Capítulo III. Contextos e dinâmicas da violência de género 63
3.1. A tríade da violência de género: sobre a violência física, sexual e psicológica 63
Com o presente capítulo propomo-‐nos analisar os aspectos que mais se destacam nas dinâmicas da violência de género. Começaremos por analisar os tipos de violência exercidos sobre as mulheres vítimas, ao mesmo tempo que demonstraremos como nenhum tipo de violência é praticada de forma isolada das outras. Interrogar-‐nos-‐ emos em que moldes os três tipos de violência se assemelham e distinguem ao mesmo tempo que nos debruçaremos sobre as consequências da prática destes tipos de violência. Nesse sentido, intitulamos cada ponto do presente capítulo com a característica que melhor qualifica o exercício de cada um dos tipos de violência, de acordo com a desconstrução das narrativas individuais de cada uma das entrevistadas. Em cada um dos em análise, apresentaremos dados estatísticos que identificarão alguns dos indicadores de análise com o qual o exercício da violência física, sexual e psicológica se associam. Com este processo esperamos aprofundar conhecimento sobre a teia complexa dos factores que contribuem para a perpetuação da violência contra as mulheres nos contextos das relações conjugais.
3.1. A tríade da violência de género: sobre a violência física, sexual e psicológica
A já referida Declaração da Eliminação da Violência contra as Mulheres de 1993, define a Violência contra as mulheres como qualquer acto do qual resulte dano ou sofrimento de cariz físico, psicológico ou sexual41. Não se encontra no Código Penal
41 A propósito dos três tipos de violência referenciados em termos internacionais, Claudia Garcia
Moreno refere que a violência contra as mulheres pode ser física, psicológica ou sexual mas não se limita a eles: «It can include, although it is not limited to, physical, sexual and psychological violence, including battering, sexual abuse, dowry-‐related violence, rape including marital rape, female genital mutilation, sexual harassment and intimidation at work, trafficking and forced prostitution and violence related to exploitation» (García-‐Moreno & Riecher-‐Rössler, 2013, p. 2). A autora alerta, assim, para que o espectro de actos de violência relacionada com cada um dos seus tipos, pode ser muito mais alargado. Blanchfield e Margesson, numa obra de 2009, chamam a atenção para outros tipos de violência contra as mulheres menos falados porque ocorrem em regiões do globo onde a violência contra as mulheres é ainda mais naturalizada e são eles: «Honor killings, for example, occur when women are stoned, burned, or beaten to death, often by their own family members, in order to preserve the family honor. The practice is most common in Middle Eastern and South Asian countries, though it has been reported in other parts of the world, such as Latin America and Africa. Dowry-‐related violence, where victims might
Português uma descrição do tipo de actos que tipificam cada um destes três tipos de violência. O Artigo nº 152 Lei 59/2007 apenas se refere a «castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais» sem no entanto avançar com uma tipologia. Por sua vez, a Resolução de Conselho de Ministros Nº 88/2003 declara que se considera como violência doméstica «toda a violência física, sexual ou psicológica». Perante esta ausência no quadro jurídico e penal recorremos a Lisboa (2009) para quem a violência física pode contemplar, embora não se limite, os seguintes actos: bofetadas/murros/pontapés/arranhões/beliscões/mordidelas; sovas; atirar com objectos; empurrões; socos no peito; apertar o pescoço; puxões de cabelo; cabeçadas e queimaduras ou cortes.
A violência psicológica pode contemplar acto(s), embora a eles não se limite, como: gritos ou ameaças verbais, escritas ou gestuais; perseguições; atemorizações; rasgar ou retirar documentos de identificação ou roupa pessoais; ameaças de morte e coacções; danificar propriedade pessoal ou privada; controlar a vida social, com o objectivo de favorecer o isolamento; espiar; impedimentos de contacto com o exterior; comentários negativos à sua aparência física e/ou condição física; proibição de uso de maquilhagens ou roupas; insultos com vista à humilhação ou atingir a auto-‐ estima.
Os actos que caracterizam a tipologia da violência sexual podem ser: obscenidades com o propósito de a assediarem; tentativas de contacto físico com conotação sexual; exibição, contra a vontade da vítima, de fotografias, revistas ou filmes pornográficos; prática de actos sexuais contra a vontade da vítima, de vontade, actos de sodomia, ou formas de relações sexuais sadomasoquistas; exibicionismo e ultraje ao pudor; violação e tentativa de violação; forçada a interromper uma gravidez ou a prosseguir com uma gravidez, não desejada.
O conhecimento já produzindo nesta temática permite perceber que estes três tipos de violência são os mais comuns42. No panorama nacional eles já se destacavam, primeiro no estudo realizado em 1995 que apresenta como uma das suas grandes
be attacked or killed by in-‐laws for not bringing a large enough dowry to the marriage, is also prevalent in South Asian countries such as Pakistan, India, and Bangladesh. Female genital cutting (FGC), which has also been referred to as female genital mutilation (FGM) or female circumcision, is common in some African and Middle Eastern countries» (Margesson, Seelke, Salaam-‐Blyther, & Serafino, 2008, p.143).
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conclusões a predominância da violência psicológica (Lisboa, et al.) e, mais tarde, o estudo de 2007 concluía que a violência psicológica continuava a ser a violência mais denunciada (42,1%). Esse mesmo estudo de 2007 destacava, ainda a elevada percentagem da combinação destes três tipos de violência43 (cerca de 37% das inquiridas).
Procuraremos explicar como a violência física, psicológica e sexual raramente ocorrem separadamente. Aliás, verifica-‐se uma ordem de ocorrência entre elas que, normalmente, começa na violência psicológica culminando na violência física e/ou sexual. A violência psicológica é tendencialmente a primeira a manifestar-‐se. Ela vai-‐se tornado constante, constituindo-‐se como uma ferramenta de condicionamento das acções das mulheres. Não é por isso de estranhar a importância que lhe é dada por parte das vítimas. O exercício da violência psicológica, parece-‐nos, inclusivamente, facilitar os restantes tipos de violência, uma vez que o desgaste emocional que causa contribui para uma crescente incapacidade de reacção. É por isso que alguns autores (Dias, 2010; Murphy e Cascardi, 1993) alertam para o facto de poucos estudos se terem debruçado sobre os efeitos da violência psicológica, o que muitas vezes faz com que a sua análise se dilua ou menorize nos meandros mais visíveis da física e sexual.
Na presente pesquisa, a violência psicológica desacata-‐se nos relatos das entrevistadas e, sobretudo, através da produção dos resultados estatísticos e da Análise de Conteúdo. Na tentativa de compreensão da violência psicológica, percebemos que este tipo de violência é crucial para melhor desconstruir e explicar as causas da manutenção das relações. Com esse objectivo, debruçamo-‐nos sobre os factores emocionais que possam explicar a ausência de uma reacção explícita, como a ruptura da conjugalidade. Como veremos, o desgaste protagonizado por este tipo de violência, parece conduzir a um estado que apelidamos de alienação emocional, caracterizado pela redução drástica da auto-‐estima, pela anulação da identidade individual. Emoções como a tristeza, o desespero tornam-‐se permanentes e paralisantes.
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Os mais recentes dados internacionais mostram como a combinação dos três tipos de violência é apanágio da violência de género. Por exemplo, nos Estado Unidos da América, 21% das mulheres confessaram já ter sofrido violência física e/ou sexual. Na Europa25% das mulheres alemãs e finlandesas referiram o mesmo (García-‐Moreno, et al.,2013, p. 3).
A produção dos resultados da Análise de Conteúdo44 corrobora a proeminência dos relatos da violência psicológica. Dos 4148 parágrafos com informação válida, as referências ao exercício da violência psicológica são feitas em 869 vezes sendo, o indicador de análise mais referido. Mas se uma mera quantificação geral pode não ser suficiente para entendemos a importância deste tipo de violência, o facto de ela ser referida pelas 30 entrevistadas atesta a sua protuberância.
Quanto à análise que faremos a propósito do exercício da violência física, veremos que também é um tipo de violência cuja transversalidade se destaca nos discursos, sendo referida em 439 dos parágrafos analisados. A violência física é, segundo alguns autores (Gelles e Straus, 1979, 1988, 2009; Dobash e Dobash 1992; Macgee, 2000; Walker 2009; Stark 2007) o tipo mais comum, aquele que as famílias tendem a naturalizar com maior facilidade. Ela é também o tipo de violência cuja prática pode conduzir aos desfechos mais dramáticos e trágicos como o Feminícidio45. Reside aqui, eventualmente, o lugar de destaque que lhe é conferido no estudo da violência de género.
Finalmente a quantificação do exercício da violência sexual é a que menos aparece referida nos discursos das vítimas foi referida 63 vezes e apenas por 17 das 30 entrevistas. No entanto, este dado não nos deve iludir em relação à sua ocorrência e frequência. Os seus meandros são obscuros e reféns das percepções das mulheres. Paralelamente com a dificuldade em se percepcionarem algumas formas de violência sexual como tal, a sua prevalência é preocupante. A título de exemplo, dados recolhidos no Reino-‐Unido, Estados Unidos da América e Austrália, revelam que entre 10 a 15% das mulheres casadas já foram vítimas de violação por parte do marido e um terço de todas as violações e outros tipos de violências sexuais, contra mulheres adultas, foram perpetrados por um actual ou ex-‐parceiro/companheiro/marido (Russell, 1990; Randall & Haskell, 1995; Ullman & Siegel, 1993). Estes estudos referem ainda que é muito mais provável a mulher ser violada ou sofrer algum tipo de ataque sexual por um parceiro íntimo do que por um estranho. Outro estudo, contribuí para
44 A apresentação de todas tabelas com os resultados estatísticos (frequências, Qui2 e resíduos
estandardizados ajustados) que se revelam neste capítulo III podem ser encontrados no anexo I (página 322 à página 335), bem como no anexo II (página 336 à página 338).
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O femínicidio pode definir-‐se como «The misogynist killing of individual women by men» (Radford e Russel, 1992, p. 3).
ilustração da escala do fenómeno: 10% das inquiridas foram forçadas a ter relações sexuais com os maridos e 14% delas confessou ter sido vítima mais de uma vez (Finkelhor e Yllo,1985)
Será precisamente pela exploração dos meandros da violência sexual que começaremos o primeiro ponto do presente capítulo.
3.2. A violência silenciada: os contornos da violência sexual
A violência sexual, pode ser definida como qualquer acto físico, verbal ou visual, entendido como uma ameaça e/ou coacção sexual. Mas outras definições da violência sexual alargam esta abordagem e definem-‐na como: «any physical, visual, verbal or sexual act experienced by a woman or girl at the time or later as a threat, invasion, or assault, that has the effect of hurting her and/or takes away her ability to control intimate contact» (1987, p.41). Em ternos legais e no contexto nacional, o código penal de 1982 sobre crimes sexuais excluía a violação matrimonial (Lisboa et al.,2009). Foi em 1991 que se produziu a primeira lei que introduzia no código penal medidas de protecção das mulheres vítimas dos crimes sexuais praticados pelo cônjuge (Idem, Ibidem). Mas foi em 1995, com a alteração do código penal, que a criminalização da violência sexual ganha centralidade especial. Talvez devido à sua tardia inclusão no contexto Jurídico-‐penal, as próprias mulheres ainda revelem dificuldades no reconhecimento de que o acto sexual forçado ou não consentido entre cônjuges se figura como uma violência de cariz sexual46.
O facto da violência sexual ser o tipo de violência menos referido nos discursos das mulheres, reside na dificuldade em percepcionar a violência sexual como tal, nos contextos das relações conjugais. Apesar de o Artigo do Decreto-‐Lei 496/77 estabelecer como deveres dos cônjuges «respeito, fidelidade, coabitação, cooperação
46 O Conselho da Europa define a violência sexual como: «any sexual act, attempt to obtain a sexual act,
unwanted sexual comments or advances, or acts to traffic, or otherwise directed, against a person’s sexuality using coercion, by any person regardless of their relationship to the victim, in any setting, including but not limited to home and work (…) that refers to acts like assault, abuse, unwanted sexual advances and harassment, rape, harmful practices and sexual exploitation» (EIGE visited on: http://eige.europa.eu/content/sexual-‐violence-‐against-‐women-‐in-‐the-‐european-‐union, em 24 de Septembro de 2014).
e assistência», as relações sexuais são ainda hoje percepcionadas por muitas mulheres como um dever, tal como aqueles que acima mencionamos. Por isso, será difícil para as mulheres em situação de conjugalidade percepcionar certos actos de cariz sexual como de índole violenta.
A conjugalidade socialmente convencionada permite que muitas mulheres sejam coagidas a desempenhar o acto sexual com o cônjuge e/ou com os namorados. A dificuldade em recusar encontra explicação na percepção de que tal é um dever dos cônjuges, neste caso da mulher. Num estudo realizado nos Estados-‐Unidos (Gelles e Strauss), a maior parte das Leis Estatais dos Estados-‐Unidos da América não consideravam o acto sexual forçado entre cônjuges como uma violação, ou marital exclusion of rape. As consequências desta lacuna nas Leis Estatais deste país foram duas: o impedimento legal das mulheres actuarem contra os seus cônjuges nas situações de actos sexuais forçados e a incapacidade das mulheres reconhecerem que o acto sexual forçado entre cônjuges é uma violência. (Idem, 1988).
As alterações do quadro penal são, obviamente importantes, mas serão tanto mais ineficazes e inúteis quanto maior for a percepção do que o abuso sexual entre parceiros íntimos, especialmente no quadro da conjugalidade, não é exercício de violência. Esta incapacidade, que sabemos ainda hoje persistir, é o reflexo de uma sociedade patriarcal, que se estrutura em formas rígidas estereotipadas de ser homem e mulher (Boira, 2012), onde a mulher e o seu corpo são posse do marido. Ao tornar-‐se mulher ou companheira, numa sociedade patriarcal significa ser encarada como propriedade do parceiro. Ao mesmo tempo, a mulher vincula-‐se «Legally and morally bound to obey the husband's wishes, and being subject to the husbands control even to the point of physical chastisement or murder» (Giustina, 2010, p. 18).
Este sentimento de posse dos agressores em relação às vítimas foi também explorado por outros autores (Wilson e Daly, 1998; Heitmeyer e Hagan, 2005) sobretudo pela via da psicologia evolucionista que optou por se centrar no estudo das características mentais e psicológicas dos indivíduos. O conceito do homem como “proprietário sexual” da mulher é identificável através dos dados recolhidos para este trabalho. O “proprietário” atinge essa condição através de estratégias de controlo social e consequentemente isolamento e coerção. O objectivo é tornarem-‐se o centro da vida das mulheres e vice-‐versa, alcançado através do exercício de todos os tipos de
violência e das estratégias de controlo social, coerção e manipulação das vítimas. Em conjunto, estes elementos conjuram para que as mulheres se sintam manietadas e incapazes de reagir activamente. Qualquer acto sexual forçado, é mais uma das ferramentas da dominação masculina, tendo como objectivo principal inculcar medo nas vítimas, reforçar a dependência da mulher em relação ao homem e limitar a sua acção na esfera pública (Kelly, 2013).
Os dados que recolhemos para este trabalho também reforçam os aspectos acima enumerados mas sobretudo revelam dados concretos e novos sobre os contornos socialmente obscurecidos da violência sexual.
Foi perceptível nos discursos das mulheres que a relação sexual com o agressor era encarada como uma obrigação conjugal. No preambulo do presente capítulo, já aludimos à menorização discursiva da violência sexual por parte das entrevistadas. Também referimos que apesar do silêncio das vítimas ou da obscurização do exercício da violência através da sexualidade masculina, não podemos concluir que ele ocorre em menor escala. Como nos refere Foucault «Em torno do sexo faz-‐se silêncio» (1999a:9). Em torno da sexualidade, especialmente no mundo Ocidental, encontramos uma forte ideologia de silenciamento, controlo social e repressão da sexualidade que o autor data do século XVII e que foi protagonizada pelo Direito, os Estados, e a Igreja Católica. A sexualidade é instrumentalizada, tornam-‐se uma das ferramentas do exercício de poder onde a sexualidade se torna o instrumento dotado de maior instrumentalidade (Idem, Ibidem).
A vivência de uma sexualidade “permitida” foi, então, aferrolhada e transferida para a conjugalidade. É assim que a sexualidade da mulher é acorrentada à conjugalidade e, ao seu uso, conferidos legítimos direitos ao homem. Será, talvez e segundo o autor, uma das conexões históricas que ainda permite hoje perpetuar a satisfação sexual do companheiro/cônjuge como uma das “tarefas” da “mulher conjugal”.
Ana, nome fictício, nunca usa o termo violência ou abuso sexual por parte do seu companheiro. Explícita que teve relações sexuais com o companheiro por vontade própria. No entanto deixa escapar o que nos parece ser uma clara inscrição num modelo do género feminino, assente na subordinação ao homem e às suas vontades e desejos sexuais:
«Entrevistadora: E sexualmente ele…como é que geria isso?
Ana: Eu acho que depende muito das alturas. Está claro que uma pessoa, eu não vou dizer que só fiz sexo com ele porque ele quis, foi também porque eu queria estar com ele, foi porque eu gostava dele porque achava que devia…»
(Ana, 27 anos)
A assimilação dos papéis de género, sobretudo do “dever” das mulheres em satisfazer sexualmente os seus parceiros, ter-‐se-‐á sobreposto à capacidade de percepcionar o acto como uma forma de violência sexual.
O caso de Luana é idêntico. No seu discurso, tenta encontrar algumas explicações para nunca ter reconhecido ser vítima de violência sexual: muito nova quando se juntou com o agressor e a sua proveniência geográfica encontram-‐se entre os factores que contribuíam para a sua “inocência” e que, concomitantemente condicionaram a sua percepção do que seria uma relação conjugal livre de violência. Hoje reconhece que foi vítima da prática da violação conjugal, repetida ao longo de vários anos.
Luana: «Ele começava-‐me a dizer que eu tinha de fazer tudo o que ele queria porque eu era mulher dele e comecei a ser o objecto dele… A minha vida tornou-‐se num inferno sempre, desde aí. Eu era abusada, era fisicamente e era sexualmente porque eu comecei a ter medo dele, ele dizia-‐me que eu era a mulher dele e que era obrigada a fazer aquilo que ele queria. Eu pensava que sim, que era assim – com 18 anos o que é que uma pessoa pensa… fazia tudo o que ele queria e acreditava em tudo o que ele dizia»
(Luana, 53 anos)
A eficiência da assimilação e veiculação dos estereótipos de género parece facilitar o exercício da violência sexual, descrita de forma ambígua pelas entrevistadas: não era uma violência, mas uma insistência e que, perante a sua recusa e possível
agressão, o acto sexual era “consentido“ pela vítima. Para Bourdieu seria a «força da ordem masculina que se deixa ver pelo facto de dispensar justificação» (1999, p.8).
As palavras de Ana reflectem a necessidade da satisfação sexual do agressor. Não recusar a prática do acto sexual era, neste caso, uma estratégia de evitar novo episódio de violência física:
Ana: «Ele não me obrigava mas também não desistia e depois uma pessoa praticamente…já nem para se chatear queres toma faz o que quiseres. Era mesmo assim. Porque na ideia dele a mulher tem que…a mulher é para isso mesmo, para satisfazer o homem, quer ele tenha outro quer ele não tenha a mulher é para isso mesmo, portanto…»
(Ana, 27 anos)
O exercício de dominação masculina através do acto sexual, bem como a validação da performance são aspectos definidores das socializações de género. Usamos o termo dominação masculina de acordo com a definição conceptual de Pierre Bourdieu: um paradoxo da doxa que se baseia numa «ordem estabelecida, com as suas relações de dominação» que perpetua condições de existência «intoleráveis» mas que são produzidas e reproduzidas pelos indivíduos como aceitáveis ou mesmo naturais. A dominação masculina é, segundo o autor, «o exemplo por excelência dessa submissão paradoxal, efeito daquilo que chamo a violência simbólica, violência branda, insensível, invisível para as suas próprias vítimas» (Idem, Ibidem, p.1).
O autor reflecte também sobre a vivência da experiência sexual nos homens e nas mulheres e como a mulher é socializada para falar, tocar, acariciar, abraçar. Por sua vez, o homem constrói a vivência da sexualidade de uma forma compartimentalizada, «concebida como um acto agressivo e sobretudo físico de conquista orientado para a penetração e para o orgasmo» (Idem, Ibidem: 18).