Capítulo VI. Da manutenção à ruptura da conjugalidade 155
6.1. Os discursos sobre a manutenção das relações conjugais violentas 155
6.1.2. Esperança que algo mude/gostava do agressor 163
Anália Torres refere-‐se a uma das formas de conjugalidade, em particular ao casamento, da seguinte forma: «Casar é brincar aos Deuses e jogar aos dados (…) Brincar aos Deuses porque amamos e escolhemos uma relação, temos o poder de decidir, de construir, mas também de destruir (…) Jogar aos dados, pois. Dizer que se quer estar com alguém para sempre, cada vez mais parece um jogo comprometedor mas arriscado» (1996, p. 32). No caso das conjugalidades em análise, a esperança que a mulher cria de sair vencedora desse jogo, parece ser o critério que justifica as inúmeras oportunidades dadas para que o agressor se retracte dos seus modos violentos. O laço emocional da mulher ao agressor é, por isso, forte e o adiamento da
decisão da ruptura prende-‐se com essa ligação afectiva que a prende à relação. O jogo vai-‐se, então, desenrolando mas as mulheres não saem vencedoras.
Do rol de causas que as mulheres identificaram como as que mais contribuíram para a manutenção da relação íntima remete-‐nos para o domínio dos laços afectivos que unem vítima e agressor e que se expressou nos discursos das mulheres como “gostar” do agressor. A utilização do termo “gostar”, aqui utilizado por ser a expressão mais referida pelas entrevistadas para descrever o sentimento que as unia ao agressor, revela a força do laço afectivo. Entendêmo-‐lo como uma das expressões que ilustra a vivência do «amor romântico» de Giddens: um amor «essencialmente feminilizado» (1995, p. 53) e que, ao contrário do que a expressão possa dar a entender, é um tipo de amor «completamente assimétrico em termos de poder; os sonhos femininos do amor romântico conduziram muitas vezes a uma severa submissão doméstica» (Idem, Ibidem, p. 41). É, então, um “gostar” genderizado, tipicamente feminino e que faz assentar na esperança de mudança do comportamento do outro a razão para se perpetuar a relação conjugal. Assim, também este tipo de amor ou laço amoroso acopla os papéis de género, aqueles que reforçam o arquétipo da mulher como a guardiã do espaço casa-‐família. Como dizem Beck e Beck-‐Gernsheim (1995), o amor e a desigualdade parecem ser tão mutuamente exclusivos como a água e o azeite.
A expectativa que de que o seu companheiro/marido mudasse, pode encontrar explicação no conceito que alguns autores, (Enander e Holmberg, 2008; Dutton e Painter, 1981, 1983,1993), utilizaram o de traumatic bond para descrever os fortes laços psicossociais que as vitimas criam com o agressor. Esse laço cria-‐se na conjugação dos períodos de acalmia da violência, caracterizados pelos pedidos de desculpa do agressor e ausência de violência, com a incapacidade que as mulheres sentem em agir. O resultado é «strong symbiotic relationship from which neither party can escape (Rhodes e Mackensy, 1999, p. 398). Long e McNamara, refletem que será a ocorrência do abuso físico que faz aumentar a necessidade da vítima em sentir-‐se amada e acarinhada. Segundo os autores, muitas das teorias explicativas da manutenção das relações conjugais violentas, negligenciam que «The motivation to gain love may be so strong that it somewhat mitigates the abuse endured to obtain it» (1989, p. 201).
O conceito de traumatic bond desvia a atenção das dimensões materiais para os aspectos emocionais da violência de género. O laço traumático desenvolve-‐se na articulação e combinação de várias emoções: amor, medo, ódio, compaixão100, culpa e esperança. O medo é, em si, uma emoção forte e com influência na manutenção da relação. No entanto, o que os autores defendem é que o amor -‐ emoção que classificam de binding-‐ e o ódio101, são emoções que "prendem" a mulher ao objecto no qual projecta essas emoções.
Mas a esperança na mudança do comportamento do agressor reflecte um mecanismo de compensação de todas as situações de violência sofrida. A esperança funcionaria, segundo os autores supracitados, como uma «compensation for all bad things, which is exactly how it seems to function within a violent relationship (…)» (Idem, Ibidem, p. 207).
Magda confessa ainda gostar do seu ex-‐marido. Por ter consciência da perpetuação desse laço afectivo que ainda tem com o agressor, encontra-‐se confusa porque não consegue arranjar explicações para tal:
«Eu acho que foi sempre mesmo gostar dele, se eu lhe disser que eu ainda gosto dele, mas sei que nunca mais o quero ver. Mas gostar eu gostarei sempre…não me diga porquê porque se eu, se alguém me contasse isto eu dizia “oh pah, és uma parvalhona, mas como é que se pode gostar de alguém que nos faz mal”, mas o que é certo é que isso é verdade»
100 Caracterizada pelos autores como importante na desculpabilização dos actos do agressor é algo que
também encontramos frequentemente nas nossas entrevistas, sobretudo nos casos em que o agressor é descrito como alguém que não teve uma infância fácil ou que presenciou violência entre os pais. Por exemplo, o caso de Sofia, parece paradigmático: «Não, nunca lhe tive raiva. Às vezes cheguei a ter pena dele também não, sei lá…acho que ele também não gosta de ser assim só que eu acho que ele…ele não gosta de ser assim só que foi o que ele aprendeu e foi o que ele viu. Eu acho que tanto rapazes como raparigas vão ser um bocadinho daquilo que vêem e daquilo que aprendem em casa, acho que se viverem num meio de violência e que vejam isso diariamente, acho que vão acabar por ser assim também. Acho eu»
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Quando abordámos o exercício da violência física e sexual, caracterizamos algumas das emoções experienciadas pelas mulheres, após as agressões e o ódio era uma das mais referidas.
A esperança que o agressor mude, ou que a vítima consiga que ele mude; os pedidos de desculpa; os períodos de acalmia na relação102; a percepção de incapacidade em reagir perante a violência, são elementos que contribuem para o reforço do vínculo emocional ao agressor, uma dinâmica que é de difícil desconstrução:
«Fui uma parva, estava obcecada, dependente dele…pensei que podia mudar a vida…tentei ajuda-‐lo…mas não deu certo porque ele também não quis. Ia mudar e mudava e pedia desculpas e eu acreditava e tentava ajudar mas no fundo também sabia que se ele não quisesse…»
(Margarida, 62 anos)
Margarida é um dos casos paradigmáticos da força dos vínculos afectivos que unem a vítima ao agressor. No seu discurso, faz referência à dependência que sentia do agressor, situação que Giddens aborda na obra Transformações da Intimidade e que entende como uma «desistência do self, um abandono temporário da preocupação reflexiva» (1993, p. 50), à semelhança do que Mead entende por «acção adiada».
Esta dependência afectiva a factores psicossociais que as unem ao agressor é uma espécie de “miracle glue” (Walker, 2009). Stark, avança com alguns elementos explicativos da manutenção, relacionados com o laço afetivo ao parceiro ou ao ideal de família, determinantes na avaliação subjetiva das mulheres: «Many women “stay” with abusive men because love, loyalty to a partner, gratitude for past support, marriage, the integrity of their family and striving for a real partnership even in the face of domination mean more to them than personal safety or other self-‐interests served by leaving. Though some may consider these beliefs hopelessly naive or romantic, they have a positive valence in female subjectivity as well as an evolutionary function in the maintenance of the race» (Stark, 2007, p. 154). Esta análise, articula-‐se com a feminilização do amor romântico de Giddens, uma forma de amar feminina que
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Processo que faz parte dos ciclos de violência descritos por Walker e que abordaremos quando desbravarmos o processo de ruptura.
reforça os modelos, valores e estereótipos de género que atribuem à mulher uma maior “vocação” para as matérias do coração proverbial. Assim, também a experiência do amor é vivida de forma diferente por homens e mulheres, sendo a mulher a sua protagonista.
Debruçarmo-‐nos sobre o campo dos afectos, das emoções é essencial para tentar abrir caminhos para a compreensão desta teia de afectos que espartilha as mulheres. Tentar retirar sentido da leitura cognitiva por elas feita e a experiencia emocional vivida descrita é também fundamental. Mas as formas como vivemos e percepcionamos as emoções não são indissociáveis das expectativas individuais, alvo de socialização primária e secundária e que, por isso, precedem o objecto do afecto (Frijda, 2002). Os valores, modelos e padrões sociais e culturais que apreendemos, influenciam a forma como vivemos as emoções e, nesse sentido, a esperança ou a expectativa que o agressor mude, é em si mesma, uma construção social assente no cumprimento socialmente expectável dos papéis sociais. A esperança que algo mude, funciona como mecanismo de compensação para aguentar a violência e evitar que seja imputado à vítima a falha no cumprimento social do seu papel de esposa/companheira/mulher. Este laço afectivo, que se transforma num laço traumático, incorpora emoções que em conjunto contribuem para a manutenção, tal como Enander refere: «Some of the emotional ties described were love, compassionan, hope and desire to understand the abuser; ties that together created a traumatic bond binding women to their abusers. (…) Conceptualizaing the abuser as a hurt boy is highly concordant with the emotional ties described and is hardly useful when trying to break them» (2010, p. 88).