Capítulo IV. Dinâmicas interpessoais da Violência de Género 90
4.1. A vítima e o agressor: o exercício da dominação 90
4.1.2. Do controlo social ao isolamento 95
Randall Collins descrevia a violência doméstica como «an effort to control» (2009:20), expressão que nos parece particularmente adequada após a reflexão sobre os mecanismos de controlo social impostos à vítima. Esse controlo regula as vivências individuais, práticas e sociabilidades das mulheres. A expressão desse controlo é
assinalável pelo facto do indicador de análise “agressor isolava/controlava socialmente a vítima” foi referido por 543 vezes no total das 30 entrevistas tendo sido reportada por todas as entrevistadas, o que constituí reflexo da importância que lhe é conferida.
O controlo social e o isolamento são elementos que poderiam ter sido analisados de forma separada. Todavia, entendemos que um é a consequência do outro: o controlo social é o instrumento que permite atingir o objectivo que é o isolamento social. O controlo social é fundamental para percebermos a violência de género: ele oprime e limita o raio de ação das mulheres, adensando e incentivando o isolamento. É uma ferramenta poderosa para cultivar sentimentos de impotência e incapacidade para operacionalizar uma reacção perpetuando, consequentemente, os ciclos de violência.
O conceito de controlo social, aqui usado, partilha algumas características com o que Stark (2007) cunhou como controlo coercivo: um estado objectivo de subordinação que visa eliminar qualquer resquício de resistência à dominação. As situações criadas pelos agressores para atingir esse controlo coercivo, partilham alguns elementos em comum com outros tipos de crimes como o rapto, stalking ou assédio: «(…) Like hostages, victims of coercive control are frequently deprived of money, food, access to communication or transportation, and other survival resources even as they are cut off from family, friends, and other supports» (Idem, Ibidem, p. 12).
Mas os mecanismos de controlo social sobre estas mulheres podem ser mais incisivos, numa clara tentativa de afastar a mulher do mundo exterior. Limitar a vivência das mulheres e o acesso à informação, reforça o controlo que se pode exercer sobre elas ao mesmo tempo que solidifica o isolamento em relação a outras esferas sociais de influência como a cultura, a informação ou a literatura. Rosinha conta-‐nos como era proibida de ler determinados livros ou ver determinados filmes ou programas televisivos.
Rosinha: «Naquele tempo, naquele tempo que eu passei violência, que eu estava presa naquela casa, não há nem um passo que eu dava que ele não soubesse. Ele dizia-‐me: “Tu estiveste ali. Estiveste nas compras.” Eu disse: “Como é que tu sabes?” – Praticamente controlava-‐me sempre.. Eu não podia ler livros ou ver alguns filmes. Que ele controlava logo os livros,
“O que é que tu estás a ler? Então e estás, estás a ler porquê? Isso dos livros dá…” Como é que ele dizia? “Dá... Dá à volta da cabeça das mulheres.” E eu escondia os livros.»
(Rosinha, 41 anos)
Estes depoimentos descrevem métodos coercivos de micro-‐regulação do comportamento das mulheres que os agressores usam. Este controlo social é uma forma de violência psicológica que, pela sua natureza coerciva é, por vezes, ignorada pelas vítimas como vimos nas descrições das fases do namoro. Notar-‐se-‐á que os meios aos quais os agressores mais recorrem, para o exercício de controlo, se constituem como uma claro atentado a uma vivência plena dos direitos de cidadania destas mulheres em relação às quais até o tempo em determinadas actividades, como ir às compras ou ir buscar as crianças à escola, é regulado. O controlo é sempre mais incisivo quando as mulheres não se encontram no espaço da casa.
Joana II descreve que era chamada à atenção quando demorava mais do que o normal a ir buscar os seus filhos à escola. Como estratégia de redução da possibilidade de abuso, acaba por conceder ao agressor a possibilidade deste a acompanhar sempre. Para além do controlo social já exercido pelo agressor, a estratégia que esta entrevistada adopta acaba por potenciar o exercício de maior controlo sobre as actividades e deslocações da entrevista:
Joana II: «Às vezes ia ao supermercado para ir buscar o pão, encontrava alguém, uma vizinha, falava um bocado “e tanto tempo para ires buscar o pão”, às vezes até que demorava imenso tempo “ah foste tão rápido”, acabava por…nada agradava. Tudo começou sem problema, porque ia bem vestida, porque eu ia buscar o meu filho à escola às vezes ficava um bocadinho a falar com a mãe dele, a mãe dele estava a falar com o neto. “Ah tanto tempo para ires à escola” eu às vezes até lhe dizia “porque é que não vieste tu comigo?” porque muitas vezes ele dizia “ah vai buscar o menino” “anda comigo” para ele não me começar a chatear a cabeça e ele dizia “não vai lá tu”»
Dispondo de contacto reduzido com o exterior e por vezes já isoladas e sob permanente vigilância, torna-‐se mais difícil a ruptura da relação. O exercício do controlo social basea-‐se na violação de alguns direitos básicos de qualquer cidadão: «violation of their physical integrity (domestic violence), denying them respect and autonomy (intimidation), depriving them of social connectedness (isolation), and appropriating or denying them access to the resources required for personhood and citizenship (control) » (Stark, Ibidem, p. 15).
Esta interligação entre o controlo exercido sobre as mulheres e o seu isolamento impele e circunscreve-‐as à esfera doméstica e às vontades impostas pelos seus companheiros, conduzindo-‐as, simultaneamente, a um afastamento da sua família e dos seus amigos. O isolamento é um dos principais factores inibidores de uma reacção explícita das vítimas que ao sentirem-‐se cada vez mais sozinhas se conformam com a sua situação de vítima, o que acaba por reforçar o afastamento em relação aos outros:
Cristina: «Tinha amigas, amigos não podia ter depois passou uns tempos nem amigas podia ter porque ele proibia-‐me falar com esta com aquela porque para ele todas as mulheres eram putas “ah, não quero que fales com ela porque ela é puta ela é isto é aquilo”. Então com o tempo praticamente deixei de falar com as amizades que eu tinha.»
(Cristina, 28 anos)
Os métodos de intimidação associados ao controlo social, a restrição em contactar amigos ou familiares (por vezes com ameaças directas, por demais referidas), juntamente com o historial de abuso, cimentam a percepção de inevitabilidade da manutenção. É assim que para muitas destas mulheres, a experiência do casamento ou a união de facto parece ser equivalente a viver numa prisão. A saída não parece possível o que leva as mulheres a adoptarem estratégias de protecção e sobrevivência que reforçam ainda mais o seu isolamento:
Inês: «A pessoa já não (pausa 2 seg) não sei, era bicho-‐do-‐mato, eu já o evitava à noite, esperava que ele adormecesse, ficava na sala, evitava-‐ o à noite o máximo que pudesse, já ia tentar na mesma casa, como é que eu hei-‐de dizer… Mansinha, a bolinha baixa… já não… já não servia de nada, se falasse era uma coisa, se não falasse, se mostrasse cara feia às tantas já não (pausa 2 seg) qualquer coisa irritava-‐o, via que ele andava triste, tentava… Se dissesse alguma coisa era pior. Fui ficando em casa sozinha com os filhos, afastou-‐me, foi-‐me afastando da família dele. Depois eu também fui ficando isolada de amigos e tudo e nem sequer tinha dinheiro para sair dali e ir para algum sítio»
(Inês, 45 anos)
Vivendo num clima de permanente medo, em que a mais pequena situação pode originar uma agressão, estas mulheres vêem-‐se forçadas a aceitar o exercício do controlo, catapultando-‐as para o isolamento em relação ao exterior. As vítimas, começam, progressivamente a afastar-‐se das suas redes sociais de apoio, a restringir os seus movimentos e actividades, a suprimir as suas opiniões. Nesses casos «At this point, women can be controlled through fear and anticipation as well as through direct action (Dobash & Dobash, 1998, p. 163).
Um dado relevante para entender os motivos que conduzem à manutenção, por parte das mulheres vítimas, das relações conjugais violentas encontra-‐se na conjugação entre o isolamento imposto pelo agressor e uma atitude de perda de esperança por parte das vítimas. O isolamento, enquanto forma de controlo social, torna-‐se um factor ainda mais condicionante se pensarmos na importância da família e dos amigos para a consumação da ruptura.
Terminaremos com um breve epíteto da capacidade destrutiva das privações impostas pelo controlo social e como elas podem, por vezes, ser mais nefastas do que a abuso físico ou sexual: «Assault is an essential part of this strategy and is often injurious and sometimes fatal. But the primary harm abusive men inflict is political, not physical, and reflects the deprivation of rights and resources that are critical to personhood and citizenship» (Stark, 2007, p. 5).