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3. CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS: LIMITAÇÕES AO PODER DE REFORMA,

3.5. Garantias da Rigidez Constitucional

3.5.2 Garantias Constitucionais de Crise

O controle de constitucionalidade é o instrumento por excelência, dotado de extrema eficácia, de garantia da Constituição em períodos de normalidade. Por normalidade compreenda-se o império do Direito, a situação de perfeita submissão ao Estado ao Direito.

A subordinação, ou submissão ao Direito, tem por sentido primeiro que o poder político não é livre, não opera no vácuo, não é desvinculado de quaisquer valores. A inexistência de regras reguladoras do processo político é ostensivamente dissonante do sentido do Estado de Direito. Mas a submissão ao Direito traz uma questão: o que deve ser compreendido por Direito? Essa resposta não é fácil e para ela convergem opiniões das mais distintas, a depender do nuance ideológico professado. De qualquer maneira, no Estado de tipo ocidental, parece que a compreensão do Direito passa obrigatoriamente, entre outras normas, pela submissão à Constituição, de preferência a Rígida.326

O estado de direito é um estado constitucional. Pressupõe a existência de uma constituição normativa estruturante de uma ordem jurídico-normativa fundamental vinculativa de todos os poderes públicos. A Constituição confere à ordem estadual e aos actos dos poderes públicos medida e forma. Precisamente por isso, a lei constitucional não é apenas — como sugeria a teoria tradicional do estado de direito — uma simples lei incluída no sistema ou no complexo normativo-estadual. Trata-se de uma verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de supremacia — supremacia da constituição — e é nesta supremacia normativa da lei constitucional que o “primado do direito” do estado de direito encontra uma primeira e decisiva expressão (grifado no original)327.

Mas a normalidade e o império do Direito não são perenes. Ocorrem situações excepcionais que fogem aos seus domínios, são aquelas ditas de crise. Acontecem pelas razões mais distintas e consistem em lacunas, fugas da regularidade do Estado de Direito, que por isso mesmo podem comprometer a integridade ou permanência de uma Constituição. Não é uma conseqüência obrigatória, mas a existência de crises pode acarretar o fim de uma Constituição e o nascimento de outra.

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O correspondente do Estado de Direito para o sistema do common law é o princípio do rule of law. A sua essência consiste na supremacia, ou na subordinação do homem ao Direito. Qualquer pessoa, independente de seu status social está submetido ao Direito, como também a organização política e os diversos poderes do Estado como um todo. Para um melhor desenvolvimento do princípio (Cf. BARNETT, Hilaire.

Constitutional and Administrative Law. 4ª ed. London: Cavendish Publishing Limited, 2002. p.73-103).

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Manoel Gonçalves Ferreira Filho classifica as crises que se abatem sobre o Estado de Direito e sobre a Constituição em crises de estrutura e crises de conjuntura. Crises de estrutura “[...] caracterizam-se por um rompimento das proporções e relações interiores de um todo social localizado no espaço e no tempo”.328 As proporções e relações, que estão unidas por um complexo de crenças comuns, constituem a estrutura propriamente dita, que com a crise estaria profundamente abalada.329 Ao reverso, as crises de conjuntura não ofendem a organização fundamental. Provocadas, por questões secundárias ou circunstanciais, são momentos passageiros de instabilidade e não têm força para transformar os fundamentos de uma organização social e política. Ao menos em um primeiro momento.

Têm, também, repercussão distinta. Enquanto as primeiras são projetadas, vezes, por revoluções, que diante da superação da idéia de Direito vigente em uma sociedade, buscam instaurar outra, as crises conjunturais não dispõem desse efeito e as transformações operadas somente afetam a superfície da organização social e política. Quando muito geram golpes de estado, quarteladas, desordens de rua. Ambas consistem em desobediência às normas do ordenamento, com a diferença que as primeiras solapam o próprio arcabouço da organização constitucional, a segunda somente sua forma. “Ao passo que nas primeiras têm a majestade e a força dos movimentos tectônicos, as segundas têm a fúria e a rapidez das águas escapadas de barragem fraturada”.330

Esses momentos de crise são provocados pelos mais diferentes eventos, que vão desde a agressão estrangeira ou a guerra propriamente dita, passando por comoções internas violentas, levantes, atos de terrorismo, cataclismos naturais e até mesmo graves crises econômicas.

Nessas situações, as disposições do Estado de Direito e da própria Constituição, estabelecidas para um momento de normalidade, não são eficazes. As crises dificultam o funcionamento do Estado, a aplicação da Constituição, quando não são causa de sua ruína. São ocasiões de singularidade em relação à normalidade constitucional.331

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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Estado de Sítio na Constituição Brasileira de 1946 e na

Sistemática das Medidas Extraordinárias de Defesa da Ordem Constitucional. São Paulo: RT, 1964. 15.

329

Há de se lembrar, uma vez mais, que o sistema não é estático. Podem ocorrer, e ocorrem, mudanças imperceptíveis que afetam a estrutura de uma Constituição, mas que serão sentidas somente após um tempo largo.

330

Ibid. p. 17.

331

Se for admissível uma analogia para explicar o que ora se trata, a Cosmologia tem um termo para designar exceções à leis da físicas. São as singularidades, que consistem em regiões do espaço-tempo nas quais as leis da física cessam de viger, e a curvatura do espaço se torna infinita. (Cf. HOUAISS, Antônio et VILLAR, Mauro de Salles. op. cit. verbete singularidade. p. 2580). Da mesma maneira, nas crises as normas do Estado de Direito sofrem distorções, e não se prestam para debelar a adversidade.

São conjunturas que não se coadunam com o Estado de Direito, que logra de antemão prevê-las, quer para evitá-las, quer para minorar-lhes as conseqüências. Para isso são criadas hipóteses de legalidade especial cujo fim primeiro é superar as crises e indiretamente garantir a existência, a permanência e a estabilidade da Constituição e do Estado de Direito.

O direito comparado é rico em fórmulas e instrumentos de legalidade especial. Em breve pinceladas, sem ser exaustivo, para o efeito somente de comparar-lhes a eficácia para a garantia da Constituição:

a) a Ditadura Romana foi o espécime da Antigüidade para as crises da República, em geral guerras ou sedições. Consistia na verdade em uma magistratura extraordinária, convocada para momentos especiais que fugiam da normalidade das instituições romanas. Em períodos de normalidade, a organização política de Roma assentava-se em uma intricada rede de instituições e magistraturas que coexistiam e mutuamente se compensavam e anulavam. No seu período clássico, com a finalidade de debelar crises, nomeava-se um ditador. A nomeação exigia a designação pelos cônsules, deliberação do Senado e sua confirmação por uma lex curiata. Contava com os poderes necessários para salvar a República, mas sua investidura não podia suplantar seis meses. Suas deliberações não podiam ser obstadas pelo veto de outros magistrados.

Apesar de o Ditador enfeixar as atribuições de todas as magistraturas, não podia modificar as leis da República nem suprimir a jurisdição civil. A partir de 216 A. C. o próprio Senado passou a designar o Ditador entre os cônsules, chamado por isso de Ditadura consular. Ao final, o seu mau uso houve por conduzir ao perecimento da República e o surgimento do Império.332

b) A lei marcial foi desenvolvida para o sistema jurídico do common law. Com alguma semelhança com a Ditadura Romana, consiste mais em uma situação de fato — onde para salvaguarda das instituições, a “força pode ser repelida pela força” — do que um regramento propriamente dito. Lembra, por essa razão, o instituto da legítima defesa.

O sentido de lei marcial não é unívoco. Identificam-se três sentidos principais: a) corpo de regras administrativas estabelecido para o governo das forças armadas enquanto corporação organizada; b) princípio que rege as forças militares quando de guerra externa ou de ocupação; c) a lei que é aplicada quando a força militar é chamada

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para auxiliar o poder civil na execução de suas atribuições. Para o efeito aqui tratado de superação de situações excepcionais, somente o último sentido é que nos interessa.

[...] la martial law consiste simplesmente en que las autoridades militares quedan a disposición de las civiles a efectos del mantenimiento del orden público, pero sin que se suspenda ningún derecho y sin que los tribunnales militares adquieran jurisdicción sobre paisanos (si bien caben estas posibilidades em virtud de leyes de plenos poderes, pero independientemente de la ley marcial, y em cualquier caso los militares son responsables de sus actos ante los tribunales ordinarios333.

Em linhas gerais, a lei marcial não suspende o direito comum, que continua válido e aplicável. O agente encarregado do exercício da polícia administrativa, com a finalidade de restabelecer a ordem, poderá fazer uso de todos os meios necessários e moderados, colocados a sua disposição, para restabelecer a situação de normalidade. Nada obstante, responderá ulteriormente pelo excesso. Responderá pelo excesso, assim como responderia aquele que estivesse no estado de necessidade ou de legítima defesa, e ultrapassasse os meios necessários e moderados para afastar ou evitar ofensa a direito seu. Essa responsabilidade não pode de antemão ser anistiada, somente ulteriormente.

Por consistir em um estado de fato, a reação é pronta e não necessita de qualquer formalidade especial. Não se exige a decretação do estado de exceção, ainda que exista um consenso sobre a sua identificação.

O pressuposto fático que justifica uma lei marcial é aquela situação correspondente à interrupção do funcionamento normal dos poderes, em especial dos Tribunais.

Somente a interrupção do funcionamento dos poderes públicos, especialmente dos Tribunais, é que caracteriza o estado de fato que é a lei marcial. Guerra, ou revolução, invasão ou tumultos, não bastam para instaurá-la, isto é, para justificar a violação da lei, a menos que daí decorra paralisação efetiva do andamento ordinário da máquina governamental334.

c) As Constituições Rígidas, para proteção contra ofensas graves à ordem, contam com um sistema mais complexo elaborado e normativamente regulado: o estado de sítio.

O estado de sítio é um instituto de origem francesa. Inicialmente foi empregado para regiões sujeitas a agressões externas, em guerra, e sitiadas. Daí o nome. O primeiro texto a prevê-lo foi o Decreto Revolucionário de 10 de julho e 1791, que

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GARCÍA-PELAYO, Manuel. op. cit. pp. 168.

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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Estado de Sítio na Constituição Brasileira de 1946 e na

diferenciava o estado de sítio do Estado de Guerra. O primeiro mais drástico, porque pressupunha o cerco pelo inimigo, o segundo limitado a praças ou postos militares. Ambos, entretanto, exigiam a decretação pelo legislativo e pressupunham o ataque efetivo de armas inimigas. A instauração por determinação monárquica ocorria somente nas hipóteses de recesso do Parlamento, mas uma vez reunido, cumpria convalidar ou invalidá-lo.

No mesmo sentido, também fora a Lei de 10 Fructidor do ano V da Revolução (27 de agosto de 1797), que conferia poderes ao Diretório para decretá-lo, mas desde que autorizado pelo legislativo. Se ambos estavam assentados na exigência de guerra externa, a Constituição de 1791, que não revogara o Decreto revolucionário, tinha um preceito sobre atos de desordem e outros conflitos. Também, ulteriormente, são dignos de lembrança: a Constituição de 22 de Frimarie do Ano VIII (13 de dezembro de 1799), que previa a suspensão da Constituição em áreas limitadas, no caso de crises graves; o senatus-consulto de 16 Thermidor do ano X (4 de agosto de 1802) que conferia poderes para declarar departamentos fora da Constituição; e o Ato Adicional de 1815, que pela primeira vez, de forma expressa, previu o estado de sítio para a repressão de desordens internas.

Nada obstante, o delineamento definitivo do instituto somente apareceu com as Leis de 9 de agosto de 1849 e de 3 de abril de 1878, ambas com fulcro no artigo 106 da Constituição de 1849. Distinguiam o sítio real ou efetivo do político ou fictício. O primeiro era decretado pelo comandante militar, ad referendum do Presidente da República, que necessitava ainda da aprovação parlamentar caso desejasse mantê-lo. Pressupunha o cerco, ataque ou ainda a reunião de forças inimigas a uma distância de 10km de uma praça ou posto militar. O segundo somente podia ser decretado pela Assembléia Nacional, mas excepcionalmente autorizava-se o Presidente o fazer, quando em recesso o Parlamento, mas que ao reunir-se deveria deliberar sobre. Tinha por pressuposto perigo iminente em razão de guerra ou insurreição.335

São características do estado de sítio: a) a previsão expressa em um dispositivo constitucional ou em outro diploma legislativo, subordinando o executor da medida a uma legalidade especial; b) a necessidade de decisão legislativa para sua decretação ou autorização; c) a suspensão das garantias constitucionais em sentido estrito, enquanto defesas instituídas para proteção de direitos fundamentais do indivíduo; d) a hipertrofia dos poderes do Estado, que antes circunscritos aos limites da Constituição, investem contra as liberdades individuais.336

335

Ibid. pp. 73-76.

336

Esse sistema evoluiu e foi absorvido por outros ordenamentos, estando hoje espalhado por uma diversidade de Constituições. Com a imposição de uma série de exigências do mundo hodierno, aprimorou-se, enriqueceu-se com outros instrumentos para debelar as crises que assomam e colocam em risco a Constituição. Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho — lembrando a atual Constituição Espanhola (1978) — colaciona os seguintes: a) o estado de alarma para solução de catástrofes ou outros cataclismos, que não necessita da suspensão de garantias fundamentais; b) o estado de exceção para crises de natureza média, com a possibilidade de suspensão de garantias constitucionais e decretação por um prazo prorrogável não superior a trinta dias; c) o estado de sítio, para crises mais graves, com a suspensão de garantias constitucionais. A inovação entre as medidas é a possibilidade de suspender direitos de determinadas pessoas investigadas por prática delituosa ou de terror, independentemente de estarem domiciliadas na área de conflagração. A aplicação da medida, nesse caso, sempre necessitará da intervenção parlamentária e da fiscalização pelo judiciário, equilibrando por isso a exorbitância dos poderes de investigação.337

Por óbvio que os instrumentos analisados não esgotam as medidas empregadas para debelar as crises. Agora, para os efeitos dessa, há de se perguntar qual deles é o mais eficaz? Não há como conferir uma resposta somente. Várias são as respostas, porque vários são os sistemas, diversas são as crises, suas intensidades e múltiplos são os momentos históricos em que aparecem. A despeito dessa observação, Manoel Gonçalves consegue fazer algumas considerações, que sob o aspecto da eficácia na preservação da ordem são irrefutáveis. As observações são lógicas e decorrem mesmo do que se expôs. Constata que independentemente da medida empregada, as crises de conjuntura são mais fáceis de sujeitar que as de estrutura. Quando as últimas irrompem, a organização constitucional sofre o risco factível de soçobrar. Independentemente da época ou do momento histórico, o sistema da lei marcial, por não contar com uma legalidade estrita, dispõe de maior flexibilidade para enfrentar os mais diferentes eventos, enquanto o estado de sítio não conta com a mesma plasticidade. Por fim, se a lei marcial é de eficácia maior para debelar as crises, oferece maior perigo para os direitos e garantias individuais, porque o exercício dos poderes extraordinários e emergenciais não está prefigurado.338

337

Ibid. pp. 126-128.

338

4 A ORGANIZAÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA PRÉ-1988:

INSTABILIDADE CONSTITUCIONAL

4.1 Noções Gerais

Com fundamento no desenvolvimento conceitual realizado, passa-se à experiência constitucional brasileira, marcada por uma sucessão de Constituições, firmadas em diferentes fontes de validade. Nessa investida, o regime normativo instaurado em 1988 ocupa papel de destaque e o desfecho do que se escreveu.

Da premissa de que as Constituições nascem, crescem, transformam-se e fenecem, a sua sucessão formal nem sempre é um sintoma de instabilidade. A sua mera alternância, sem outro qualificativo, pode ser expressão da ordem natural do Direito. Daí que é precipitado um juízo de instabilidade que se apóie exclusivamente no aspecto formal. A estabilidade exige outro qualificativo, a que a concepção de Schmitt — ao diferenciar decisão política fundamental de leis constitucionais — é de manifesta utilidade. Nesse sentido, para Manoel Gonçalves Ferreira Filho há uma simetria de decisões políticas fundamentais nas diversas Constituições republicanas brasileiras, que se restringiram a expressar opções constituintes assemelhadas (informação verbal).339 A lembrança, por si só, é indiciária da necessidade de uma maior imersão conceptual, ao menos, se o objetivo é mais ambicioso que aquele que toca o aspecto exterior do fenômeno.

Com idêntico propósito, analisar-se-ão os fatos que estiveram nos inícios, nas vicissitudes e nos ocasos dessas Constituições. Uma concepção adequada também determina uma vinculação às forças sociais subjacentes. Por razões tais se invocou antes categorias de Lassalle.

Mas as Constituições não contam somente com dimensões sociológicas e políticas. Também são normas que fundamentam a validade de todo o ordenamento jurídico e prevêem o seu próprio procedimento de normogênese: criação, recriação, transformação e supressão normativa. Na maioria delas, um procedimento solene, entremeado de limites formais e materiais. Como as Constituições brasileiras previram-no de forma não simétrica, cumpre recuperá-los, porque erigidos para garantir a estabilidade constitucional.

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