrido lesões graves em virtude de anteriores agressões. Perceptíveis são, também, as consequências para a saúde que ultrapassam o tempo da relação conjugal:
53 Os actos de violência física contemplados são: puxões de cabelos; agarraram, torceram-‐lhe o braço,
deram-‐lhe bofetadas, murros, pontapés, arranhões/ beliscões ou mordidelas; cabeçadas; socos no peito; queimaduras e/ou cortes; atirar objectos; empurrões e/ou mandar pelas escadas abaixo; sovas; bater com a cabeça nas paredes e/ou chão; apertar o pescoço; trancada em casa ou proibida de sair ou contactar com alguém; rapto; tentativas de homicídio ou actos que tenham conduzido a tentativas de suicídio.
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Filipa: «Ele começou a apanhar-‐me, a apanhar-‐me o ponto fraco que era, dava-‐me um murro na cabeça e eu como sou muito frágil da cabeça, fico logo estendida no chão e ele aproveitava-‐se quando eu estava no chão e dava-‐me pontapés desde a cabeça até aos pés… e uma coisa que eu digo é graças a ele que eu tenho uma data de problemas de saúde…graças a ele…»
(Filipa, 22 anos)
O discurso de Filipa alerta-‐nos para consequências no domínio da saúde das mulheres, tanto mais que a violência física é uma presença constante no quotidiano destas mulheres. A frequência e gravidade de muitas destas agressões projectam um futuro com problemas de saúde física ou psicológica, muitas vezes para toda a vida.
Mesmo quando são necessários cuidados médicos, as lesões sofridas são, muitas vezes, negligenciadas pelas vítimas, durante o período que permanecem com o agressor. A história de Maria corresponde a um dos casos que só após a separação é que conseguiu tratar dos graves problemas de saúde, como resultado de 8 anos de violência:
Maria: «Depois do primeiro ano até que saí de casa foi uma tortura constante… a minha saúde estava a ficar pior, com aquela situação ficou muito pior, ele batia-‐me, partiu-‐me a anca e tive que pôr uma prótese na anca, mas muito tempo depois…depois de sair.»
(Maria I, 48 anos)
Defendemos que é o exercício dos três tipos de violência em simultâneo que contribui para a debilidade crescente da saúde física e psicológica das mulheres, algo que também podemos detectar nos discursos das entrevistadas. A simultaneidade com que a violência física e psicológica aparece nos discursos, permite-‐nos perceber
que não é pertinente circunscrever as consequências físicas, como apenas resultado da violência física. O depoimento que se segue é ilustrativo dessa imbricação:
Maria III: «Física, psicológica e física também muito grave…como entrou uma cabeçada, sangrei ao máximo, foi uma torneira de sangue, só não desfaleci ali porque não tive que desfalecer porque isto estancou, uma cabeçada mesmo directamente aqui mesmo……e tive um machado à cabeça, um cutelo...a feridas do corpo também ficam na minha cabeça»
(Maria III, 51 anos)
Cingindo-‐nos, por agora, ao exercício da violência física e suas consequências, é pertinente referenciar o estudo de (Lisboa, et a.l, 2006) que, incidindo sobre uma amostra estatisticamente representativa da população portuguesa, assinala que as mulheres vítimas de violência tinham uma maior probabilidade, (em percentagens bem superiores) de sofrer de inúmeros problemas de saúde física55. Uma outra conclusão importante prende-‐se com a inibição das vítimas em recorrer aos estabelecimentos de saúde, mesmo quando estamos perante agressões físicas graves. Os autores concluem que apenas 21% das vítimas alegou ter recorrido a estabelecimentos de saúde, em virtude das agressões. Que razões condicionarão as restantes? Mesmo quando as agressões resultam em lesões graves, a inibição em faze-‐lo permanece.
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Os problemas de saúde física indicados no estudo são: equimoses/hematomas (82% mais provável acontecer nas vítimas); feridas (100% + provável); coma (94% + provável); hemorragias (95% + provável); intoxicações (79% + provável); lesões genitais (73% + provável); obesidade (57% + provável). O rol de problemas adensa-‐se com questões como asma, queimaduras, palpitações, tremores, colite, cefaleias, vómitos, dermatite, úlceras, dificuldades respiratórias, hipertensão, etc., com percentagens entre os 46% e os 36%, respectivamente. Estes dados são coincidentes com outros realizados nos Estados Unidos da América, que concluem que as vítimas apresentam níveis mais elevados de dores crónicas; desfiguramento permanente; incapacidade física (Campbell, 1998). Mas, ao contrário do estudo português, o Norte-‐Americano permite concluir que «domestic violence is a major reason for both injury and noninjury visits to emergency departments, and also shows that abused women are 6–8 times more likely to use health services than non-‐abused women (Heitmeyer e Hagan, 2005, p. 743).
Por exemplo, Catarina conta-‐nos que como resultado de agressões graves, ficou com graves problemas de visão, antecedidos por vários dias sem ver. No entanto, Catarina não recorreu a nenhum hospital ou centro de saúde para ser tratada:
Catarina: «(…) passei muita coisa, passei, ele…uma vez …apertou-‐me o pescoço com o cinto até eu desmaiar, tapou-‐me…actuou-‐me as mãos atrás e tapou-‐me com um pano a boca e o nariz para eu não conseguir respirar… queria cortar-‐me a mão, cortou-‐me primeiro a pele aqui só com a faca, quando viu que não podia cortar os dedos com a faca foi buscar um machado…tive a cara assim…não conseguia ver nada nada duas semanas, ia à casa de banho só pelas paredes, mas nunca fiz queixa, nunca nunca… batia-‐me nas costas, eu cai-‐a, levantava-‐me batia outra vez…depois apanhou um pau, ele partiu aquele pau nas minhas costas e mesmo assim não acabava…»
(Catarina, 29 anos)
Gelles e Straus (1982) tentaram explicar porque é que as mulheres vítimas de violência negligenciam as lesões graves que sofrem e nesse sentido colocam como hipótese que a naturalização da violência física no seio familiar explicará, em parte, a menorização das lesões sofridas nesse contexto. As representações sociais de alguns actos de violência como normais, tal como o exemplo dos castigos corporais aplicados às crianças, reforçam essa naturalização da violência física.
Mas como vimos, quando nos referimos ao último Inquérito Nacional de 2007, também em Portugal as mulheres vítimas menorizam as lesões sofridas. Tal como a ordem social que legítima o poder simbólico da dominação masculina como algo aceitável ou normal, também a violência física poderá depender das representações sociais partilhadas que a naturalizam. Mas onde começar a procurar explicações para essa naturalização da violência física no contexto nacional? Já anteriormente, expusemos a tolerância que o regime do Estado Novo, demonstrava para a imposição de alguns castigos físicos perpetrados pelos “chefes de família” às mulheres e/ou crianças. É possível que a representação social (produzidos e reproduzidos de geração
em geração até aos nosso dias) de alguns actos usados durante o regime do Estado Novo como pequenas “correcções” tenha permitido que ainda hoje não sejam consensualmente encarados como violentos56.
Truilda, uma vítima de 45 anos, foi questionada sobre a atenção que tinha dado às lesões físicas que tinha sofrido em resultado das agressões. O seu discurso permite perceber essa naturalização da violência física sofrida que é inclusive desvalorizada. As lesões que mais preocupavam esta entrevistada eram as que deixavam marcas visíveis aos outros.
Entrevistadora: «E em agressões mais graves a senhora ficou com lesões, teve problemas de saúde, precisou de ir ao hospital?
Truilda: «Não, não. Só uma vez é que ele me deu um murro que fez um pequeno hematoma no olho, mas não cheguei a ir ao hospital. Mas também não saí de casa para as pessoas não verem. Agora tirando isso as agressões eram puxões de cabelo, umas bolachadas, uns pontapés, mas nada de muito grave, nunca fui ao hospital, nem nunca pedi ajuda a ninguém.»
(Truilda, 45 anos)
O discurso de Ana, ajuda a compreender como a vergonha impede as mulheres de recorrerem a estabelecimentos de saúde ou outros. Esta entrevistada, contava-‐nos que acompanhava o filho ao centro de saúde uma vez que ele era acompanhado por uma psicóloga. Quando a psicóloga, percebendo que ela era vítima de violência
56 A obra de 1878 de Cobbe (Apud, Stark, 2007) dá-‐nos o exemplo da Inglaterra do século XIX onde o
abuso físico à mulher era natural, tal como o era em Portugal no regime de Salazar. Esta violência era entendida como necessária para corrigir a mulher nas suas acções menos apropriadas: «Violence against wives was rooted in the mutually reinforcing systems of sexual inequality and gender stereotypes. Few men who beat women were held accountable, regardless of circumstance. But she drew on court cases and anecdotal information to show how differences in class circumstances elicited different types of abusive behavior. Men in “respectable” drawing rooms could depend on broadly defined gender norms to regulate a wife’s behavior and so needed only an occasional “blow or two” to exact obedience» (Stark, 2007, p. 187). Este exemplo permite-‐nos perceber o quão atrás no tempo, poderíamos recuar e encontrar múltiplos exemplos que nos apontam para a normalização do exercício da violência do homem contra a mulher, bem como para a construção dos estereótipos de género. Estas reflecções remetem para um processo histórico e cultural de séculos.
doméstica, passou a solicitar a sua presença durante as sessões da criança, confessou que sentia vergonha. De acordo com a sua percepção, o que mais a incomodou foi a antecipação do que achava que as outras mães poderiam pensar sobre ela:
«Porque ele batia-‐me e dizia-‐me eu nunca te bati, eu nunca te bati porque eu nunca te fiz sangue, eu nunca te deixei marcada. Um dia fui levar o meu filho à clínica para a psicóloga e a médica a psicóloga mandava sair o João e mandava falar com a mãe porque sabia que a mãe tinha mais problemas que o filho e a mãe depois ficava com vergonha de vir cá para fora e ter que olhar para as outras mães e afinal, para quem é que é a consulta?! O que é que se passa aqui?»
(Ana, 27 anos)
Mesmo quando as mulheres recorriam ao centro de saúde, a vergonha de contar a situação e pedir ajuda, torna-‐se num impedimento para denunciar e pedir ajuda. Raquel, sem se referir explicitamente à vergonha, deixa perceber como esta emoção a impedia de contar que era vítima e pedir apoio para sair de casa:
Raquel: «No centro de saúde de onde eu estava pronto, muitas vezes eu chorava mas nunca explicava a situação toda porque, pronto, é um meio pequeno, tudo se conhece»
(Raquel, 41 anos)
Apesar de nenhum tipo de violência funcionar isoladamente, como já vimos. A violência física deixa marcas que perduram no tempo e apresenta inúmeros custos individuais e societais. Parece ser então necessário actuar ao nível das mentalidades e representações sociais partilhadas a fim de erradicar a naturalização da violência física no seio das famílias, que parecem ser os principais percursores e perpetuadores deste tipo de violência. Esta continuada naturalização da violência física poderá explicar, em parte, porque é que as marcas da violência psicológica merecem mais destaque por parte das entrevistadas. Será um dos vértices a explorar no próximo ponto deste trabalho.
3.4. A violência mais destrutiva: contornos da violência psicológica
O conhecimento já produzido na área da violência de género há muito que nos alerta para as consequências da violência psicológica exercida contra as mulheres (Gelles e Straus, 1988; Dobash e Dobash, 1981, 1985,1987, 1992), algo que estudos mais recentes reforçam (Stark 2007; Heitmeyer e Hagan, 2005; Walker 2009; Campbel 2002; Garcia Moreno 2005; Lisboa at al., 2006, 2007).
Talvez o primeiro estudo que maior importância conferiu a este tipo de violência tenha sido o de Gelles e Straus (1988). Interrogavam-‐se a propósito da facilidade em definir o abuso físico e sexual mas da dificuldade em definir o abuso psicológico, chegando mesmo a designa-‐lo como a forma de violência mais escondida e insidiosa. Na senda deste argumento, os autores dizem que não é possível afirmar de um modo fidedigno a verdadeira dimensão do abuso psicológico no seio das famílias e entre cônjuges, mas que este tipo de violência quase sempre acompanha o exercício da dominação física e o abuso. Os autores afirmam que não existem, em parte nenhuma do mundo, menos vítimas de abuso psicológico do que físico e na tentativa de encontrar explicações para o fraco relevo conferido ao abuso psicológico remetem-‐ nos, à semelhança do que fizemos para a violência física, para o domínio das representações sociais para a naturalização de algumas formas de violência no seio da família: «We suspect that one reason so little research on emotional abuse has been conducted is that so many of us are guilty of occasional or even frequent emotional attacks on loved ones that the behavior is too close and too common to allow for objective research» (Idem, 1988, p.68).
Tendo estas considerações em conta, com este trabalho, tentamos aprofundar os contornos da violência psicológica, também por estarmos cientes da potencial menor capacidade dos intervenientes para o seu reconhecimento. Tentamos, igualmente, estar atentos às formas de abuso psicológico que muitas vezes têm uma conotação social positiva, como por exemplo o ciúme. Ainda hoje a sabedoria popular nos lembra que «Não há rosa sem espinhos, nem amores sem ciúmes», o que tende a naturalizar os ciúmes.
Tal com já referimos, os resultados do último Inquérito Nacional à violência de Género confirmam a importância deste tipo de violência uma vez que foi a que mais se