Capítulo I. A violência contra as mulheres, uma questão de género: enquadramento e
1.3. Dados macrossociológicos da violência contra as mulheres: manifestação de
1.3.1. Primeiras abordagens macrossociológicas sobre os estados emocionais
Exploraremos, em primeira instância, as reacções que as mulheres inquiridas referiram ter tido aos actos de violência21. Como veremos, existe um silenciamento da violência, reflexo da reacção passiva que as vitimas revelam. Alguns autores referem-‐ se ao carácter fatalista da violência de género (Luísa Silva, 1991; Pais, 2010) que se traduz na «reacção submissa das mulheres agredidas (…) Mesmo nos casos em que a mulher considera ter a razão do seu lado, ela não só não manifesta exteriormente a sua revolta, como intimamente não a admite, de modo a garantir a estabilidade do casal, valor ancestral, inquestionável quer por parte do homem, quer da própria mulher» (Pais, 2010, p.104). Mesmo quando a vítima escolher o "desabafo com outras pessoas", tal não consiste, em si, numa atitude que vise a denúncia do acto de violência, pelo menos, às autoridades competentes. Dias, descreve esta falta de reacção explícita da seguinte forma: «Na família de constituição, a reacção dominante da mulher à violência conjugal é de conformismo e tristeza» (2010, p.349)
Em relação às reacções das vítimas, a reacção mais referida é Não fez nada/ Vai calando (com 46%). Ora, estes dados demonstram dois fenómenos interessantes: o primeiro é que as reacções mais passivas como (a Não fez nada/ Vai calando e Desabafou com outra/s pessoa/s) juntamente totalizam mais de metade das reacções (65%); o segundo factor que merece ser destacado é a baixa percentagem de vítimas que deixou o agressor. No entanto, 9% dos actos mereceram um contacto com as autoridades, elemento relevante dado que no primeiro estudo à violência contra as mulheres realizado em Portugal em 1995 (Lisboa (Lisboa, Lourenço, Pais (1997), apenas 1% das mulheres referiu ter contactado as autoridades ou outras entidades
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De assinalar ainda que, em ambas as bases de dados (Continente e Açores), todos os dados apresentados correspondem a dois momentos temporais diferentes: actos que ocorreram no último ano (à data da realização do inquérito) e actos que ocorreram em anos anteriores (ou seja, anteriores à data da realização do inquérito).
competentes. Os resultados que se referem às reacções das vítimas a actos ocorridos em anos anteriores, revelam resultados semelhantes: 45% das vítimas reagiram de forma passiva. No Inquérito realizado na região Autónoma dos Açores, os resultados das reacções passivas aumentam quando comparadas com os apuramentos do Continente: Não fez nada / Vai calando foi a resposta de 58% das mulheres vítimas (para actos ocorridos no último ano).
Perante estes dados e na tentativa de caracterizar este silenciamento, tentamos perceber o que leva algumas vítimas a contactarem instituições de apoio e, ao invés, porque razões não o fazem. Os dados do Inquérito Nacional provam que na grande maioria dos actos as vítimas nunca contactaram qualquer instituição de apoio à vítima (84%)22. Estes valores revelam que, apesar de todo o trabalho já feito ao nível de implementação de redes nacionais de protecção e assistência às vítimas, existem muitas mulheres que não recorrem nem usufruem dos serviços de assistência que podem ser prestados para o efeito.
Em relação às vítimas que não contactaram instituições de apoio, o motivo enunciado como impedimento principal foi o Não iria fazer nada para ajudar (25%). Assinalamos a importância e peso desta categoria: por um lado reforça a ideia do desgaste emocional a que a vítima é sujeita, conduzindo ao sentimento de fatalismo da violência que se traduz numa ausência perspectivada de alternativas à mesma. Ainda em relação a esta questão, se juntarmos as categorias de resposta Embaraço com a situação medo que a culpassem e Medo da reacção da família/amigos e pressão social do meio onde vive, que totalizam 19% dos actos, percebemos que alguns estados emocionais, neste caso o embaraço e o medo, podem erigir-‐se como pedras basilares nas decisões das vítimas. O que este dado, indica é que alguns contextos emocionais como vergonha e o medo de ser julgada pelos outros são muitas vezes, inibidores da separação.
22 No Inquérito à Região Autónoma dos Açores em 64% dos actos de violência nunca houve qualquer
contacto com nenhuma instituição, percentagem elevada mas menor do que a verificada no Continente o que revela que as mulheres residentes nesta região autónoma recorrem mais aos apoios prestados pelas instituições referidas.
Importava, também, conhecer os contextos da separação do cônjuge, parceiro ou namorado quando este é o autor dos actores de violência, bem como as vítimas que nunca o tentaram.
Podemos afirmar que existe algum equilíbrio entre a percentagem de vítimas que se separou definitivamente / divorciou-‐se da pessoa que a agrediu (46%), e a percentagem que não se separou (42%). Este aparente equilíbrio indica como pode ser frágil e ténue a linha que separa as reacções explícitas das mais passivas, evidência de uma situação periclitante de vítima e de um limbo complexo entre a separação e a continuação da relação conjugal violenta.
Quanto às causas da separação do agressor, o motivo que se destaca é Não aguentava mais / estava farta (55%). Com um peso menos significativo, segue-‐se o receio que as agressões piorassem/receio pela sua segurança (em 16% dos actos). O motivo mais referido é reflexo de um estado de desgaste físico e sobretudo emocional, que pode demorar anos a ser atingido e que se consolida em período idêntico de longos anos de vitimação. Este desgaste pode funcionar como catapulta para a decisão de abandonar o agressor, ainda que nalgumas situações, se verifique um posteriormente retorno.
Dos actos que nunca conduziram a uma separação do companheiro / namorado, foi perguntado se nunca tinham pensado em fazê-‐lo: em 57% dos actos relatados a resposta foi negativa. Posteriormente, procurámos identificar as razões pelas quais nunca o fizeram. É possível verificar que os motivos mais referidos são: não tinha condições económicas para viver sozinha / medo de ficar só com os /as filhas (14%) e achou que as coisas iam melhorar /parceiro mostrou-‐se arrependido (12%). Lisboa (2009) salientava a importância destes factores mas identificava também outras explicações para compreendermos as razões para que as vítimas continuassem as relações: «a dependência emocional, a ausência de suporte familiar e de amigos e a eterna esperança de que “um dia ele irá mudar”. Esta esperança é, geralmente, sustentada pelo próprio autor por períodos que podem variar em tempo e em intensidade, pois as mulheres vítimas de violência não são agredidas constantemente, nem a violência que lhes é infligida ocorre ao acaso» (Lisboa, et al., p.65). De facto, veremos na análise do trabalho de campo efectuado para este estudo, que estes factores são cruciais para que as mulheres escolham manter-‐se nas relações. Outro
motivo em destaque é a presença da emoção social vergonha/embaraço, embora seja uma das causas menos apontadas (com uma importância inferior a 5%), acompanhada pelo medo de ameaças / medo de mais actos de violência e gostava do parceiro / medo que perder o parceiro23.
Também nas inquiridas que revelaram ter-‐se separado do agressor mas que posteriormente retomaram a relação, os motivos invocados foram os que se relacionam com os laços emocionais que prendem a vítima ao agressor, neste caso: Achou que as coisas iam melhorar (29%) e Gostava do parceiro(a)/medo de o(a) perder (18%).
Uma das mais prementes situações relacionadas com as dinâmicas de violência contra as mulheres quando ocorre no espaço da casa, é a existência dos filhos, que tanto são vítimas directas dos abusos e da violência, como vítimas indirectas quando assistem aos actos praticados. Desta forma, os filhos são os que mais presenciam a violência. Em 23% dos actos no último ano e em 30% dos actos ocorridos nos anos anteriores, as vítimas identificaram o Filho/a (23%) como os que, com maior frequência, assistiram aos actos. Já em 2005 num estudo realizado nos Institutos de Medicina Legal do Porto e de Coimbra, (Lisboa, Barroso e Marteleira), denunciavam o papel dos filhos nos contextos de violência praticada no espaço da casa. Estes autores referiam que na quase totalidade dos casos, os filhos assistem às agressões24 (97,8% em Coimbra e 95% no Porto). Mas mais preocupante é o facto da «(…) maioria destas mulheres refiram que os filhos também são vítimas de agressão (83,3% em Coimbra e 66,7% no Porto), alargando assim de uma forma expressiva o conceito de violência doméstica às crianças, que são um dos principais actores sociais vítimas deste problema (…) Embora a maioria dos estudos refira que, aquando da agressão à mulher se pratica, igualmente, a agressão aos filhos, alguns trabalhos sobre maus tractos infantis apontam para o facto de cerca de 50% das mulheres que maltratam ou negligenciam os seus filhos serem igualmente vítimas de violência doméstica, o que
23Em relação aos resultados destas variáveis para a região Autónoma dos Açores, os dados são
semelhantes aos apurados para o Continente.
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McGee (2000) revela dados preocupantes para o contexto Norte-‐americano. A autora escreve que das 41 famílias que entrevistou, em 85% delas as crianças estavam presentes quando as suas mães foram vítimas dos abusos.
demonstra que, em muitas situações, a mulher canaliza a violência de que é vítima contra os seus próprios filhos» (Idem, 2007, p.20).
Num ponto dedicado ao impacto na saúde e bem-‐estar emocional e psicológico dos filhos das vítimas, verificaremos a extensão que os impactos nas crianças podem atingir e que condicionam toda a sua vivência presente e futura: comportamentos violentos, receios e medos frequentes; más prestações escolares, problemas de saúde física, etc. Este estudo reforça a exposição das crianças à violência quando aponta que a frequência com que as crianças assistiram aos actos de violência: Muitas vezes/ a maior parte das vezes (em 49% das situações), verificando-‐se uma repetição de hábitos e a exposição frequente à violência25.
Os dados que atrás registamos serviram para apoiar algumas das análises que pensamos pertinentes e por isso pretendemos aprofundar como este trabalho. Foram também importantes para a consolidação da estratégia de investigação seguida. Encontramos pistas para aprofundar os factores de manutenção das relações íntimas violentas, e concomitantemente, beneficiamos do conhecimento já adquirido através de inquéritos o que nos proporcionou o aprofundamento do conhecimento do fenómeno e uma melhor percepção a uma escala macro analítica.
Desenhámos este trabalho, em termos metodológicos, através de uma perspectiva mais qualitativa, nomeadamente através da realização de histórias de vida e entrevistas em profundidade numa observação micro analítica, que nos pareceu que pudesse enriquecer o conhecimento a produzir. Daí a necessidade de comparar informação quantitativa com a recolha de informação através do trabalho de campo realizado para esta investigação. No entanto, nas páginas que se seguem, nomeadamente ao nível dos resultados da Análise de Conteúdo e dos Indicadores de expressão Emocional, serão perceptíveis os elementos em comum que ambas as abordagens identificam. Alguns dos resultados apresentados, reforçam a pertinência das interrogações que colocámos aquando do delineamento deste trabalho, especialmente no que se refere ao papel e importância de emoções sociais como o
25 O papel dos filhos, como vítimas directas e indirectas da violência de género repete-‐se na Região
Autónoma dos Açores. As vítimas identificaram o Filho/a (36%) como os indivíduos que, com maior frequência, assistiram aos actos de violência ocorridos nos anos anteriores, mas a frequência com que assistiram aos actos reparte-‐se entre Muitas vezes/ a maior parte das vezes (41%) e Algumas vezes (42%) para actos ocorridos nos anos anteriores à realização do inquérito.
embaraço enquanto emoções capazes de fazer a vítima perpetuar a continuidade da relação violenta; a participação e envolvência “directa” dos filhos nos cenários de violência; o desgaste físico e emocional a que as vítimas sucumbem mas que tem como resultado, ainda que numa situação limite quer psicológico quer físico, a ruptura com o agressor.