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CAPÍTULO 3 O DISCIPLINAMENTO JURÍDICO DA REPRODUÇÃO

4.1 A FAMÍLIA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: A

A família, em sua origem patriarcal e calcada no direito de propriedade, sempre teve seus aspectos patrimoniais destacados pela maioria das legislações civis do ocidente. No Código Civil Brasileiro de 1916, por exemplo, a maioria dos dispositivos relativos ao Direito de Família tratava de relações patrimoniais. A própria distinção entre filhos legítimos e ilegítimos tinha como escopo não proteger a família em si, mas o patrimônio. 118

O liberalismo individual que serviu de inspiração para as mesmas tem como preponderante a propriedade e os interesses patrimoniais sobre todos os direitos privados, inclusive o direito de família. Desta feita, a idéia de família estava intimamente ligada ao domínio do pai sobre todos os demais membros e sobre os escravos, que tinha o direito de vida e morte sobre todos eles. 119

Com a Constituição Federal de 1988, que consagrou o princípio da dignidade humana como fundamento da ordem jurídica, a pessoa passou a ser o centro da proteção do direito, acarretando a despatrimonialização e a personalização dos institutos jurídicos, em especial, aqueles do Direito de Família. Passa-se à valorização do interesse da pessoa humana mais que suas relações patrimoniais.

Sem dúvida, a Carta Magna de 1988 provocou uma transformação significativa na sociedade, diante de tantas modificações que introduziu, preponderando, dentre elas, o reconhecimento da supremacia da dignidade da

118

LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 8.

119

pessoa humana, lastreada no princípio da igualdade e da liberdade, impedindo a superposição de qualquer instituição à tutela de seus integrantes.120

Nas palavras de Gustavo Tepedino, a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros. 121

Desta feita, a família atual não pode ser tutelada em face dos direitos patrimoniais que decorrem das relações entre seus membros, posto que, como afirma Paulo Lobo, é vincada por outros interesses de cunho pessoal ou humano, tipificados por um elemento aglutinador e nuclear distinto: a afetividade. Esse elemento nuclear define o suporte fático da família tutelada pela Constituição, conduzindo ao fenômeno que denominamos repersonalização. 122

A família, portanto, passa ser vista num contexto de promover a dignidade e realizar a personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperanças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade. 123

O art. 226 da Constituição Federal estabelece:

Art. 226 - A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §3° Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.

§4° Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. 124

120

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. São Paulo: RT, 2007, p. 39.

121

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, p. 349.

122

LOBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Disponível em: <www.jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5201>. Acesso em: 25 fev, 2008.

123

CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, p. 34.

124

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Código civil, código de processo civil, código comercial legislação civil, processual civil e empresarial, constituição federal. Organização do texto: Yussef Said Cahali. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 21-172.

Sem dúvida, tal disposição representa um marco no Direito de Família, na medida em que se rompe o paradigma da família matrimonial, para se render à realidade sociológica, mediante a proteção de outros tipos familiares existentes no Brasil e que até então ficavam à margem do sistema jurídico.

Reconhece, portanto, a Constituição Federal de 1988, expressamente, as entidades familiares decorrentes do casamento, da união estável e as monoparentais, formadas por qualquer dos pais e seus descendentes.

Paulo Lobo critica a interpretação dominante do art. 226 da Constituição Federal, no sentido de a proteção do Estado estender-se apenas a estes três tipos de entidades familiares, sendo, portanto, numerus clausus. Os que assim argumentam, dividem-se quanto à primazia ou não do casamento em face dos demais tipos. Aqueles que defendem a primazia do casamento afirmam que quando a Constituição estabelece que a lei facilitará a conversão da união estável em casamento, reconhece-se a desigualdade entre tais entidades familiares e a superioridade do casamento. Na segunda concepção (igualdade), deve-se respeitar o princípio da liberdade de escolha, ou seja, de escolher e constituir a entidade familiar que melhor atenda a sua realização pessoal, sem que o Estado tenha dito qual é a melhor forma, dentro daquelas reconhecidas. 125

Parte da doutrina, a exemplo do autor supracitado, atualmente defende a tese de que interpretando os princípios constitucionais, conclui-se que a enumeração dos tipos de entidades familiares é meramente exemplificativa, ou

numerus apertus.

Segundo Paulo Lobo, tal entendimento extrai-se da interpretação do art. 226, §§ 4° e 8° da Constituição Federal, que estabelecem, respectivamente, que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Deste modo, entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dois pais e seus descendentes e o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. A proteção à família sem distinção do tipo

125

constitui cláusula geral de inclusão e a utilização da expressão “também” significa, igualmente, a inclusão. Os tipos mencionados na Constituição são os mais comuns, por isso, merecerem referência expressa. No entanto, são meramente exemplificativos, sendo o conceito de família indeterminado e como tal, depende de concretização dos tipos na experiência da vida. 126

Na esteira deste raciocínio, Cristiano Chaves e Rosenvald afirmam que o texto constitucional em vigor abraça nitidamente uma tipicidade aberta, pois o conceito trazido no caput do art. 226 é plural e indeterminado, afirmando verdadeira cláusula geral de inclusão. Segundo ele:

[...] A carta magna estabelece em seu preâmbulo que, instituído o Estado Democrático, este se destina a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Fica claro, portanto, que a interpretação de todo o texto constitucional deve ser fincada nos princípios da liberdade e igualdade, e despida de qualquer preconceito, porque tem como pano de fundo o macroprincípio da dignidade humana, assegurado logo pelo art. 1°, III, com o princípio fundamental da República. 127

Por conseguinte, se o indivíduo se realiza como pessoa em entidades familiares que não as previstas explicitamente na Constituição, como deixá-lo à margem da proteção estatal se este mesmo Estado protege, primordialmente, sua dignidade? Do ponto de vista da coerência do sistema, só pode prevalecer o entendimento da amplitude da proteção estatal em relação às formas de entidades familiares existentes, implicitamente previstas na Constituição, fundadas no afeto.

Há de se ter em consideração que é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indivíduo no social. 128

126

LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 61

127

CHAVES, Cristiano; ROSENVALD, Nelson. Op. cit.,p. 34.

128

A família contemporânea é identificada pelo vínculo afetivo que une as pessoas com objetivos de vida comuns, gerando o comprometimento recíproco. A família de hoje não mais se condiciona ao casamento, ao sexo e a procriação. O casamento deixou de ser uma única forma de união afetiva, o contato sexual deixou de ser a única forma de procriar e a procriação, por sua vez, não é a finalidade primordial da família.

Assim, esclarece Maria Berenice Dias:

[...] Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando-se os mais diversos arranjos familiares, devendo-se busca a identificação do elemento que permita enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. O desafio dos dias de hoje é achar o toque identificador das estruturas interpessoais que permita nominá-las como família. Esse referencial só pode ser identificado na afetividade.129

A aplicação do princípio da dignidade humana, fundante da Constituição Federal de 1988 conduz ao entendimento de que a entidade familiar, seja qual for sua espécie, prevista explícita ou implicitamente no texto constitucional, merece total proteção do Estado, como forma de tornar possível a realização do individuo como ser e da sua própria dignidade, perante a sociedade em que vive.

4.2 O DIREITO À PROCRIAÇÃO ASSISTIDA COMO UMA DAS