Capítulo VI. Da manutenção à ruptura da conjugalidade 155
6.1. Os discursos sobre a manutenção das relações conjugais violentas 155
6.1.3. Ficar para bem dos filhos 167
Referimo-‐nos aos filhos no contexto da violência de género enquanto intervenientes directos. No entanto, a questão deve ser pensada no contexto específico que nos ocupa neste capítulo – as razões determinantes para a manutenção da relação. A decisão passa pela forma como as mulheres perspectivam o bem-‐estar e segurança dos filhos. Se numa primeira etapa, um dos motivos apontados para a
manutenção é o bem-‐estar dos filhos, associado a um arquétipo da família nuclear tradicional -‐ crescer com a ideia de família tradicional com um modelo de referência masculino e feminino ou mãe/pai-‐ numa segunda fase, o aparecimento de indícios na criança de uma saúde psicológica e física débil, nomeadamente através de comportamentos emocionalmente instáveis, alerta a mulher para a necessidade de salvaguardar o bem-‐estar dos filhos.
Assim, a primeira fase enunciada caracteriza-‐se por incorporar a visão tradicional do modelo familiar que se inscreve num arquétipo de família nuclear, no qual pai e mãe são o modelo de referência da criança e devem estar presentes durante o seu crescimento. Era assim que pensava Rosinha:
«Queria dar aos meus filhos a família que eu nunca tive. Foi por isso que eu o aguentei tanto tempo. Aquilo era uma aldeia, estava a família toda junta, eles sentiam-‐se bem. Mas era aquele caso da violência. Eles passaram… O problema não foi, aaa a violência não aconteceu atrás deles, foi à frente dos meus filhos. Eu olhava para os meus filhos e lembrava-‐me muito o que eu podia dar aos meus filhos aaa uma paz, que a, que a gente nunca teve. Aaa, olha para os meus filhos e dizia aaa “Eu vou aguentar. Vou tentar arranjar uma solução»
(Rosinha, 41 anos)
Paralelamente, a dependência financeira das mulheres, a ausência de um local seguro para se refugiarem e a incerteza relativa ao que a separação possa significar para as crianças, não permitem às mulheres seguir, desde logo, um curso de acção alternativo à manutenção. Quando tomam esta decisão, prendem-‐se à esperança de que a alternativa é pior do que manter as crianças no seio familiar ainda que expostos à violência. Esta esperança também se nutre no ideal de educação tradicional no seio de um núcleo familiar estruturado. A inculcação destes estereótipos e modelos familiares nucleares, transmitidos pelos seus pais, conduzem à insistência na educação dos seus filhos seguindo os modelos segundo os quais foram educadas: com mãe e com o pai. Novamente aqui, não podemos deixar de salientar a forma poderosa como os padrões e modelos socialmente vigentes do casamento ou união matrimonial, que
de acordo com os quais a socialização da mulher é muito mais orientada do que a do homem.
Mas deixemos que as mulheres com quem trabalhamos descrevam as suas preocupações a este propósito. Maria II era assolada com preocupações sobre a sua capacidade de tomar conta dos seus filhos, sozinha uma vez que dependia do rendimento do marido. Mas sobretudo a sua inquietação era determinada pela importância que confere à educação de criança pelo pai e pela mãe juntos, numa clara identificação da sua identidade feminina com o modelo do casamento tradicional e a sua própria auto-‐realização pessoal:
«Porque da última…quando a Luana tinha 3 meses, nessa reconciliação foi aí que apareceu o outro bebé, este. E portanto…eu ficava a pensar se era realmente o que eu queria, se eu ia conseguir sustentar uma filha sozinha sem a presença de um pai porque a presença de um pai é importante. Assim pensei que pudesse ser mais ou menos realizada».
(Maria II, idade)
As questões levantadas por Maria III são semelhantes, mas ancoradas na esperança de que o agressor pudesse vir a mudar:
«Foi por esse motivo e ver se ele conseguia melhorar, também ao mesmo tempo queria criar a minha filha ao lado do pai, porque achava bem que as crianças devem ter o pai e a mãe, eu sou daquele tipo antigo, conservadora que acha que o pai e a mãe devem estar juntos para criar um filho.»
A articulação que Maria III faz entre a esperança da alteração de comportamento do agressor e ainda permanecer para bem dos filhos é acompanhada de resultados estatísticos importantes. Assim, os resultados obtidos permitem-‐nos perceber uma associação entre a variável “ficar para bem dos filhos” e “esperança que
o agressor mudasse” (𝑅ij=2,2,103). Este resultado confirma o que já dissemos acerca da importância dos padrões mais tradicionais das uniões conjugais e dos papéis de género para a manutenção das relações conjugais, assentes nos ideais normativos da conjugalidade. O desejo de que os filhos cresçam com ambos os progenitores, acrescido da esperança relativa à mudança do comportamento do agressor, alimenta a permanência da mulher na relação.
Um outro dado que reforça a importância das visões estereotipadas de género na educação dos filhos é a associação estatística encontrada entre “ficar por ser melhor para os filhos” e a variável que assinala as alusões nos discursos ao “cumprimento tradicional dos papeis de género e/ou referências ao desempenho feminino no lar” (𝑅ij=5,2)104. Não podemos deixar de nos interrogar se as motivações familiares para a pressão que exercem no sentido da manutenção da relação, se encontram articuladas com a associação estatística acima enunciada, como veremos em seguida. Mesmo nos casos em que essa pressão familiar se não coloque, admitimos como hipótese que os padrões e modelos de género e de conjugalidade herdados através da socialização familiar atuem no sentido de condicionar a mulher na ruptura.