Capítulo III. Contextos e dinâmicas da violência de género 63
3.4. A violência mais destrutiva: contornos da violência psicológica 84
O conhecimento já produzido na área da violência de género há muito que nos alerta para as consequências da violência psicológica exercida contra as mulheres (Gelles e Straus, 1988; Dobash e Dobash, 1981, 1985,1987, 1992), algo que estudos mais recentes reforçam (Stark 2007; Heitmeyer e Hagan, 2005; Walker 2009; Campbel 2002; Garcia Moreno 2005; Lisboa at al., 2006, 2007).
Talvez o primeiro estudo que maior importância conferiu a este tipo de violência tenha sido o de Gelles e Straus (1988). Interrogavam-‐se a propósito da facilidade em definir o abuso físico e sexual mas da dificuldade em definir o abuso psicológico, chegando mesmo a designa-‐lo como a forma de violência mais escondida e insidiosa. Na senda deste argumento, os autores dizem que não é possível afirmar de um modo fidedigno a verdadeira dimensão do abuso psicológico no seio das famílias e entre cônjuges, mas que este tipo de violência quase sempre acompanha o exercício da dominação física e o abuso. Os autores afirmam que não existem, em parte nenhuma do mundo, menos vítimas de abuso psicológico do que físico e na tentativa de encontrar explicações para o fraco relevo conferido ao abuso psicológico remetem-‐ nos, à semelhança do que fizemos para a violência física, para o domínio das representações sociais para a naturalização de algumas formas de violência no seio da família: «We suspect that one reason so little research on emotional abuse has been conducted is that so many of us are guilty of occasional or even frequent emotional attacks on loved ones that the behavior is too close and too common to allow for objective research» (Idem, 1988, p.68).
Tendo estas considerações em conta, com este trabalho, tentamos aprofundar os contornos da violência psicológica, também por estarmos cientes da potencial menor capacidade dos intervenientes para o seu reconhecimento. Tentamos, igualmente, estar atentos às formas de abuso psicológico que muitas vezes têm uma conotação social positiva, como por exemplo o ciúme. Ainda hoje a sabedoria popular nos lembra que «Não há rosa sem espinhos, nem amores sem ciúmes», o que tende a naturalizar os ciúmes.
Tal com já referimos, os resultados do último Inquérito Nacional à violência de Género confirmam a importância deste tipo de violência uma vez que foi a que mais se
destacou nas mulheres inquiridas (com 42,1%). Outros estudos nacionais (Dias,2010; Casimiro, 2002) também concluem que é à violência psicológica e aos seus efeitos e consequências que as suas entrevistadas mais se referiam.
Este tipo de violência não é dependente do exercício das outras, mas raramente está ausente. A pesquisa empírica para este estudo, que ilustra os contornos específicos do seu exercício, permitiu perceber o desgaste emocional que a violência psicológica causa nas mulheres. Ela também se exerce no recurso a estratégias de isolamento social. O objectivo é condicionar cada vez mais as interacções com outras pessoas ao mesmo tempo que vão cultivando nas mulheres um sentimento de impotência para a acção. A alienação emocional conduz à percepção de uma incapacidade para a acção, no fundo, uma circunstância de falta de capacidade ou vontade para agir, é percepcionada, pelas mulheres, como uma realidade incontornável. Algumas expressões a que as entrevistadas recorreram foram identificadas como ilustrativas dessa condição de alienação: “eu não sentia nada”; “nada me fazia reagir”; “estava completamente morta”; “já nada me importava”; “já não sabia quem era”, etc.. Estas expressões e outras a elas semelhantes, retractam o que com este indicador de análise se tentava descrever: um vazio emocional que se tornava paralisante da acção. É esta alienação emocional que vai prendendo as mulheres nas teias da violência, consequentemente impondo falta de capacidade para a ruptura.
Episódios de humilhação, agressões verbais controlo social, temporal e espacial, isolamento e afastamento forçado dos outros, inculcação de sentimentos de baixa auto estima e de sentimentos de inutilidade, são algumas das formas que o agressor encontra para exercer o seu controlo coercivo (Stark, 2007). Este controlo tem como propósito induzir as vítimas num estado de alienação emocional ou "learned helplessness" (Walker,1999).
Algumas vias mais eficazes de coerção e intimidação no exercício da violência psicológica são: «Threatening to use violence; intimidating looks and gestures; destruction of personal property; threatening and using violence against pets; displaying and threatening with weapons; and continuous criticism of the woman and those close to her» (Heitmeyer e Hagan, 2005, p.742).
Os paralelismos entre os exemplos dados pelos autores supracitados e a investigação empírica realizada para este trabalho, são recorrentes. Assim, não surpreende que as referências à violência psicológica seja o indicador de análise com mais quantificação na Análise de Conteúdo. Esta violência é, também, comum a todas as entrevistas. A supremacia da quantificação acompanha a importância dada na desconstrução narrativa que as vítimas fazem deste tipo de violência e dos seus efeitos. Foi, aliás essa desconstrução narrativa das vítimas que nos permitiu perceber que os seus efeitos são muito mais eficazes e devastadores, mesmo quando comparados com a violência física, como nos conta Lua:
«Ele batia-‐me e a psicológica eu acho que é pior, porque eu muita das vezes quando eu estava sozinha pensava, eu preferia mil vezes levar uma estalada, eu sei que isto não se deve dizer do que, acho que há certas palavras que doí mais do que propriamente um estalo ou um empurrão...»
(Lua, 32 anos)
Algumas das explicações que avançaremos para tentar compreender a importância do abuso psicológico, prendem-‐se com o desgaste emocional que ele causa e que resulta na alienação emocional. A frequência do recurso a este tipo de violência através da inculcação de sentimentos de inutilidade, incapacidade, baixa auto-‐estima, acaba por ser uma arma eficaz na passividade demonstrada pelas vítimas. As declarações de Vanessa permitem-‐nos compreender como estes sentimentos se vão gerando:
Vanessa: «Passa-‐se muitas vezes, passa isso muitas vezes pela cabeça…e será que sou eu que não é ele? se ele diz é porque é…mas…se eu sei fazer uma conta, sei muitas coisas… ficamos mesmo um farrapo a pensar que não prestamos para nada. Dizemos que ele tem razão, ele tem razão e…mas depois…alguém que te bate às costas e diz: ele é que não te sabe dar o valor porque não há mulher nenhuma que se submeta ao que tu te estás a submeter»
A associação entre a variável “violência física” e a variável “violência psicológica” feita por Vanessa é detectada estatisticamente quando são analisadas as suas ocorrências na totalidade das entrevistas (𝑅ij=13,357). Este resultado estatístico permite-‐nos reforçar a ideia de que é muito difícil às entrevistadas isolarem os tipos de violência dado que é a sua sobreposição que congemina para a manutenção da relação com o agressor.
O discurso de Marta também ilustra essa associação entre a violência física e psicológica. A entrevistada convoca a violência física ainda que apenas inquirida sobre a violência psicológica e refere como o abuso psicológico é profícuo na anulação individual das vítimas:
Marta: «Usam muito chantagem não é? E como dizem, não vales merda nenhuma, és isto, és aquilo e uma pessoa sente-‐se assim um bocadinho rebaixada e depois comecei…começas mesmo a sentir-‐te assim…A minha situação agora a primeira vez foi…batia física, psicológica, foi muito mau, até para mim me escarrava...mesmo à frente da polícia chegou a fazer isso “não és merda nenhuma” e escarra e pronto…»
(Marta, 37 anos)
Expressões como “a violência física doía mas depois passava, mas a psicológica fica muito tempo…ainda hoje”; “mata devagarinho”; “dura para toda a vida o mal que nos dizem”; “corroí uma pessoa e anula-‐a por dentro”; “mata a nossa personalidade e destrói tudo o que conhecíamos de nos”, permitem explicitar a eficiência deste abuso como estratégias de anulação da capacidade de reacção das vítimas, com efeitos que perpetuam no tempo. Muitas das entrevistadas referem que parte da luta que ainda travam para a superação dos traumas psicológicos, contínua a ser a libertação desses sentimentos de anulação:
57 Os cálculos do χ2 revelam uma associação entre a variável “violência física” e “violência psicológica”
Xana: «Porque a psicológica é…é assim, às vezes eu acordo e penso que estou a viver na mesma, parece que não sou feliz porque porque…não sei, parece que, olho-‐me ao espelho e penso muita coisa muita coisa como ainda estou igual ou sou aquilo que ele me quis tornar… fico…ainda estou revoltada com isto tudo mesmo»
(Xana, 33 anos)
Para além da sua capacidade de acompanhar a vítima muito para além do tempo de separação (Lisboa et al.,2009) enumeravam uma panóplia de estados emocionais relacionados com as consequências da violência psicológica: sentir sempre desespero, vazio, desânimo, tristeza, pesar, sentimentos de culpa, auto-‐ desvalorização. Mas o dado mais preocupante apontado pelos autores é aquele relativo às ideações suicidas e tentativas de suicídio58 (121% e 393% mais provável ocorrer nas inquiridas vitimas do que nas não vítimas, respectivamente).
Os meandros da violência psicológica devem ser analisados à luz dos métodos usados na sua prática: a coacção, a limitação, inibição, o controlo dos movimentos ou interacções das mulheres, são as suas armas predilectas, tornando difícil a ruptura da conjugalidade. O desgaste psicológico e emocional decorrente desta violência expressa-‐se no processo descrito por Walker: «Exhausted from the constant stress, she usually withdraws from the batterer, fearing she will inadvertently set off an explosion. He begins to move more oppressively toward her as he observes her withdrawal» (Walker, 2009, p.59).
Julgamos que estes aspectos são determinantes para aprofundar conhecimento sobre a perpetuação da relação conjugal violenta. Por isso, estas estratégias de isolamento o controlo do agressor serão aprofundados num ponto autónomo.
Por agora, e em jeito de súmula do presente ponto, limitamo-‐nos a concordar com Dobash e Dobash (1992) quando apelidam a conjugalidade como uma “hiting licence” tornando as mulheres em “vítimas apropriadas” devido às suas vulnerabilidades. Que debilidades serão essas que as tornam alvo tão fácil e tão apropriado e conveniente para o exercício de tanta e tantos tipos de violência?
58
Podemos enunciar quatro dessas vulnerabilidades: men’s greater strength, the status of married women as male property, sexual inequalities in power, or psychological deficits induced by the violence itself» (Stark, 2009, p. 121).
Estes factores que se transformam em debilidades, tornam a mulher num alvo fácil para o exercício da violência precisamente porque são mulheres. É este o argumento decisivo para entendermos esta violência como violência de género: culturalmente e historicamente enraizada nos nossos símbolos, valores, crenças, padrões de comportamento orientados pela ordem social do género e que se inscrevem nas socializações e práticas quotidianas.
Capítulo IV. Dinâmicas interpessoais da Violência de Género
Neste capítulo analisaremos as dinâmicas das relações entre os vários intervenientes, directos e indirectos, das relações conjugais violentas. Da relação entre a vítima e agressor, analisada desde a fase do namoro, resultam condicionantes da interacção entre as vítimas e outros intervenientes, sobretudo a sua família. Perceberemos como o contexto de violência, circunscreve e condiciona a interacção das mulheres com as suas redes sociais de apoio com o propósito do afastamento e isolamento social, diminuindo a capacidade da vítima deixar o agressor. Isolamento, controlo e ciúme são instrumentalizados para diminuir a capacidade reactiva das vítimas e aumentar a subordinação ao agressor.
Tentaremos, igualmente, analisar as reacções das vítimas, ao mesmo tempo que explicitaremos as causas que parecem motivar a passividade das mulheres vítimas de violência que conjuram para a perpetuação dos ciclos de violência conjugal.
4.1. A vítima e o agressor: o exercício da dominação
Quando nos centrámos nos tipos de violência referimos em que medida estavam associados entre si, ou seja, detectámos, tanto ao nível das narrativas das entrevistadas como ao nível da produção de resultados estatísticos, uma sobreposição entre os três tipos de violência aqui analisados. O presente ponto, também será desenvolvido à luz das estratégias, ou seja, instrumentos que o agressor utiliza para paralisar as vítimas e condicionar as suas acções e reacções, consequentemente, aprisionando-‐as. Estes métodos, embora distintos, assemelham-‐se no seu propósito: induzir na vítima o vislumbre de uma saída da relação como improvável, ou até impossível.
Os mecanismos de dominação nem sempre são óbvios, como vimos. Por isso, e para percebermos algumas das causas da violência de género nas dinâmicas conjugais, é necessário reflectir sobre os enredos da relação entre agressor e vítima. Nesse sentido, analisar-‐se-‐á e contextualizar-‐se-‐ão os objectivos com que o agressor aplica as