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3. CONSTITUIÇÕES RÍGIDAS: LIMITAÇÕES AO PODER DE REFORMA,

3.3. Supremacia Constitucional Formal e Material

A supremacia constitucional está na abertura, no portal de qualquer investigação sobre as Constituições Rígidas. Por essa razão, Pinto Ferreira a trata como “pedra angular, em que se assenta o edifício do moderno direito político”, dotando as normas constitucionais de superioridade em relação a outras do ordenamento, e permitindo, com isso, uma estabilidade social do grupo, mediante o estabelecimento de preceitos reguladores da conduta coletiva.191

Essa superioridade implica na subsunção da Constituição a toda a normatividade infraconstitucional e a todas as autoridades, ou a subordinação de todas as autoridades e de todas as normas à Constituição. Subordinação que ainda ocorre em seu aspecto material e formal.

Em seu sentido material, a supremacia erige-se sobre o seu próprio conteúdo, que lhe confere a primazia de encimar um dado ordenamento. É a lei fundamental de um Estado, porque organiza as suas próprias competências, criando, regulamentando e limitando seus órgãos de decisão, além fundamentar, com a idéia de Direito, as mais diferentes instituições. Por isso, uma ofensa a tais regras, fatalmente afetará a integridade do próprio Estado.

190

Ibid., pp. 50-58.

191

A ordem jurídica repousa inteiramente sobre ela e mesmo dela procede segundo um processo de encadeamento de regras estatais. Estando na origem de toda atividade jurídica que se desenvolve dentro do Estado, ela é necessariamente superior a todas as formas dessa atividade, visto que é dela, e dela somente que elas retiram sua validade [tradução nossa].192

A supremacia material tem também dois desdobramentos. O primeiro consiste no estabelecimento e criação da idéia de direito dominante, que orienta o fim do Estado. Cabe ressaltar que em um sistema pluralista não é a única idéia existente, e a oficial não suprime as rivais, entretanto, obriga-as a se submeter aos procedimentos que a Constituição coloca para que possam ser debatidas. O segundo desdobramento é a criação e delimitação de competências. Esse sistema de competências alcança significação quando se contrapõe ao sistema de direito próprio, no qual os entes políticos contam com atribuições inerentes, e que não lhe foram conferidas pela Constituição.193 A supremacia nesse caso é um desdobramento lógico, porque só limita competências quem é superior às competências limitadas.194

A concepção da supremacia material sempre esteve presente na história. Recorde-se que o Direito ateniense conhecia a distinção entre o nómos e o pséfisma. Enquanto o primeiro dispunha de um caráter quase sagrado, por se referir à organização da pólis, e por isso, submetido a um procedimento especial e cheio de obstáculos para a decisão em Assembléia; o segundo consistia na atribuição normativa comum da Eclésia, verdadeiro decreto de natureza geral, abstrata e vinculante, que regulava os assuntos mais diferentes. Todavia, qualquer que fosse o tema do pséfisma, devia respeitar o nómos, ou os

nomói. O desrespeito tinha como conseqüência a responsabilização criminal do

proponente, e a possibilidade dos Juízes não aplicá-lo.195

Não foi diferente na Idade Média, que também compartilhou com o Direito Natural uma idéia de uma superioridade normativa. Enquanto conjunto de preceitos

192

“Etant à l´origine de toute l´activité juridique qui se formes de cette activité, puisque c´est d´elle, et d´elle seulement qu´elles tiennent leur validité”. (BURDEAU, Georges. op. cit. p. 182).

193

Hodiernamente é de difícil identificação um regime constitucional diferente do de atribuição constitucional. De qualquer forma, isso não significa que nunca existiu um de atribuição própria. Inclusive, como já se procurou mostrar no decorrer dessa, nas origens do Constitucionalismo moderno as Cartas eram firmadas entre agentes políticos institucionalizados, que preexistiam às próprias Constituições documentais. Essas foram lavradas com a finalidade exclusiva de manter esses mesmos agentes dentro do pacto de limitação mútua de suas atribuições.

194

Ibid., p.182-184.

195

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no Direito Comparado. 2ª ed. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999. p.49-51.

abstratos e imutáveis de Justiça, a norma de Direito Natural inspirava e invalidava o direito positivo que confrontasse consigo, admitindo até mesmo a insurgência e o tiranicídio.196

E, para fechar essa incursão mnemônica, as Leis Fundamentais do Reino são o exemplo cabal da existência de uma supralegalidade. Maurice Hauriou lembra que ao término do Antigo Regime, quase todas as monarquias estavam subsumidas às Leis Fundamentais do Reino. Consistiam em costumes — que haviam adquirido força de lei — passíveis de aplicação pelos Juízes, e impostos às ordenanças dos monarcas, ainda que fossem esses os senhores da atribuição legislativa. Na França, em especial, eram regras essenciais referentes à unidade, perpetuidade e independência do Estado, e que disciplinavam entre outras coisas, a sucessão do trono, ou a cessão temporal dos poderes monárquicos. Qualquer ato do monarca que alterasse a sucessão dinástica era de absoluta invalidade, como o fora o Tratado de Troyes de 1420, que transferira a coroa de Carlos VI para Henrique V da Inglaterra, em razão da bastardia do Delfim Carlos, ou o testamento de Luis XIV.197

A superioridade da Constituição, quanto ao seu conteúdo, é reforçada pela existência de um texto escrito sistematizado e por um procedimento especial e dificultoso de reforma. A rigidez constitucional, por isso, cria um reforço na supremacia material, estabelecendo uma hierarquia normativa entre a Constituição e a legislação ordinária.198

A vinculação entre a supremacia material e formal é estreita. A importância das normas materialmente constitucionais refreia o legislador em sua pretensão de modificá-las, mas, a previsão de um texto escrito e de um procedimento dificultoso, torna isso indiscutível. Enquanto a supremacia material confere somente um respeito político, a supremacia formal firma um compromisso dos legisladores a uma obediência jurídica. Mais do que isso, a forma sustenta o conteúdo, e de duas maneiras: pela previsão de um texto escrito e pela existência de um procedimento dificultoso.

O texto escrito releva a importância da norma constitucional. Torna claro, preciso e fixo seu conteúdo, lembrando às massas e aos governantes a superioridade de sua organização política e possibilitando uma maior observância de suas disposições. É um instrumento eficaz de educação política, serventia essa que as normas costumeiras não dispõem, porque seu caráter hermético e assistemático torna-as de difícil assimilação. A

196

Ibid., p.50-52.

197

HAURIOU, Maurice. Princípios de Derecho Público Y Constitucional. Granada: Editorial Comares, 2003. p.335-336.

198

A expressão legislação ordinária está aqui sendo empregada, como o foi em outros momentos dessa, como sinonímia de normas infraconstitucionais.

rigidez, por sua vez, é a consagração dessa mesma superioridade. Com a previsão de obstáculos à transformação constitucional, cria-se uma dupla classe de normas dentro do ordenamento: as de estatura constitucional e as de dimensão infraconstitucional. Isso permite ao constituinte, ao elaborador da Constituição, retirar da discricionariedade legislativa matérias que julguem importantes.199

Elival da Silva Ramos traz uma questão fundamental para compreensão da supremacia constitucional formal e sua exata concatenação com a concepção das Constituições Rígidas. Coloca em debate se a supremacia formal não é um pressuposto das Constituições Rígidas, e não o contrário, e discute a sobrevivência, ou ao menos, o comprometimento de dita supremacia com o eclodir de novos fatos políticos, econômicos e sociais.

Segundo o autor, a supremacia hierárquico-formal da Constituição é a causa da rigidez de suas normas. Com efeito, lógica e cronologicamente primeiro se afirma a superioridade do Poder Constituinte, para ulteriormente a Constituição se projetar por meio da supremacia formal. Como o Poder Constituinte é hierarquicamente superior aos poderes constituídos, razão de sua existência, por decorrência lógica é inaceitável a alteração da obra constitucional pelo legislador. Indispensável que se disponha de uma blindagem contra a pretensão reformadora. É prova disso o aparecimento das Constituições documentais, visto que os revolucionários que as idealizaram, fizeram-nas acreditando em sua imutabilidade (ser uma obra acabada). Todavia, com o tempo se mostrou necessário um instrumento de atualização, que o advento do positivismo jurídico consagrou. Enquanto paradigma da dogmática atual, o positivismo teria consagrado a idéia de um instrumento normativo e formal de atualização.

Os constitucionalistas, ao estudar o fenômeno da rigidez a partir das normas que disciplinam a revisão da Constituição, tendem a fazer a conexão lógica com a idéia de supremacia hierárquica das normas constitucionais, mas invertendo os termos da equação: daquilo que está explícito (a revisão), deduzem aquilo que está (geralmente) implícito (a supremacia formal). Insistimos, entretanto, que o princípio da supremacia hierárquica das normas constitucionais, mesmo que, no plano da normogênese, apareça simultaneamente às normas impositivas da rigidez constitucional, ostenta precedência lógica (a exigência de que a alteração da Constituição se faça de um modo solene provém da supremacia formal que a ela se atribui e não o contrário) e cronológica (tendo em vista o processo constituinte) em relação ao princípio da rigidez.200

199

BARTHÉLEMY, Joseph et DUEZ, Paul. Traité de Droit Constitutionnel. Paris: Librairie Dalloz, 1933. p.186-188.

200

RAMOS, Elival da Silva. Perspectivas de Evolução do Controle de Constitucionalidade no Brasil. 2005. 466 p. Tese (Concurso de Titularidade ao Provimento de Cargo de Professor Titular – Departamento do Estado – Área de Direito Constitucional). USP. São Paulo. p.43-44.

A despeito da instigante tese, contudo, parece que sem inteira razão. As Constituições Rígidas têm por nota marcante um procedimento dificultoso ou especial de reforma. Da conjunção desses dois elementos, o que as marca são os obstáculos, e não a reforma. Observe-se que quando comparada com a legislação ordinária — aqui entendida como norma infraconstitucional — a transformação, atualização e reforma se apresenta em ambas, mas solene — ou com maior rigor — somente naquela. Logo, uma melhor caracterização as define como Constituições marcadas pela existência de obstáculos à reforma, e não como as que contam com a reforma obstaculizada.

Quando se compara as dificuldades à reforma da Constituição, com aquelas da legislação ordinária, sabe-se que os da primeira são maiores em número e qualidade. Isso implica em um limite e empecilho à atribuição do legislador, e por isso a existência de uma instância que lhe encima, e em certo sentido intocável.

Se for perguntado por que é estruturado assim, a resposta imediata é que tal acontece em virtude da supremacia da Constituição. A resposta aparenta ser tautológica, mas é somente aparência. A rigidez, nesse caso, está a servir não a supremacia formal, mas a supremacia material que antes se teve o cuidado de investigar. Como já se mostrou, a concepção de normas com qualidades distintas, e por isso fundamentais, não é um privilégio da idade contemporânea. Mesmo a Antigüidade as conhecia. Originalidade dos modernos é criar obstáculos formais, ou pretender imutáveis, essas mesmas normas. Os instrumentos empregados na consolidação desse intento é que conferem juridicidade à supremacia, fazendo-a por isso formal.

Não se argumente que o Poder Constituinte, enquanto momento anterior e supremo de qualquer Constituição, seja o fundamento da supremacia constitucional, e a razão da rigidez. A idéia de Poder Constituinte pode ser realmente o fundamento, mas enquanto fundamento ideológico, ou justificativa, nada mais é do que uma hipótese, e não uma realidade a ser seguida. Quando se analisa a história das Constituições rígidas observa-se uma vastidão de hipóteses de idêntico valor, a justificar a existência de obstáculos à transformação da Constituição, enquanto instância superior às outras disposições legislativas. Em especial, sobre o Poder Constituinte enquanto autoridade suprema, Manoel Gonçalves Ferreira Filho desvenda a mítica do instituto. Escrevendo sobre a criação de Sièyes conclui que:

Nota-se, por um lado, seguindo a maneira de raciocinar desse tempo, um raciocínio hipotético. Parte da hipótese do estado de natureza – como o fizeram antes dele Hobbes, Locke e Rousseau – passa pelo pacto que forma a sociedade (o pacto social), para, a partir desta, fazer surgirem os representantes

“extraordinários”, dotados do Poder Constituinte – do poder de estabelecer a Constituição, garantia necessária da ordem social.

Evidentemente, não pretende fixar um modelo a ser rigidamente seguido. Tanto que aponta que de qualquer modo que a sociedade queira, manifesta-se o seu Poder Constituinte. Aliás, se assim não fosse, a sua doutrina seria inaplicável à França, pois esta evidentemente não vivia em estado de natureza.

Por outro lado, se da doutrina redunda a supremacia da Constituição em relação aos poderes constituídos, dela não resulta que o constituinte de hoje possa opor obstáculos materiais – cláusulas “pétreas” – ao constituinte de amanhã. Sem

dúvida, admite que haja a definição de procedimentos especiais, já que isto é indispensável para a supremacia da Constituição em relação aos referidos poderes constituídos, mas só isto [grifo nosso]201.

É pertinente destacar que a discussão aqui colocada não é cerebrina. É da supremacia da Constituição que nascerá a justificativa para o debate sobre os diversos obstáculos à transformação das Constituições Rígidas. Sendo a supremacia um atributo daquelas, impende analisar os seus obstáculos enquanto um de seus elementos intrínsecos.