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3. CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS: LIMITAÇÕES AO PODER DE REFORMA,

3.2 A tradição das Constituições Rígidas

3.2.2 Rigidez Constitucional: elementos da tradição européia

3.2.2.3 A fase Democrática

As Constituições do final do século XIX e as das primeiras décadas do século XX, até a Segunda Grande Guerra Mundial, passaram por profundas transformações, assumindo características bem diferentes das até então existentes, assemelhando-se às atuais.

As causas dessa transformação são de diversas ordens, mas uma desencadeou todas as outras: a Revolução Industrial. A industrialização modificou hábitos, comportamentos, valores éticos, a sociedade e o governo. Consistiu na maior revolução desde a descoberta do fogo e da roda, mobilizando energia social sem precedente histórico.182183

As mudanças sociais encetadas não foram de todo benéficas. A transposição de grandes contingentes populacionais do campo para a cidade — em busca de novas

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ROYO, Javier Pérez. op. cit., p.69-70.

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“A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais. A conservação sem alterações do antigo modo de produção constituía, pelo contrário, a condição primeira da existência de todas as classes empreendedoras anteriores. Essa revolução contínua da produção, esse abalo e de todo o sistema social, essa agitação permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e de idéias secularmente veneradas; as relações que as substituem tornam-se antiquadas antes de terem um esqueleto que as sustente. Tudo o que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens são, finalmente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas”. MARX, Karl et ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. 6ª ed. São Paulo: Global Editora, 1987. p. 79.

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Abre-se um parêntese para relevar, como já se fez, que a mudança operada na sociedade e nas Constituições não tem por causa somente a revolução industrial, ainda que aparente estar no início de todas as demais: as revoluções proletárias, a Primeira Guerra Mundial, a democratização do sistema político, etc.

oportunidades — trouxe problemas de exclusão social, educação, saúde e trabalho. Sinteticamente, os problemas não resolvidos despontaram em questões sociais, e as massas sem trabalho e excluídas exigiram soluções rápidas e eficientes. O distúrbio com as reivindicações foi inicialmente solucionado com a lei penal.

Mas a lei penal, por si só, não fora suficiente para conter e fazer frente aos reclamos. Exigia-se outra postura do Estado, com maior ingerência, que acabou acontecendo por uma intromissão de duplo sentido. Um movimento do Estado para a sociedade, restringindo o equilíbrio contratual entre as partes e o direito de propriedade, criando direitos sociais e econômicos; e uma ação da sociedade para o Estado, pois o sufrágio universal e a abertura do sistema político para as classes laboriosas — além da questão social — estavam entre as reivindicações dos excluídos.

Para a questão das Constituições Rígidas, a modificação de porte fora o incremento da Democracia com a absorção da classe laboriosa no processo político. Afinal,

A industrialização não foi o progenitor da constitucionalização, isto foi uma realização liberal. Quando a industrialização irrompeu dentro de seu máximo fluxo depois de 1870, foi para trazer não a constitucionalização mas a democracia: de fato uma questão bem diferente (tradução nossa)184.

Esse processo não passou despercebido para Bryce, que expressamente vaticinava que as Constituições Rígidas eram coevas com a Democracia. Enquanto as Constituições Flexíveis exigiam um esmero, uma distinção e uma qualificação especial para se conhecer seus intricados institutos e mecanismos e por isso permaneciam nas mãos de uma minoria politicamente educada, as Constituições rígidas eram para as massas. Permitiam a absorção de grandes contingentes no processo político, possibilitando-lhes apreender as artes do governo:

Mientras que una Constitución flexible como la romana o la inglesa requiere um gran conocimiento y un gran tacto y valor para manejarla y desarrollar estas cualidades em aquellos que toman parte en su manejo – legisladores, funcionarios y magistrados -, una Constitución rígida es más apta para atraerse a los ingenios sutiles, lógicos e diestros entre las clases de personas correspondientes. La Constitución rígida puede dar uma forma legal a la mayoría de las cuestiones y fijar un premio elevado – quizá demasiado elevado – al conocimiento y a la capacidad legales185.

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“Industrialization was not the progenitor of constitutionalization: that was a liberal achievement. When industrialization burst into its full food after 1870, it was to bring not constitutionalization but democracy: a very different matter indeed”. (FINNER, Samuel Edward. The History of Government: empires,

monarchies and the modern state. v. 3. op. cit. p.1610).

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Ingressas as massas na arena política, no palco do governo, no cenário das Constituições, necessitava-se de um novo compromisso, de um novo pacto. O compromisso — que antes era entre entes políticos institucionalizados, como o Parlamento ou monarca — firma-se entre forças sociais distintas, com interesses diferentes e sob um substrato de valores heterogêneos. As Constituições do período são plasmadas sob uma organização social em agitação e instável, estimulada por idéias extremistas e dissonantes, como o fora o socialismo de inspiração bolchevista, o fascismo italiano e o nazismo alemão. Se antes a garantia da Constituição era arquitetada pela institucionalização dos agentes do pacto, que se limitavam mutuamente ao compartilharem o exercício da soberania; com os novos tempos, a garantia da Constituição passou a dispor de sua própria normatividade, que formalizava e sistematizava “as regras do jogo político”.186

Nesse novo rearranjar de forças, as Constituições Rígidas do Estado Liberal tiveram de se adaptar, formalizando instrumentos direcionados, com a pretensão, ainda, de controlar e absorver a nova realidade social.

Mirkine-Guetzévitch — analisando essas novas Constituições — apresentou um rol minucioso daquilo que entendia como as novas tendências do Direito Público. Novas tendências que, segundo o autor, consistem em um aprimoramento ou extensão da racionalização da organização política, iniciada com as Constituições liberais. Para novos tempos, novos instrumentos normativos.

As inovações foram deflagradas não somente pela democratização da organização política, como pelo rearranjo social provocado pela Primeira Guerra Mundial e pela revolução em diversos Estados. Da violência e destruição surgiram novas organizações políticas, sociais e jurídicas. Forjadas pela mesma experiência, compartilhavam princípios e instrumentos normativos. Entre as inovações: a) a proclamação do princípio da soberania popular em quase todas as Constituições, tendo por conseqüência, a extensão do sufrágio, e a organização das estruturas governativas em repúblicas, em substituição às monarquias hereditárias tragadas ou enfraquecidas pela Guerra; b) a consolidação e aprimoramento do parlamentarismo, enquanto sistema de governo, mas em bases distintas do parlamentarismo clássico inglês. Suas notas distintivas: b.1) a criação de mecanismos de participação direta — como o referendum e a iniciativa popular — ao lado da representação política, permitindo ao eleitor um maior controle sobre

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“Con esta expressión, que es la traducción literal de la conocida frase inglesa rules of the game¸se designa el conjunto de normas señaladas por la ley o la costumbre para regir uma determinada actividad social [...]”(BORJA, Rodrigo. Enciclopédia de la Política. México: Fondo de Cultura Económica, 1998. verbete: reglas del juego. p.869).

a atuação de seu representante. O eleitor torna-se juiz de seu deputado; b.2) os Gabinetes não só dependem das maiorias parlamentares, como são integrados por seus membros; b.3) o aparecimento de partidos estáveis e organizados, a permitir não somente a escolha de representantes, como de programas de governo; b.4) a diminuição da importância política ou supressão das câmaras altas; c) o controle dos pleitos pela especialização de função de Tribunais Eleitorais; d) a transformação do federalismo pela subsunção integral ao Direito e às normas constitucionais. As autonomias antes existentes — firmadas sobre interesses dinásticos, tradições históricas, pretensões nacionalistas ou conflitos sociais — passam a dispor de embasamento jurídico, o que faz com que um passado de disputas e conflitos entre núcleos distintos de poder, seja substituído por uma coordenada estrutura de entes descentralizados; e) a criação de regulamentos provisórios ou leis de emergência, como forma de atender situações excepcionais para as quais seria inconveniente a demora do processo legislativo clássico; f) a criação de um controle normativo de constitucionalidade, a exemplo dos Estados Unidos da América; g) a inclusão no texto constitucional das liberdades públicas e direitos individuais, e o acréscimo de outros de natureza econômica, social e cultural.187

Por conseqüência, essas inovações, ou experimentos, foram positivadas por Constituições Rígidas. As novas constituições a que Mirkine-Guetzévitch faz menção são experiências constitucionais Rígidas, cuja garantia é encontrada em sua própria normatividade. Se antes a garantia da constituição era engendrada pela institucionalização dos agentes da soberania — o Parlamento e o monarca — que se limitavam mutuamente ao compartilharem o seu exercício; na nova experiência, a garantia repousa em suas próprias normas. Somente a Constituição é soberana, e é o Direito que regulamenta e formaliza as “regras do jogo político”. A proteção da Constituição não mais se encontra no equilíbrio ou pacto entre entes políticos, mas no emprego dos instrumentos e princípios do Direito.